terça-feira, 19 de março de 2013

entrevista com Simone Diniz


Por Mariana Portella e Allan Monteiro

Foto: Cecília Bastos/Jornal da UspNo Brasil, a prática obstétrica não é orientada unicamente pela ciência, mas principalmente por preconceitos de cor, gênero e status social. Esta é a opinião da pesquisadora Simone Diniz. Considerada uma das mais destacadas pesquisadoras em saúde materna, a entrevistada deste número é formada em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e há muitos anos dedica-se ao estudo da saúde pautada em questões de gênero. É professora da Faculdade de Saúde Pública, na USP, e autora de vários livros, entre eles Parto Normal ou Cesárea - o que toda mulher (e homem) deve saber (2004).

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Coletiva - Você é médica, mas suas pesquisas extrapolam os limites da saúde, contemplando várias questões que fazem parte das ciências humanas, como questões de gênero e de poder. Além disso, você tem um histórico de atuação ligado ao ativismo feminista. Como se deu essa trajetória profissional?

Simone Diniz - Quando terminei a faculdade de medicina fiquei em dúvida se seguiria a ginecologia e obstetrícia ou o campo da saúde coletiva. Aí eu fui fazer medicina preventiva. Eu fui fazer um tipo de medicina que era baseada em prevenção da doença e promoção da saúde. Então a minha formação na pós-graduação, na residência, no mestrado e no doutorado, incluíam as ciências sociais. Também na minha experiência clínica, tanto na residência como também no Coletivo Feminista, a gente tinha uma abordagem da saúde que era distinta do que propõe a medicina hegemônica, médico-centrada, que era uma abordagem mais relacionada ao compartilhamento de informação e de poder com a mulher, para que ela pudesse navegar entre as escolhas que ela tinha com relação às suas questões de saúde, tanto as mais fisiológicas, como menstruação, gravidez, parto, menopausa etc. como doenças mesmo. Então essa formação da própria assistência era uma formação crítica, mas vindo de uma trajetória feminista, pelo trabalho no Coletivo, pela participação nessas redes.
Na década de 80 a gente tinha uma agenda de ativismo feminista que incluía tanto a regulação da fertilidade para o lado de não ter filho, quanto a gravidez e parto, para o lado de ter filho. Havia um material feminista sobre gravidez, parto e pós-parto muito bacana, muito bem feito. Tanto o seu conteúdo era muito denso, muito trabalhado, como era muito bem escrito e editado, as publicações eram muito bonitas. Isso se perdeu totalmente para a geração mais recente, mas havia uma atuação feminista muito forte a respeito da assistência ao parto na década de 80, tanto no Brasil como em outros países. Isso foi se esvaziando um pouco na década de 90, eu diria até que houve uma separação do ativismo, porque o debate sobre saúde materna deixou de caber no campo da saúde sexual e reprodutiva, o que é uma pena.
Coletiva - Como você define o cenário obstétrico brasileiro atual?
O modelo de assistência ao parto no Brasil, falando do ponto de vista da melhor evidência científica, nem é seguro e nem é efetivo. Parte disso se deve à aposta na assistência centrada no médico de formação cirúrgica. O que acontece quando você coloca profissionais que são cirurgiões, em um ambiente cirúrgico, para cuidar de mulheres saudáveis? Obviamente vai haver uma tendência a ter mais cirurgias. É a vocação do cirurgião, do ambiente cirúrgico. Nesse sentido, não há nada de inesperado no cenário obstétrico brasileiro.
Outra coisa é que esse modelo é baseado em crenças irracionais sobre o corpo da mulher. E essas crenças se refletem na técnica, na organização do serviço, no ethos institucional, na própria arquitetura do serviço. Ela organiza uma estética a respeito do parto como sendo algo horrível, nojento, uma coisa que deve ser prevenida. Então o padrão ouro de assistência passa a ser o não-parto, ou seja, não ter parto, o parto ser prevenido. Aquela imprevisibilidade, aquelas secreções, aquela pessoa gemendo, tudo isso deve ser apagado, ao ponto de cada vez menos as mulheres no Brasil terem chance de entrar em trabalho de parto.
