Caverna dos Sonhos Esquecidos e Sem Sol sugerem: sempre que ser humano aproxima-se da realidade, esta escapa-lhe entre os dedos
Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.
Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010) e Sem Sol (1982), dirigidos por Werner Herzog e Chris Marker, respectivamente, partem de temas distintos: o primeiro investiga as pinturas rupestres mais antigas da História, descobertas na gruta de Chauvet, na França. Já o segundo mostra os relatos de viagem de um homem anônimo, que percorreu o Japão, Guiné-Bissau e outros países, estabelecendo reflexões sobre as culturas e ritos locais. Apesar dos pontos de partida distintos, a obsessão que perpassa os dois filmes, e de certa maneira a filmografia inteira de ambos os cineastas, é a mesma: o papel da memória e a representação da natureza em imagens.
Isto não é um leão
Herzog possui um interesse manifesto pelas artes, pela história e pela arqueologia, mas o que realmente impulsiona o cineasta a adentrar a caverna francesa é a busca de uma nova possibilidade de representação. Segundo suas próprias palavras, o grande interesse nas pinturas pré-históricas, com seus animais e desenhos de caça, é poder imaginar como os homens viviam naquela época, e como representavam sua própria rotina através dos rabiscos nas paredes. Diante da impressão de movimento dos animais, ele exclama: “É quase um protocinema…”

Quando encontra um jovem arqueólogo, o diretor torna-se fascinado pelos sonhos do rapaz, que passou a dormir e vislumbrar leões após a visita à caverna. O cineasta pergunta: “Mas você sonhava com leões verdadeiros, ou desenhos de leões?”. “Os dois”, responde o outro. Esta é a verdadeira fascinação deste magnífico documentário, Caverna dos Sonhos Esquecidos: compreender o que se perde, se ganha ou se transforma na apreensão artística em imagens.
Perder o esquecimento

Como a caverna de Herzog, os mitos de Marker são representações de fatos passados, memórias cristalizadas em gestos humanos. A narração inicial separa dois aspectos da percepção humana: a evidência concreta (qualquer um pode constatar, diante de uma tela preta, que se trata de uma tela preta), e a interpretação dependente do tempo e do espaço (nem todas as pessoas vão interpretar a imagem como símbolo de felicidade, algumas talvez vejam o tédio, a apatia etc).
O que interessa ao francês é a passagem de uma instância semiológica à outra. Quando é que um fato (a presença de três garotinhas) torna-se uma interpretação (a imagem da felicidade)? Marker seleciona imagens de diversas cerimônias no Japão, que vão de homenagens à alma de bonecas quebradas aos templos dedicados aos gatos perdidos. Os lugares estão povoados por lápides, estátuas, pedras (como as pedras das cavernas de Chauvet), mas as pessoas veem nestes símbolos mais do que pedras. Para elas, trata-se de uma possibilidade de contato com o além, uma comunicação transcendental. Não é por acaso que tanto Herzog quanto Marker flertam com o discurso religioso: os filmes de ambos partem da realidade concreta para compreender significados e valores abstratos – que permeiam tanto a filosofia quanto as crenças metafísicas.

Jacarés albinos
Após visitar a caverna, o filme de Herzog toma um rumo inesperado ao adentrar uma estufa próxima da gruta de Chauvet, onde foram criados artificialmente jacarés de todos os tipos. O cineasta observa dois jacarés albinos, diferentes dos demais. Logo, ele imagina se os humanos, diante das pinturas rupestres, não são como esses jacarés, incapazes de compreender a natureza que os cerca: serão eles os diferentes, ou todos os demais? Como estes animais interpretam os jacarés comuns ao redor? O que pensariam do mundo exterior, se saíssem da estufa?

Nestes dois filmes complexos e perturbadores, o procedimento é o mesmo: apreender a natureza, interpretá-la, analisar suas entranhas, microscopicamente, para depois admitir, em sua pequenez humana, que ainda não conhecemos tudo, que a imagem nunca vai traduzir ou conter o real. Esta postura agnóstica – ou simplesmente racional, cética – é de um profundo humanismo, porque valoriza acima de tudo o conhecimento, tanto pela ciência quanto pela arte.

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