domingo, 24 de março de 2013

As vítimas da invisibilidade


Entrevista especial com Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro

“O direito fundamental do acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada”, dizem as advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH. 

Confira a entrevista. 


Ao contrário do que se possa imaginar, a população de rua “não é composta por mendigos e pedintes”, esclarecem Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro à IHU On-Line. Os moradores de rua são “trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas”, informam em entrevista concedida por e-mail.

Na avaliação delas, a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de “fenômenos complexos com origem, sobretudo, no processo histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com os modelos de desenvolvimento econômico atuais”. 

Apesar de a Política Nacional da População em Situação de Rua ter sido instituída pelo governo federal há quatro anos, as advogadas informam que “boa parte dos municípios brasileiros ainda não a implementou”. E concluem: “Os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros”.

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro são advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH, um projeto da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Além disso, tem parceria com o Movimentos Nacional de População em Situação de Rua – MNPR e com o Movimento Nacional de Catadores de Material Reciclável – MNCR.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – É possível traçar um perfil de quem são os moradores de rua?

Fonte: R7Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– A população em situação de rua (ou simplesmente PSR) pertence a um grupo extremamente heterogêneo. Entretanto, tem como característica a pobreza extrema e o “despertencimento” à sociedade formal. Situados à margem da sociedade, são vítimas de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que resultam, em muitos casos, em ações violentas de agressão e mesmo homicídios. Além disso, o desconhecimento sobre a situação das pessoas em situação de rua contribui para a formação de um conceito equivocado que criminaliza pessoas em razão de sua condição social. Verificamos a invisibilidade social e, na perspectiva do direito, a ausência de políticas públicas estruturantes e emancipatórias.

IHU On-Line – Quando se trata de populações em situação de rua no Brasil, que
diagnóstico pode ser feito? É possível estimar quantas pessoas vivem na
rua?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– A pesquisa publicada em abril de 2008 peloMinistério do Desenvolvimento e Combate à Fome – MDS aponta um perfil. A maioria das pessoas em situação de rua é do sexo masculino (82%) e jovem, entre 25 e 44 anos, de cor declarada parda ou preta, sendo composta por trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas. O desemprego aparece em 30% das citações, e os conflitos familiares, com 29%, compõem o quadro de razões que os levam a viver nas ruas. Dos entrevistados, 88,5% não têm acesso a programas governamentais, como aposentadoria, Bolsa FamíliaBenefício de Prestação Continuada, cesta básica, vale transporte ou outro. Sobre a questão do trabalho, a partir da pesquisa podemos concluir que a maior parte das pessoas em situação de rua possui uma ocupação ou um trabalho, 72% afirmam que exercem alguma atividade remunerada, a maior parcela (28%) é catadora de materiais recicláveis. A atuação como flanelinha (guardadores de carro), carregador, na construção civil e no setor de limpeza são outros tipos de trabalho mais citados. Os dados revelam que a população de rua não é composta por mendigos e pedintes. 

Com relação às pessoas em situação de rua no Brasil, é difícil apontar um número. Vítimas da invisibilidade, eles ainda não foram contados em nenhum Censo. Segundo a pesquisa do MDS feita em 71 municípios com mais de 300 mil habitantes, destacamos que não foram contabilizadas as capitais de São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto alegre, foi identificada a presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua, mas o Movimento Nacional da PSRestima um número em torno de 150 mil pessoas em situação de rua no Brasil. É preciso destacar a Portaria n. 824 de 2012, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que institui o Grupo de Trabalho para Pesquisa/Censo – IBGE, com fins de incluir a PSR na contagem do próximo Censo, o que pode constituir um avanço ao acesso de direitos.

IHU On-Line – A situação dos moradores de rua é um reflexo de quais circunstâncias?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– Compreendemos que a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de fenômenos complexos com origem, sobretudo no processo histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com os modelos atuais de desenvolvimento econômico. Na contemporaneidade, a utilização dos logradouros e espaços públicos como moradia se desencadeia em decorrência de vários fatores: ausência de vínculos familiares, desemprego, violência, perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas, doenças mentais e falta de acesso à moradia convencional e regular, entre outros.

IHU On-Line – Em 2012, os dados apontavam Belo Horizonte como a capital líder em
assassinatos de moradores de rua. O que mudou neste último ano?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – De fato, o número de homicídios em Belo Horizonte é alarmante. De fevereiro de 2011 a março de 2013 já ocorreram 85 homicídios e 21 tentativas de homicídios na capital mineira. O CNDDH trabalha com um banco de dados próprio. Recebe denúncias de forma direta (as pessoas vêm ao CNDDH), mas também recebe denúncias de outras fontes como a mídia, movimentos populares e cidadãos/ãs sensíveis ao tema. Em Belo Horizonte outra fonte de recebimento de denúncias de homicídios é a Polícia Civil, departamento de homicídios. Talvez este seja o motivo pelo qual o número em Belo Horizonte se apresente de maneira mais acentuada. Também, como a sede do CNDDH está em Belo Horizonte chegam mais dados. Importante destacar que não podemos fazer comparações entre os estados pelos motivos acima citados, mas exclamamos nosso profundo repúdio ao alto índice de violência contra a população em situação de rua em Belo Horizonte, assim como em todo o Brasil.

