Entrevista especial com Marlene Tamanini
As dimensões físicas, psicológicas, políticas e culturais da reprodução assistida no Brasil e no mundo são analisadas pela professora Marlene Tamanini na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line. A maternidade em laboratório tem crescido muito nos últimos anos. Questões relacionadas a este tema são discutidas pela professora. Desta forma, quando começou a estudar o assunto, uma das suas principais preocupações era entender os sentidos de paternidade, de maternidade e de filiação. Explica que o "contexto da maternidade em laboratório está trazendo uma insistência bastante profunda na ideia de que uma mulher só é feliz se for mãe. O laboratório constrói um lugar para essa mulher a partir dos óvulos, dos espermatozoides, da infinidade de materiais que circulam nesse espaço”.
A entrevista foi feita em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT.
Marlene Tamanini é bacharel em Ciências Políticas e Sociais na Escola de Sociologia Política (ESP/SP). É especialista em Metodologia de Pesquisa Gênero Sexualidade e Saúde pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fez mestrado em Sociologia Política Universidade Federal de Santa Catarina e doutorado, pela mesma universidade, no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas com um período na Centre National de la Recherche Scientifique. É pós-doutora pela Universitat de Barcelona. Atualmente, é professora na Universidade Federal do Paraná. É autora de Reprodução assistida e gênero: o olhar das ciências humanas (Florianópolis: UFSC, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que aspectos influenciaram a escolha desse tema de pesquisa?
Marlene Tamanini – Comecei com a tese de doutorado defendida em 2003. Quanto tive que definir um tema de tese, frente aos processos que começavam naquele momento, percebi que esse assunto ainda era muito incipiente no Brasil. Recém havia começado a aparecer na mídia e alguns poucos textos publicados no país sobre a temática. Além disso, tinha a necessidade de compreender melhor por que os casais faziam essa busca por meio de tecnologias, já que frequentemente se ouvia a pergunta: “Por que não adotar?”, ou mesmo: “Por que não ficam sem filho?”. Na época, não eram muito frequentes as clínicas também. Em Florianópolis havia uma clínica que fazia bastante procedimentos, mas era uma única e, normalmente, as pessoas iam para Curitiba, onde moro hoje, ou para São Paulo, e alegavam a necessidade de filhos do próprio sangue.
Na minha história pessoal, o caminho foi um pouco do contexto do aparecimento do tema, das pessoas com quem eu trabalhava dentro de uma reflexão do referencial analítico dos estudos de gênero. Como se tratava de um doutorado interdisciplinar, eu também buscava construir uma problemática de pesquisa que me oferecesse interface com várias áreas do conhecimento e que permitissem uma abordagem interdisciplinar frente às teorias feministas, aos campos da Antropologia, da Sociologia da Reprodução, da Bioética, da Sociologia da Família e, sobretudo, as minhas preocupações em entender os sentidos de paternidade, de maternidade e de filiação.
IHU On-Line – Quais os principais aspectos que envolvem a maternidade e a reprodução global?
Marlene Tamanini – Primeiro, considero que o tema da maternidade é bastante político. Garantias de direitos às mulheres mães e ao cuidado dos filhos entram no caminho do Estado e nas garantias de recursos e estratégias sociais de intervenção nas relações estabelecidas. Além disso, o contexto da maternidade em laboratório está trazendo uma insistência bastante profunda na ideia de que uma mulher só é feliz se for mãe. O laboratório constrói um lugar para essa mulher a partir dos óvulos, dos espermatozoides, da infinidade de materiais que circulam nesse espaço. O interesse por trás disso está vinculado ao controlar, medicalizar e intervir nos corpos e/ou utilizá-los para fins políticos, demográficos, sanitários, higienistas e morais como se fez ao longo de muitos anos.
Cultura da maternidade
No caso da reprodução assistida, essa maternidade se vincula, primeiramente, à vontade de intervenção com uma atitude cultural humana, que busca recuperar a condição de doença de infertilidade. A partir dessa ciência feita na época do Positivismo passou-se a dar um valor muito importante ao útero e visibilidade do óvulo. Então, constitui-se todo um saber médico sobre a questão da infertilidade. Hoje, a maternidade, em quase todos os campos, não só no Brasil, vem associada às práticas biopolíticas e bioeconômicas dos corpos. E aí existem estudos que mostram como as mulheres se constituem hoje doadoras não só de óvulos e de úteros, como também de tecidos vinculados às células-tronco e que são utilizadas para indústrias, para a prática de cosméticos. O volume de embriões humanos que se produz nesses centros de reprodução assistida é bastante importante porque circula em mercados de destaque, bem como em mercados não reconhecidos oficialmente.
"Hoje o material reprodutivo que ela usava para ser mãe é utilizado para muitas outras práticas mercadológicas"
Muito material humano é produzido por mulheres a partir dessa ideia de que ela é mãe, mas essa célula que é a retirada do corpo dela pode ser disponibilizada para outros usos. O cordão umbilical também, é um material importante que sai dos corpos femininos. Então, existe uma rede de trabalho vinculada a ideia de uma mulher que antes tinha as condições de ser mãe a partir do seu corpo e hoje o material reprodutivo que ela usava para ser mãe é utilizado para muitas outras práticas mercadológicas. São operações transnacionais de apoio a pesquisas bioeconômicas, cujo valor econômico de fato nós desconhecemos. Mas sabemos que já está implementada nessas redes de mercado e que são bastante rentáveis em termos bioeconômicos.
