quarta-feira, 25 de agosto de 2010

UMA CONVERSA

Dia desses, fui visitar o compadre Mário, um preto velho que conheci na infância, pra trocar um dedo de prosa com ele. Cheguei devagarzinho, pra não atrapalhar a sua sesteada na rede pendurada nas bergamoteiras. Puxei o banco de três pernas e sentei, olhando pra bem longe, no horizonte, pra ver se eu conseguia enxergar as mesmas coisas que ele vê quando mira lá no infinito o seu olho quase cego.
Enquanto meus olhos me levaram pra longe, chegou o seu Pedro, um benzedor que me benzia pra cobreiro (mijo de aranha). Seu Pedro é branco, miúdo e fala pouco.
Fui picando o fumo pra acordar o velho já com o palheiro aceso, mas antes busquei a cachaça que ele guarda na pipa de carvalho. Seu Pedro, que só bebe os elixires que ele próprio prepara com as ervas que busca no mato, foi aquecer a água na chaleira de ferro e preparar o chimarrão que é a outra bebida que usa.
Aqueles dois nunca se entenderam. Só se reúnem quando apareço para visitá-los. O primeiro que me vê passando com os caniços nas costas, vai para a casa do outro, pois sabe que naquele dia a visita será na outra casa. Enquanto um fala, o outro fica mudo. Cada um tem o seu próprio assunto comigo. Às vezes deixo para chegar na volta da pesca e enquanto fumamos, bebemos e conversamos, asso os peixes na grelha sobre o braseiro. Quando é inverno, o fogo é feito no galpão de chão batido e quando é calor, é feito no pátio, embaixo das árvores, pra ajudar a espantar os borrachudos.
Seu Pedro tentou me convencer que não deveria beber a cachaça e nem fumar o palheiro. Nisso o compadre Mario começou a falar como se estivesse acordado o tempo todo. Me falou: não dá ouvidos pro Pedro, Maria, porque foi ele que quase lhe matou com aquele xarope que lhe provocou aquela alergia que a levou em coma pro hospital. Seu Pedro ficou quieto e pensativo. E logo tascou: mas foi o meu chá que a salvou naquele dia em que ela se empanturrou com a rapadura de melado que você fez. Os dois ficaram um tempão se desaforando, até que comecei a rir deles e puxei outro assunto. O assunto era o que me levou a visitar os velhos pra conversar: as drogas e o álcool.
O seu Pedro começou a explicar quais eram as plantas e os alimentos que poderiam “fazer mal”. Lembrou das situações em que seus xaropes e elixires “fizeram mal” pra quem usou, porque nem todo mundo pode usar todas as coisas, pois cada organismo é de um jeito e reage do seu jeito quando se usa alguma coisa. Também falou muito sobre as plantas que são usadas como “drogas”, ou seja, que dão algum barato.
O compadre Mario emendou, dizendo que qualquer coisa que “faz mal” pro corpo ou pra cabeça, ou que for usado em exagero, vai produzir um estrago na pessoa.
E seguiu falando: o que falta pra essa gurizada que se empanturra de drogas ou de álcool, é aprender a olhar no longe, lá no horizonte, e enxergar a boniteza da vida. A boniteza da vida é uma coisa que eles não nascem sabendo ver. Alguém tem que mostrar pra eles. Alguém tem que mostrar também que podem usar e fazer as coisas que dão prazer, mas que não podem se empanturrar disso. Não podem exagerar. Eles tem que aprender até onde podem ir e o que lhes causa prazer.
Olhem pra nós aqui. Um dia a Maria aparece e nós fazemos as coisas que gostamos, que é conversar, comer, beber, fumar e, vez ou outra, também vem mais alguém que tem outros gostos. Noutros dias, aparecem outras pessoas ou vamos em outros lugares, e também fazemos coisas de que gostamos, mas sabemos que sempre que exagerarmos, o corpo vai reclamar. E se passarmos o tempo todo exagerando em tudo, nosso corpo vai agüentar pouco ou nem vai agüentar.
Drogas e álcool sempre existiram na humanidade e vão continuar existindo. Uns acham que tem que proibir e outros acham que tem que liberar. E enquanto uns ficam fazendo campanha de terror, pra tentar jogar no usuário a responsabilidade pelo uso das drogas, esquecem que muitas outras drogas que acabam com a vida das pessoas todos os dias. No meio disso tudo, esquecem de mostrar pra gurizada e pra todas as gentes, a vida e o prazer da vida.
Naquele dia eu não tinha ido pescar porque estava frio. Levei um pedaço de charque pra fazer um arroz de carreteiro e um pote de ambrosia pra sobremesa. Bebemos demais, fumamos demais, conversamos bastante e comemos demais... terminou que tivemos que beber o chá do Seu Pedro pra baixar aquele exagero todo.

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