sábado, 23 de março de 2013

ética, direitos humanos e biopoder


Resumo: Através do referencial teórico da Filosofia da Diferença busca-se problematizar alguns conceitos, o de direitos e o de humano. Na prática acadêmico-militante várias interrogações surgem. Apontaremos distinções entre ética e moral, articulando-as à luta pelos chamados direitos humanos no Brasil hoje. Tais questões serão trazidas tendo como cenário a sociedade neoliberal de controle globalizado na qual o poder e o governo sobre as vidas fortalecem-se cada vez mais de forma sutil e sedutora.

por cecilia maria bouças coimbra (Cecília Maria Bouças Coimbra é psicóloga, professora no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, doutora em Psicologia 
pela Universidade de São Paulo, fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais - RJ)

Os direitos humanos não nos obrigarão a abençoar as “alegrias” do capitalismo liberal do qual eles participam ativamente. Não há Estado democrático que não esteja totalmente comprometido nesta fabricação da miséria humana1. Gilles Deleuze

O presente trabalho traz alguns apontamentos iniciais, na intenção de suscitar o debate sobre a emergência dos conceitos de direitos e de humano, objetos das ciências humanas e das práticas de individualização de sujeitos que, ao mesmo tempo em que trouxeram novos valores para os corpos e para vida das populações, produziram modos assujeitados de estar no mundo.2 Tomando como solo a justificativa da defesa dos direitos humanos, trata-se de priorizar a invenção dos direitos e do humano, tomados como natureza universal, e dos modos de assujeitamento vinculados a uma certa concepção humanista da existência.3
Segundo Foucault, a história clássica e oficial que nos tem sido ensinada é concebida como uma marcha contínua dos acontecimentos históricos em direção à conquista de um lugar final visando o progresso e a civilização.4 Assim, estágios antecedentes nos levariam obrigatoriamente a um futuro de perfeição ou à aproximação gradativa do que deve ser a perfeição. O mundo burguês nos faz acreditar nas qualidades da civilização moderna, desqualificando tudo o que o precedeu. Ou seja, o nosso presente no mundo ocidental — a partir de certos parâmetros valorativos — julga, hierarquizando, as diferentes histórias dos povos.
O que chamamos de barbárie seria uma espécie de corpo estranho à civilização. Esta dicotomia entre civilização e barbárie é um produto do nosso tempo, visto que nunca se utilizou tanto esses dois conceitos, justamente, em um momento em que segurança e direitos humanos tornam-se as palavras de ordem.
Foucault caracteriza este momento da sociedade disciplinar, em especial a partir do final do século XVIII, como o “fazer viver e deixar morrer”,5 quando cada vez mais necessitamos que muitos morram para que outros possam viver. Por isso, precisamos atribuir ao “passado bárbaro” o horror que hoje vivemos: os genocídios, os extermínios, os doentes negligenciados, as torturas. Tal lógica se apresenta como se toda uma tecnologia que nos apregoa o bem-estar ou, na linguagem neoliberal, a qualidade de vida e a tal auto-estima, 
não estivesse também a serviço deste biopoder, deste poder sobre a vida: fazer viver alguns à custa da mortificação da maioria da população do planeta. Entendemos, assim, que civilização e barbárie não se opõem, fazendo parte do funcionamento da sociedade capitalista. Tal discurso, que nega os binarismos, pode ser encontrado também nos escritos de Marx, quando em O Capital, por exemplo, explica o mecanismo por meio do qual a acumulação de capital produz, ao mesmo tempo, a riqueza e aquilo que é caracterizado como seu contrário: a miséria, imprescindível à existência de mais e mais riqueza.
Por isto, entendemos ser importante problematizar alguns fundamentos históricos, filosóficos epolíticos das produções que vêm sendo naturalizadas no cotidiano das lutas por esses direitos.6 É comum considerá-los como frutos de uma evolução em direção ao progresso do chamado gênero humano, em direção à “elevação das sensibilidades” do homem civilizado. Entendemos, portanto, ser importante colocar em análise alguns termos que, de tão evidentes e repetidos, passam a ser percebidos como verdades únicas, universais e ahistóricas, tendo determinadas essências.