IHU On-Line – Com frequência são denunciados casos de violência contra moradores de
rua em todo o país. Como compreender essas agressões?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Nos dados do CNDDH a violência física está em primeiro lugar (com os homicídios, as tentativas de homicídios e lesão corporal) e, em segundo lugar, vem a violência institucional, que corresponde à violência policial ou praticada por instituições de segurança, o abuso de autoridade, a demora excessiva ou desídia no atendimento, a ausência de acesso aos serviços públicos, prisão ilegal, homofobia institucional e omissão ou ineficácia das políticas públicas. A ausência de políticas que garantam direitos fundamentais sociais a essa população na maioria dos casos contribuem para o aumento da violência. Boa parte dos municípios brasileiros ainda não implementou a política para a População em Situação de Rua instituída pelo governo federal por meio do Decreto n. 7.053/09. Em alguns municípios, mesmo naqueles que instituíram a política, os serviços para a PSR são insuficientes ou ineficazes. Direitos como os de moradia, saúde, acesso à justiça, educação, apoio familiar, ainda lhes são extremamente negados e, em muitos casos, os equipamentos como albergues e repúblicas estão fora da tipificação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Vemos abrigos, albergues e repúblicas com superlotações e com metodologias que dificultam a socialização e a organização para a saída das ruas, o que precisa urgentemente ser repensado.

IHU On-Line – Quais são as outras políticas públicas existentes para a população em
situação de rua?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro 
– Como dito acima, existe a Política Nacional da População em Situação de Rua, instituída pelo governo federal por meio do Decreto no. 7.053/09. Partindo da Política Nacional, os estados e municípios devem instituir a política local, o que ainda anda de maneira muito vagarosa. A Política Nacional, em seu Art. 7º, dentre outros objetivos, garante os seguintes:

•    Assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda.
•    Implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua.
•    Criar meios de articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de Saúde para qualificar a oferta de serviços.
•    Implementar ações de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso permanente à alimentação pela população em situação de rua, alimentação com qualidade.

CNDDH é um dos objetivos da Política Nacional da PSR: “implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua”. Com a especificidade dessa população, sobretudo a ausência de endereço residencial, muitas vezes se torna difícil o acesso à justiça. O CNDDH, com o objetivo de combater a violência contra esta população e garantir-lhe o acesso à justiça, trabalha articulado com as Defensorias Públicas, o Ministério Público e demais espaços de defesas de direitos e redes de proteção social, diminuindo as distâncias e facilitando a participação nos processos judiciais e administrativos em que a PSR figura como parte.

No que se refere à segurança alimentar, outro objetivo da Política Nacional e um direito assegurado pela Lei Federal n. 11.346/2006, convém salientar que em Belo Horizonte o Movimento da PSR conquistou da prefeitura municipal as refeições gratuitas nos restaurantes populares de segunda a sexta feira. Contudo, embora haja previsão na legislação municipal, as refeições não são oferecidas nos finais de semana e feriados, o que tem sido uma das pautas de reivindicações da PSR em Belo Horizonte. Não temos notícias de que outros municípios brasileiros assegurem a alimentação à PSR na modalidade de Belo Horizonte. Entendemos ser esta uma política elementar e fundamental, devendo ser instituída por todos os municípios brasileiros nos termos da legislação federal.

Pode-se afirmar que a violência física, como os homicídios e as tentativas, em tese, é a culminância dos diversos tipos de violências praticadas contra esta população, sobretudo a violência institucional como a omissão e ineficácia de políticas públicas que asseguram direitos fundamentais.

IHU On-Line – Muitas denúncias fazem referência a políticas de caráter higienistas, com retirada forçada de pessoas e pertences pessoais. Vocês têm recebido este tipo de denúncia no CNDDH? 

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Sim. São muitas as denúncias deste tipo. Sobretudo com a aproximação da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, esta última que acontecerá em 2014. São muitas as ações dos poderes executivos municipais, com apoio de policiais militares, em vários municípios brasileiros, de retirada forçada das pessoas das ruas, sobretudo dos centros das cidades. Em muitos casos, nestas retiradas levam os pertences pessoais, como documentos, remédios, roupas, cobertores etc. O que em certos casos pode até se caracterizar como um crime de roubo, considerando a violência e a grave ameaça. Em Belo Horizonte, existe uma decisão judicial em uma Ação Popular, do Tribunal de Justiça de Minas Gerias, impedindo este tipo de ação. Apesar disto, o CNDDH continua recebendo denúncias oferecidas por pessoas que tiveram seus pertences recolhidos pela prefeitura municipal, com apoio de policiais militares.

IHU On-Line – Como vocês veem as atuais medidas de intervenção dos governos para a retirada das pessoas das ruas e a política sobre drogas?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Usuários de drogas são objetos de práticas higienistas e de segregação em vários estados. Essas ações atingem sobretudo pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, como a população em situação de rua. A retirada forçada das ruas e a aplicação de medidas de tratamento e internação involuntários, sem o consentimento do usuário, sem metodologia clara e que contrariam avanços estabelecidos desde a luta antimanicomial, da reforma psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde – SUS são um atentado aos direitos dos cidadãos. A questão da droga e da drogadição é complexa e exige do poder público e da sociedade grandes esforços para a compreensão do tema e, principalmente, na garantia da dignidade humana e na defesa da cidadania. A proximidade de grandes eventos no país expõe a PSR a soluções simplistas dos governos que violam direitos, a liberdade e a cidadania das pessoas. O CNDDH tem tratado do tema com diversos parceiros como o Ministério Público, Defensorias Públicas, conselhos e entidades ligadas ao tema e concluímos que os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros. Além disso, é preciso ressaltar que o uso das drogas para a PSR é apenas um sintoma de todo o estado de violações já sofrido por essa população.

IHU On-Line – Algo a acrescentar?

Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
 – Nestes dois anos de trabalho no CNDDH, como advogadas da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis, temos aprendido muito e enfrentado diversos desafios. Experimentamos como o direito fundamental do acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada. Nossa luta é por justiça social com equidade. Para isso, faz-se urgente superar preconceitos e reinterpretar o direito à luz da dignidade da pessoa humana.

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