Então você tem uma tendência a ter não apenas uma grande quantidade de cesáreas, mas também esse modelo de assistência ao parto vaginal que é um modelo obsoleto, inseguro e que provoca muito sofrimento físico e emocional nas mulheres. Os dados mais recentes mostram que a maioria das mulheres que dá à luz pela via vaginal o faz em posição de litotomia (deitada com a barriga para cima e pernas levantadas). A maioria delas tem o seu parto induzido ou acelerado com ocitocina. A maioria tem sua vagina cortada numa episiotomia (para supostamente facilitar a passagem do bebê). Cerca de 40% são submetidas a uma manobra de Kristeller (expulsão forçada, empurrando a barriga da gestante). Na hora do parto mesmo, apenas em torno de um terço das mulheres, tanto do setor público quanto do privado, tem seu direito a acompanhante respeitado, e assim por diante. Então a experiência do parto vaginal é “pessimizada”, ela é tornada mais sofrida física e emocionalmente, para se oferecer, em comparação, a cesária como experiência mais aceitável. Esse é mais ou menos o quadro que a gente tem. Um modelo com resultados inferiores aos alcançados em um sistema de assistência hierarquizado, ou seja, aquele em que você tem os partos normais das mulheres saudáveis sendo atendidos por parteira qualificada e em que apenas no caso de complicações você tem médicos que atendam as mulheres que precisam de intervenções cirúrgicas.
Coletiva - O parto vem se tornando um tema bastante recorrente nas pesquisas acadêmicas. Na sua opinião, que aspectos contribuem para tornar o parto e a assistência ao parto no Brasil em objetos de estudo atrativos e relevantes?
Eu acho que o que tem de muito interessante é que a situação brasileira é muito paradoxal; Esse é um assunto interessantíssimo para as ciências humanas. A gente tem a chamada medicina baseada em evidência científica, padrão ouro, com ensaio clínico randomizado, revisão sistemática etc. –, pois bem, o padrão ouro da medicina vai para um lado, e a prática no Brasil vai para o lado oposto, elas são desconectadas. A prática no Brasil é muito informada por preconceitos, por vieses, por distorções do pensamento, por distorções de gênero, de hierarquia social, poder e assim por diante, e menos pela ciência, então isso chama muita atenção e torna o modelo brasileiro um objeto de pesquisa muito interessante.
As pessoas têm muita dificuldade de sair da narrativa do parto como maldição para entender porque que, de acordo com a ciência, os melhores resultados para a mulher e para o bebê, em termos de saúde e de satisfação, podem ser aqueles associados ao parto fisiológico espontâneo, com mais de 39 semanas, assistido por um profissional treinado, com integridade perineal de preferência, sem drogas etc. Essa afirmação, hoje aceita em outros países, é uma instabilização radical do conceito de gênero, principalmente no Brasil. Uma pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo perguntou a homens e mulheres qual é a pior e qual a melhor coisa de ser homem e de ser mulher. Sabe o que os homens respondiam em sua maioria? Que a melhor coisa de ser homem é não dar à luz, não passar pela dor do parto. Então, se as mulheres podem tudo que os homens podem, e além do que o parto pode ser até uma coisa quase divertida, orgásmica etc., o que é que sobra de vantagem para a identidade masculina? A desconstrução da ideia do parto como maldição e sofrimento é uma ameaça conceitual de gênero extraordinária. A ideia de que a pessoa possa ser tratada com importância, que ela esteja no centro da cena, que ela seja operadora do “milagre da vida” naquele momento e que ela até praticamente se divirta, que seja uma coisa intensa, um grande desafio, apesar das dificuldades e sofrimento, tudo isso é uma ameaça conceitual muito grande, do ponto de vista de gênero. Ainda mais porque precisa-se desse mito de que o parto é uma coisa horrenda para justificar toda essa infraestrutura que a gente tem de assistência, de ter que ser com o médico, ter que ser no hospital, ter que haver o anestesista, toda aquela parafernália, janela de plasma etc. Você sabe o que é janela de plasma?
Coletiva - Não. Como é isso?
A janela de plasma é um serviço oferecido em maternidades, porque maternidade é basicamente hotelaria, não é? É uma janela de vidro com um pequeno auditório atrás. Nesse auditório sentam-se os familiares durante a cesárea, um serviço oferecido com hora marcada, com lanche, bebida e tudo mais. Na hora em que o bebê nasce, a janela de plasma é acionada e deixa de ser translúcida para ser transparente e aí o bebê é apresentado para a família. Para fazer esse tipo de coisa você precisa de um planejamento. O parto precisa ser marcado, a cesárea precisa ser agendada, a mulher tem que se dispor a ir para lá, ficar quietinha enquanto o pessoal anestesia, retira o bebê etc.  Então, para tudo isso funcionar junto, você precisa dessa crença de que o trauma genital controlado é a maneira superior de nascimento do bebê. Essa questão não tem nada a ver com evidência científica sobre segurança, nem sobre efetividade, nem sobre satisfação com o parto. São construtos culturais e esse descolamento é bastante extraordinário para pesquisa.