Historicizando direitos humanos
A burguesia iluminista precisava derrotar a nobreza e o clero, impor-lhes limites e ao mesmo tempo precisava conter as massas pobres que sonhavam com uma república livre, igualitária e fraterna. O poder precisava atualizar-se, não punir menos, mas punir melhor, com a eficácia do utilitarismo econômico.7 Vera Malagutti Batista 
Os ideais da Revolução Francesa — igualdade, liberdade e fraternidade — palavras de ordem da burguesia em ascensão, tornaram-se, a partir do fim do século XVIII, os fundamentos dos chamados direitos humanos. Produzidos pelo capitalismo como um dado natural, tornaram-se, portanto, sinônimos de direitos inalienáveis da essência do que é ser homem. Tem-se, então, um determinado rosto para os direitos humanos desde a primeira grande declaração produzida no âmbito da luta realizada pela burguesia contra a aristocracia francesa, em 1789, até a mais recente declaração, a de 1948, quando, após a Segunda Grande Guerra Mundial, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) em pleno período da chamada “Guerra Fria”. Estão presentes nessas duas grandes declarações — que se tornaram marcos para a história da humanidade — os direitos, em realidade, reservados e garantidos para os chamados bons cidadãos. Um dos mais defendidos e, em nosso mundo, considerado sagrado, é o direito à propriedade. Os direitos humanos, portanto, têm apontado quais são esses direitos e para quem eles devem ser concedidos. Ou seja, se tomados em sua perspectiva histórica, tanto o humano como os direitos são construções das práticas sociais em determinados momentos, que produzem continuamente esses objetos, subjetividades e saberes sobre eles. Pensando como Foucault, entendemos que seu método “consiste (...) em compreender que as coisas não passam das objetivações de práticas determinadas, cujas determinações devem ser expostas à luz, já que a consciência não as concebe (...) Tudo gira em volta desse paradoxo, que é a tese central de Foucault e a mais original: o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito”.8
Em nossa epígrafe, Deleuze afirma que os direitos humanos, desde sua gênese, têm servido para levar aos diferentes e pobres em geral a ilusão de participação, de que os chamados cidadãos preocupam-se com o seu bem-estar, de que o humanismo dentro do capitalismo é uma realidade.9 Entretanto, sempre estiveram fora desses direitos à vida os segmentos pauperizados e percebidos como “marginais”: os “deficientes” de todos os tipos, os “desviantes”, os miseráveis, dentre muitos outros. A estes, efetivamente, os direitos, assim como a dimensão humana, sempre foram — e continuam sendo — negados, pois tais parcelas foram produzidas para serem vistas como não-cidadãs, como não pertencentes ao gênero humano. Não há dúvida, portanto, que esses direitos, proclamados pelas diferentes revoluções burguesas, contidos nas mais variadas declarações, tenham construído subjetividades, modos de ser e estar no mundo, que definem para quais humanos os direitos devem se dirigir. Os marginalizados de toda ordem nunca fizeram parte desse grupo que, ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, tiveram e continuam tendo sua humanidade e seus direitos garantidos. Ou seja, foram e continuam sendo defendidos certos tipos de direitos, dentro de certos modelos, que terão que estar e caber dentro de certos territórios bem-marcados e delimitados e dentro de certos parâmetros que não poderão ser ultrapassados.
Percebemos aqui como as diferentes práticas sociais, em diferentes momentos da história, vão produzindo diferentes “rostos”, diferentes “fisionomias”; portanto, diferentes objetos, diferentes entendimentos do que são os direitos e do que é o humano. Estes não têm uma evolução ou origem primeira, mas emergem, em certos momentos, de maneiras bem peculiares.
Em vez de pensar os direitos como essência universal do homem, poderíamos, por meio de outras construções, garantir e afirmá-los como diferentes modos de sensibilidade, diferentes modos de viver, existir, pensar, perceber, sentir; enfim, diferentes jeitos de estar no mundo. Entretanto, essas afirmações da vida em suas potências são ainda vistas como estando fora dos tradicionais direitos humanos, porque não estão presentes nos modelos condizentes com a “essência” do que é direito e do que é humano. Rachar a expressão direitos humanos, tão naturalmente utilizada, e mesmo banalizada no contemporâneo, possibilitou-nos pensar na diferenciada emergência histórica desses dois objetos: direitos e humano. Da mesma forma que o direito é construído como sendo um atributo universal, uma determinada concepção de homem também vem sendo produzida historicamente, desde o século XVIII.
O surgimento de uma concepção do humano e da universalização dos direitos não se deu de forma tão grandiosa e afirmativa como nos querem fazer acreditar as revoluções burguesas e suas declarações. Naquele mesmo período, no século XVIII, foi necessário dar visibilidade científica ao chamado indivíduo perigoso, através do saber médico e da reforma das práticas de punição, para que uma nova forma de ordenação social pudesse se manter: a normalização das populações através dos dois braços do biopoder, a medicalização e a judicialização.
Não por acaso, o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, nos fala: “todos os homens nascem livres e iguais em direitos”. Sabemos que uns nascem mais iguais do que outros. Alguns merecem, portanto, ser mais ajudados, produzindo assim uma hierarquia da vitimização. Da mesma forma que a pobreza sempre foi dividida entre o pobre digno, o trabalhador, e o pobre indigno, o considerado vadio; as “vítimas” também estão dentro dessa classificação. É necessário saber qual “vítima” deve ser ajudada. Embora, em ambos os casos, sempre serão considerados “pobres coitados”. Isto quer dizer que a diferença foi reduzida à desigualdade. O direito à propriedade individual traz como efeito óbvio a produção dessa desigualdade em todos os sentidos. Ao mesmo tempo em que essa produção se dá, o capital exige para sua sobrevivência a homogeneização das multiplicidades, dos diferentes modos de perceber, agir, sentir, pensar e viver. Tudo vai sendo laminado, excluindo toda e qualquer diferença considerada como algo negativo. 
Com a invenção da razão, o homem, e tudo que o caracteriza como uma natureza, passou a ser o centro do 
universo, uma referência única e superior. Assim, o que é considerado fora desta categoria de julgamento é desqualificado, excluído, exterminado.
Queremos, portanto, afirmar aqui um direito e uma humanidade positivada enquanto processos imanentes, não definidos, não dados e não garantidos necessariamente pelas leis, mas que, por isso mesmo, precisam afirmar a vida em toda a sua potência de criação. A desnaturalização dos conceitos de direitos e de humano implica em um desafio permanente.
No Brasil, a luta pelos direitos humanos emerge com força nos movimentos contra a ditadura civil-militar (1964-1985). Surgem com os chamados novos movimentos sociais que se efetivam ainda na segunda metade dos anos 1970, com práticas que começaram a rechaçar os movimentos tradicionalmente instituídos e que politizaram o cotidiano nos locais de trabalho e moradia, inventando novas formas de fazer política. Vieram quando “novos personagens entraram em cena”,10 quando emergiram novos atores políticos que, no cotidiano, lutavam por melhores condições de vida, trabalho, salário, moradia, alimentação, educação, saúde e pela democratização da sociedade. Esses movimentos começaram a existir com os próprios “estilhaços” que resultaram das derrotas impostas aos movimentos sociais com o golpe de 1964 e com o AI-5, em 1968. Seus “sobreviventes”, ao pensar criticamente as várias experiências de oposição nos anos de 1960 e 1970, fizeram emergir nos bairros e, logo a seguir, nas fábricas, “novas políticas” que substituíram as tradicionalmente utilizadas. Sobretudo das crises da Igreja, das esquerdas e do sindicalismo, que a ditadura acirrou e aprofundou, surgiu uma série de movimentos sociais produzindo novos caminhos. Estes, por sua vez, forjaram práticas ligadas à teologia da libertação, repensaram certas leituras do marxismo, a oposição armada à ditadura e o movimento sindical. Emergiram desses novos movimentos sociais, dessas novas práticas, outros rostos, outras fisionomias para os direitos humanos. Vários grupos surgiram como importantes trincheiras contra as violências cometidas e que, ainda hoje, persistem na disposição de afirmar e apontar para as lutas junto aqueles cujas existências continuam sendo negadas, marginalizadas e exterminadas.