Além disso, no Brasil, o próprio termo “Medicina Baseada em Evidência” chama muito preconceito, em parte por um ranço do autoritarismo médico, que acaba prejudicando a interpretação das pessoas a respeito do que seja o movimento. Na verdade, uma das coisas que o movimento mais preza é pelo direito à escolha informada por parte do paciente. Quem é o principal beneficiário da evidência? O paciente. Os fundadores do movimento diziam que a medicina baseada em evidência deve fornecer alguma luz para a pessoa que é atendida, porque essas pessoas querem decidir sobre seus corpos, querem estar cientes dos riscos e dos benefícios. Na cultura brasileira só o médico toma decisão, o paciente não decide nada, só obedece. Então existe essa interpretação equivocada, que confunde os princípios do movimento com o autoritarismo que ronda a figura do médico no Brasil.
Da mesma forma, acho que as pessoas têm uma relação com a medicina baseada em evidência de quem não conhece a história de ativismo, transformação social e dos movimentos sociais que estão por trás disso, sobretudo na parte de assistência ao parto, já que as primeiras revisões sistemáticas de ensaios clínicos randomizados foram feitas por demanda das usuárias desse tipo de assistência. Em 1979, aqui no Reino Unido, estava se definindo que as enfermeiras e parteiras passariam a fazer episiotomia, um processo muito diferente do Brasil, em que ela já era feita como rotina há muito tempo. Muitas mulheres foram contra, se organizaram e fizeram, elas próprias, um inquérito, um survey, sobre a experiência das mulheres com a episiotomia. Tabularam o survey com quase duas mil pessoas e foram para cima dos médicos dizendo que as evidências delas mostravam que a episiotomia piorava a situação das mulheres, não ajudava em nada e que ou eles apresentavam evidência convincente ou elas iriam processá-los por lesão corporal. E foi assim que nasceu o primeiro ensaio randomizado sobre episiotomia. Fizeram um, fizeram dois, fizeram três, fizeram revisões dos ensaios para dizerem “puxa, as mulheres tinham razão”. Não que não houvesse ensaio clínico randomizado. Tinha um monte, mas eles perguntavam “qual é o melhor fio para sutura?”, “qual é o melhor anti-inflamatório?”, “é melhor cortar com bisturi ou com tesoura?”, esse tipo de coisa. Nenhum se perguntava: “é para fazer episiotomia?” Se não fossem as mulheres, ninguém tinha colocado isso na agenda de pesquisa.
Agora, trinta anos depois do primeiro ensaio clínico sobre a episiotomia, como é que estão as coisas no Brasil? Mudou a situação no Brasil? Muito pouco. Porque a evidência não necessariamente orienta a prática. No Brasil, o que orienta a prática é o conhecimento autoritativo, somado aos fatores de gênero, de raça e de hierarquia social.
Um exemplo vem da ideia de que hierarquia social tem implicações no direito de escolha, e aqui eu cito a pesquisa da Rosana Martinho da UFBA, aluna da Lígia Vieira da Silva, na qual ela pergunta para os profissionais da rede pública e privada quem é que deve decidir sobre a via de parto, ou seja, se vaginal ou cesáreo. Na rede pública o discurso recorrente era de que esta deve ser uma decisão clínica, em que o médico vai pesar os riscos e os benefícios, enfim, é o médico quem decide. Já na rede privada o discurso é de que a mulher é diferenciada, por ter mais educação e informação, então ela pode entender mais e, portanto, tem direito à autonomia, ou seja, ela decide tudo. Portanto, até o direito à autonomia a gente localiza nas hierarquias sociais. Tem um grupo que merece autonomia e outro que não merece. O andar de baixo não merece. Essa complexidade da sociedade hierárquica do Brasil, associada à desregulação da prática, cria esse quadro complexo.
Coletiva - Na sua opinião, a formação do médico obstetra no Brasil contribui para reforçar esse modelo de assistência?
Sim. Há trabalhos importantes sobre o tema, como o de Sonia Hotimsky, que mostram que, em linhas gerais, a formação desses profissionais se baseia menos em evidências científicas, é negligente com o direito das mulheres, além de haver uma tendência de perpetuação de estereótipos de gênero e de hierarquias sociais em geral, da questão do racismo, da eugenia. Além disso, é uma formação centrada em intervenções e que trabalha muito pouco a promoção do parto fisiológico, espontâneo. Acho que essa noção é até um pouco estranha para a formação. Eu diria que, até recentemente pelo menos, muitas pessoas se formavam sem terem tido a oportunidade de acompanhar um parto fisiológico planejado. A não ser que fosse acidental, no corredor do hospital.