Entretanto, apesar da potência desses movimentos que possibilitaram formas de expressão contrapostas ao fechamento ditatorial, as lógicas de poder e as racionalidades do Estado não foram modificadas, sequer atingidas. As lutas que pretendiam alcançar a “igualdade e a justiça social” acreditavam que isto só poderia acontecer pela tomada e apropriação do aparelho de Estado. Mudanças só seriam operadas a partir da utilização das mesmas racionalidades que, segundo Agamben, constituem a máquina estatal moderna: a democracia instituída pela política de representação e, paradoxalmente, a existência de um estado de exceção.11 Estaremos longe, portanto, de uma nova ética afirmativa dos direitos enquanto não enfrentarmos o risco das revoluções, não mais das macro revoluções, mas sim das invisíveis rupturas trazidas pelas revoluções moleculares em nossas práticas cotidianas de poder.
Afirmamos, portanto, a processualidade dos direitos como conquista datada historicamente e do humano como permanente criação de si e de modos de viver. Assim também, é preciso estranhar a crença em conceitos abstratos e transcendentes como os de direitos e o de humano. Esta é uma forma radical — a partir das experiências de cada um de nós na coletividade, na imanência das nossas práticas e das lutas no tempo histórico — de problematizar direitos que vão sendo forjados e uma humanidade que vai se construindo.
Reafirmamos que, se direitos e humano não são entendidos como objetos naturais, podemos produzir outros direitos, outros humanos. Direitos não mais universais, absolutos, contínuos e em permanente estado de aperfeiçoamento, mas locais, descontínuos, fragmentários, processuais, em constante movimento e devir, como as forças que nos atravessam e nos constituem.
Por uma processualidade ético-política
Como já afirmado anteriormente, compartilhamos com os pensadores da Filosofia da Diferença que as práticas sociais produzem incessantemente os saberes, os objetos, os sujeitos, enfim, o mundo e os homens que nele habitam. Diferentemente de uma certa concepção de ciência dominante no Ocidente — que se funda em uma crença nas essências e verdades imutáveis, onde tudo que existe é naturalmente dado —, tentamos nos conectar com a força de um pensamento que não imita ou reproduz os modelos já dados, onde a verdade é sempre provisória e múltipla, voltada para a potencialização, não sendo algo pré-existente a ser descoberto.12
Assim, torna-se para nós importante caracterizar duas formas de expressão do pensamento que estão no mundo e que se presentificam em qualquer área do conhecimento: o pensamento que se alia à diversidade da vida e o pensamento reduzido às regras, normas e certezas. “O primeiro constrói uma ética, enquanto o segundo segue aprisionado na moral.”13
Este último pensamento dominante no Ocidente traz um determinado modo de conceber o mundo onde, diante do movimento da vida em suas infinitas e múltiplas mutações, busca meios para construir um mundo ordenado, seguro e permanente. Este pensamento, acompanhando uma certa lógica platônico-cartesiana, dentre outras, irá desqualificar o mundo das experiências sensíveis, do movimento por sua incapacidade de se auto-ordenar e, por isso mesmo, considerado fonte de ilusão e de erro. Busca, então, a ordem das verdades permanentes, afirmando a existência de dois mundos: o sensível e o das ideias perfeitas. No primeiro, não haveria verdadeiro conhecimento, pois o domínio do sensível é apenas opinião, conjectura, crença e não saber. Só no mundo do inteligível, das ideias, das essências, lugar dos modelos superiores, será possível haver verdadeiro conhecimento.
Procura-se, portanto, a inteligibilidade dos acontecimentos e das coisas sensíveis não neles mesmos, na imanência, mas em um outro mundo transcendente fora da experiência sensível. O mundo sensível é, pois, uma região inferior “e que, no melhor dos casos, conquista uma realidade segunda, torna-se cópia, caso deixe-se ordenar à semelhança do mundo modelar das alturas”.14
Essas colocações apontam para um homem que, por seguir as leis, seria recompensado, e para um outro que, estando fora delas, receberia castigos.
Assim, ao aceitar a lógica da moral, atribui-se à Lei o poder de salvar o homem, pois este estaria dominado por tendências perversas, visto sua “natureza” incompleta estar sempre em falta. 
Se vivemos reduzidos à “consciência e seus decretos”, estamos no campo da moral, muitas vezes confundido com o da ética, que impõe deveres a instâncias exteriores: o Estado, o Bem, a Lei, a Razão, Deus, as hierarquizações e os valores declarados absolutos, universais e transcendentes ao tempo em que emergiram.
Assim, segundo Deleuze, é importante voltarmo-nos para uma potência positiva que nega tanto os modelos 
quanto as reproduções, visto que há “que se interrogar as produções sociais”.15
A construção de um “eu” das essências nos tornou prisioneiros da moral, que impõe proibições e obrigações, um “deve-se”. Entendemos que estes deveres são historicamente criados, datados, sendo locais, fragmentários, parciais e temporários e não universais, homogêneos e totalizantes segundo as concepções dominantes.
Portanto, a moral estará sempre relacionada a um sistema de julgamento, o que a diferencia da ética que desarticula esse sistema. A moral impõe e naturaliza a oposição entre os valores universais Bem/Mal, aos quais o homem sempre deverá estar subordinado. Essas categorias de Bem/Mal referem-se à falta/mérito, ao pecado/remissão.
Não por acaso, esse tipo de pensamento é o sustentáculo do sistema capitalista contemporâneo, no qual ao lado da crença nas essências se afirma também a responsabilidade individual. Cria-se a falsa noção de sujeito autônomo, do livre arbítrio, sempre no plano individual, respaldado pela crença na democracia representativa. Neste modo de ser e de estar no mundo, tudo será responsabilidade e atributo desse indivíduo. Entretanto, esta é apenas uma das formas possíveis de subjetividade em nosso mundo. Ela expressará uma característica cara ao modo de funcionamento capitalista: a meritocracia onde tudo depende da capacidade e da eficiência individual. Cada um passa a ser responsável pelo que é e pelo o que consegue fazer. Hoje, no neoliberalismo, exige-se que esse homem seja cada vez mais flexível. O fracasso e o sucesso são, então, considerações individuais associadas aos modelos de Bem e de Mal.
Entendemos que as perspectivas da Lei, do Bem e da Obediência, que normatizam as condutas, constituem-se em uma atitude moral que se distingue de uma outra postura a que chamam ética. Esta pressupõe uma outra atitude diante do mundo, um outro olhar filosófico e político que desarticula o sistema de julgamento, não aceitando a oposição Bem x Mal.
Os bons e maus encontros na militância ética
O filósofo Espinoza, para explicar o que entende por mau, lançar mão de uma explicação não moral. Para ele, o mau será sempre o que chama de um mau encontro que é como se fosse “... a ingestão de um veneno, ...que diminui ou destrói nossa potência de existir, nos entristecendo ou matando. O bom seria como um alimento, que se compõe com nosso corpo, constituindo um bom encontro, a medida que aumenta nossa potência de existir, produzindo afetos de alegria. Como um alimento ou um veneno, nem tudo o que é mau em um momento para um indivíduo, em um determinado lugar, o é necessariamente, se um dos elementos no 
encontro variar, como o lugar, o tempo, o corpo ou a ideia”.16
Desta forma, o que pode ser veneno para nós em um determinado tempo ou lugar pode ser alimento em outro tempo ou lugar.
No cotidiano do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, estamos atentos para potencializar e afirmar os bons encontros. Difícil tarefa, pois seus membros constituem-se, principalmente, de familiares de mortos e desaparecidos políticos e de militantes que sofreram ou não os horrores da tortura, do exílio e da clandestinidade e, ainda, de muitos que hoje são atingidos pelas mais diversas violências institucionalizadas. Como transformar os efeitos dessas experiências pontuadas pela dor, sofrimento, negação, perdas, em instrumentos de luta, potencializando e reinventando essas vidas?