Outro fator que contribui para isso é a crença de que o cuidado do médico no parto normal é superior, mais efetivo, mais seguro, diferente do que se acredita em outros países. Então existe essa crença na superioridade do cuidado médico quando se refere ao fisiológico e isso acaba, de certa forma, legitimando a formação que não ensina o médico a saber lidar com isso, já que as pessoas tendem a considerar a intervenção como sendo superior à não intervenção, no caso do parto. A cesárea é um exemplo gritante, e isso também tem a ver com a falta de regulação. Se o médico tem uma taxa de 100% de cesárea, 100% de episiotomia ou 100% de indução do parto nas suas assistências, ninguém está regulando isso. Nós não temos informação sobre episiotomia no Datasus, não sabemos nada sobre desfecho perineal no Datasus. O que existe é esta superestimação dos benefícios e a subestimação dos riscos da assistência medicalizada, baseados, exatamente, na superestimação do risco do parto fisiológico espontâneo. Então, o parto fisiológico passa a ser apresentado como uma coisa muito mais arriscada do que realmente é, muito mais dolorosa, como se isso fosse sua essência, não fosse um construto social. As culturas tratam o parto de maneiras diferentes. Atualmente, é difícil conseguir ter um parto fisiológico no Brasil. Ou você vai para as margens do sistema, em busca de serviços alternativos, ou você vai para fora do sistema. Eu digo isso porque eu dei à luz em casa. E o que a gente observa é que as pessoas estão, hoje, tentando construir essas alternativas.
Coletiva - Passamos por um momento de marcha de mulheres em favor do parto domiciliar, temos o curso de obstetrícia da USP, algumas casas de parto pelo Brasil, que são poucas ainda, quase sempre fechando, mas que ainda existem, enfim, você consegue identificar alguma perspectiva de mudança no cenário de assistência ao parto no Brasil?
Eu acho que as coisas estão mudando, num ritmo muito devagar, mas estão mudando. Primeiro, devem ser reconhecidos os avanços significativos. A universalização da assistência, por exemplo, é muito positiva e o próprio SUS tem um papel muito importante nisso. Temos agora a Rede Cegonha que, apesar do nome – que na minha opinião pretende sinalizar a lealdade com a igreja e o rompimento com movimento feminista – traz um questionamento interessante ao modelo médico-centrado, por meio da proposta de criação de casas de parto, da incorporação da enfermeira obstetriz e da obstetriz. Enfim, são propostas potencialmente positivas. Apesar disso, tem a área técnica no Ministério fazendo um esforço importante para tentar viabilizar algumas mudanças.
Também em relação às taxas de episiotomia há uma tendência de queda, apesar dos níveis serem muito altos. Tivemos também boas sinalizações, por exemplo, de que não se pode mais partir do pressuposto de que as mulheres preferem a cesárea. Existe uma blogosfera feminista com relação a isso que é intensíssima. A questão da violência no parto também tornou-se visível. Houve também a conquista da manutenção do curso de obstetrícia da USP, que tentaram fechar, o que é uma grande vitória. Enfim, as coisas estão mudando, com muita resistência, inclusive com algumas radicalizações da resistência como, por exemplo, aquela postura do Cremerj (Conselho Regional de Medicina-RJ, que tentou proibir os médicos de acompanharem partos domiciliares, sob pena de cassação da licença profissional). Mas, enfim, cada radicalização deles teve uma resposta à altura.
Coletiva - Para finalizar, e aproveitando que você está morando em Londres neste ano, quais são as diferenças fundamentais que você apontaria entre o modelo de assistência aí do Reino Unido e o modelo aqui do Brasil?
Simone Diniz - A diferença mais gritante é que aqui 99% das pessoas dão à luz pelo sistema público. A outra é que a grande maioria dá à luz com parteira, que acompanha o seu pré-natal, seu parto e seu pós-parto. Aqui o lema é: “toda mulher precisa de uma parteira e algumas mulheres precisam também de um médico”. Trata-se de um sistema hierarquizado, com diversos níveis de assistência, em que cada profissional tem seu nível de competência e esses níveis são diferentes entre si. O sistema é hierarquizado, inclusive, para permitir que as pessoas possam ter parto em casa. E quem vai dar a luz em casa? A mulher que é saudável. Ou seja, a grande maioria das mulheres. Não é a mulher que tem uma hipertensão, uma diabetes, uma pré-eclâmpsia, uma história de perda total etc. Aqui você pode ter um parto em casa pelo sistema público, assistido por uma parteira. Um outro aspecto diferencial é que aqui o foco é promover a normalidade, preservá-la. É a ideia de manter o parto o mais normal possível. Tudo, em um sistema bem estruturado de diagnóstico precoce de possíveis intercorrências, quando então o médico é acionado. Um sistema ágil, efetivo e seguro. No Brasil, por outro lado, insistimos no modelo medicocêntrico, mas tenho grandes esperanças de que estamos no rumo da mudança.

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