O silenciamento a respeito de suas histórias, o encobrimento oficial de suas vivências, tudo remete à fragilização, à tristeza, ao desânimo e à impotência. No entanto, sempre entendemos que a força de suas histórias, lutas e intervenções no cotidiano evidenciam o guerreiro, o inventor, o nômade que há em cada um. O retorno à militância, à participação ativa nos enfrentamentos e na reafirmação da solidariedade através das iniciativas do grupo, sempre coletivas, têm trazido para muitos outras relações nas quais a alegria se expressa, o veneno se transforma em alimento e a vida se faz mais vibrante.
Chamamos, pois, ética a uma capacidade da vida e do pensamento que nos constitui e nos permite selecionar, nos diferentes encontros que temos, algo que possibilite ultrapassar as experiências condicionadas pela sociedade em que vivemos, em direção a outras experiências, mais abertas, mais livres e diversas, em um processo de aprendizado e avaliação constante.
Como, apesar deste mundo neoliberal de controle globalizado, efetuar uma existência voltada para uma ética na qual possamos evitar nos sentir prisioneiros de pré-conceitos, de verdades, de modelos já definidos?  Como buscar não ser apenas produtor-reprodutor e, portanto, refém de uma moral consumista, mercadológica, individualista, ajuizadora, condenatória, autoritária, segregadora, hierarquizante, disciplinadora e controladora, a qual vem se fortalecendo nestes tempos atuais?
Faz-se necessária a produção de “... homens livres por estarem ligados a sua própria potência de produzir e afirmar seus devires criadores. É a partir do modo que se produz e se transmite energia, que não mais parasita, mas que estabelece... [intensos encontros], que as condições de existência da vida poderão encontrar seu meio de expansão e expressão da alegria, efeitos do aumento da capacidade de agir e pensar da Terra, na Terra, pela Terra”.17
Notas
1 Gilles Deleuze. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992.
2 Michel Foucault. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. Rio de Janeiro, Martins Fontes, 2002.
3 Ver: Cecilia Maria Bouças Coimbra, Lilia Ferreira Lobo e Maria Livia Nascimento. “A invenção do humano como modo de assujeitamento” in Manoel Mendonça Filho e Maria Tereza Nobre (orgs). Política e Afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa. Salvador/São Cristóvão, EDUFBA/EDUFS, 2009, pp. 31-42 e Cecilia Maria Bouças Comibra, Lilia Ferreira Lobo e Maria Livia Nascimento. “Por uma invenção ética para os direitos Humanos” in Psicologia Clínica, v. 20.2. Rio de Janeiro. 2008, pp. 89-102.
4 Ver: Michel Foucault. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado.Rio de Janeiro, Graal, 1988.
5 Michel Foucault, 2002, op. cit..6 Sobre o tema, consultar: Cecilia Maria Bouças Coimbra, Lilia Ferreira Lobo e Maria Livia Nascimento, 2009, op. cit..
7 Vera Malaguti Batista. O preocupante porvir. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia, mimeogr., 2008.
8 Paul Veyne. Como se escreve a história. Brasília, Cadernos da UNB, 1982, pp. 162 e 164.
9 Gilles Deleuze, 1992, op. cit..
10 Eder Sader. Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
11 Giorgio Agamben. Estado de exceção. Tradução de Iraci Poleti. São Paulo, Boitempo, 2004.
12 Sobre o assunto consultar Cecilia Maria Bouças Coimbra e Maria Beatriz Sá Leitão. “Direitos Humanos e a Construção de uma Ética Militante” 
in Janne Calhau Mourão (org.). Clínica e Política 2: subjetividade, direitos humanos e invenção de práticas clínicas. Rio de Janeiro, Abaquar/Grupo Tortura Nunca Mais-RJ, 2009, pp. 315-325.
13 Ana Maria do Rego Monteiro Abreu. O Simulacro na Clínica. Rio de Janeiro, USU, Programa de Especialização em Psicanálise da CEPCOP, mimeogr., 1990, pp. 60-61.
14 Luiz Fungati. “Saúde, Desejo e Pensamento” in Saúde e Loucura, n. 2. São Paulo, Hucitec, 1990, p.22.
15 Gilles Deleuze. A Lógica dos Sentidos. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1974.
16 Luiz Fungati. A Ética Como Potência e a Moral Como Servidão. São Paulo, Escola Nômade de Filosofia, mimeogr., 2001, p. 4.
17 Idem, p. 88.

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