Redes de maternidade
Outra característica da maternidade, hoje, também são as complexas e desconhecidas redes de valorização dessas atividades em tarefas que ampliam o conceito de mercado. Por exemplo: o trabalho transnacional feminino em termos de. Aí caímos em um dilema moral, de prostituição ou de redes de mulheres que são colocadas em faxinas, em trabalhos menos valorizados, que também não é pequeno. E essas dinâmicas se ampliam ainda mais quando nós pensamos o setor de serviços, educação, as redes de cuidados. Normalmente, essas dinâmicas migratórias estão muito vinculadas ao cuidado de crianças, ao cuidado de idosos, ao cuidado da casa, que é uma dimensão importante do ato de maternar e que, enquanto esse maternar não for politizado, nós não conseguimos entender o que, de fato, é essa maternidade presente no mundo hoje.
IHU On-Line – Como a ideia de “ser mãe” está presente na reprodução assistida?
Marlene Tamanini – Do ponto de vista da reprodução assistida, há uma insistência bastante grande na ideia de que, primeiro, uma mulher precisa ser feliz se for mãe. Segundo, é importante que ela seja mãe numa situação de conjugalidade estável e, especialmente, numa situação de conjugalidade de perspectiva heteronormativa, de heterossexualidade. Isso eu sinto que é mais forte no Brasil. Em Barcelona, na Espanha, onde estive em 2010 durante o pós-doutorado, está reconhecido legalmente a possibilidade de as mulheres solteiras adentrarem com um pedido de processos de intervenção para a construção de embrião com um doador de sêmem para terem um filho. No Brasil se faz isto; mas não é algo que se faz com tanta tranquilidade e com tanta frequência porque também se pensa que o ideal de família, onde uma criança deve nascer, deve ser formado por pai e mãe.
E aí nós temos também uma dificuldade bastante grande para imaginar a família que não é hétero, que é formada somente por um gênero: só homens ou só mulheres. No caso da Espanha, a maternidade entre casais homossexuais femininos, mulher mãe numa relação de conjugalidade homo foi considerada pela lei foi aprovada. Uma das razões pelas quais foi aprovada é que o valor da maternidade é bastante importante, na região que estudei da Catalunha, e se diz que duas mulheres, duas mães nunca são demais na vida de uma criança. E a mãe que gera, no caso a mãe uterina, tem uma visibilidade importante porque o útero cresce e as pessoas reconhecem que ela, afinal de contas, é agora feminina. E a outra mulher da relação de conjugalidade, normalmente entra com a doação dos seus próprios óvulos, fazendo com que se constitua essa gravidez. E, assim, ela vai ter que construir sua relação com a maternidade ao longo da relação com a criança e publicizando para os outros que ela é mãe porque cuida. Porque, ainda que ela não vá ter o útero participando para dar visibilidade ao corpo dela “grávido”, vai participar geneticamente e depois com a construção pública que ela fizer desse ato.
"Duas mães nunca são demais na vida de uma criança"
Isso nos países tem conjugações legais diferentes. Não é todo lugar que funciona assim, uma vez que cada país foi construindo sua forma de entendimento legal sobre esse tipo de prática. No caso dos homens, pensando na Espanha, eles não tiveram o direito reconhecido de paternidade pela lei, quando estão em conjugalidade homossexual, porque é proibido o aluguel do útero, como é proibido no Brasil. Aqui existe hoje uma resolução que saiu em 2010 segundo a qual uma mulher pode gestar para outra mulher desde que ela seja aparentada com a mãe, quer dizer, com a mulher do casal, ou um casal pode ter um filho e a mãe da mulher da relação de cônjuges, ou a irmã, ou alguém aparentado até segundo grau gerar para eles.
Barriga de aluguel
O que o Brasil faz, nesse caso, é a barriga de substituição, que também vai acabar por constituir uma rede de mulheres bastante importante nesse caso brasileiro de parentesco, vinculado à mãe. Em 2004, em Belo Horizonte, uma sogra gerou uma criança no seu útero com o óvulo da esposa do filho. São arranjos que a sociedade vai construindo.
Quando penso a maternidade, estou tentando ampliar esse conceito. Imagino-a nos diferentes contextos e em diferentes interfaces. Percebo essa rede de materiais reprodutivos vinculada a ideia de colaboração na construção de um filho para outra pessoa; ela tem uma mesma ordem simbólica. Hoje, o número de transferências embrionárias é feito em mulheres com mais de 35 anos de idade. Geralmente, isso está imbricado em razões sociodemográficas. Nós esperamos mais tempo para decidir a respeito de se seremos mães ou não. Aí temos mais um espaço para a entrada da reprodução assistida, que é o único caminho para essas mulheres, e isso significa uma demanda por tecnologia da reprodução que tende a aumentar, como ocorre nos países europeus.
IHU On-Line – Quais as dimensões físicas que podem ser destacadas num contexto de busca pela reprodução assistida?
Marlene Tamanini – Se nós fôssemos falar do ponto de vista médico, será a infertilidade constatada a partir de exames. Não têm muitas coisas para discutir quanto à dimensão física. É pensar a idade num sentido cronológico que, então, ganha uma dimensão física, depois que passa dos 35 anos, pois aí nós temos uma queda acentuada da possibilidade de óvulos. O resultado é que vai precisar de intervenção de alguma maneira – ou de hormônios ou de acompanhamento de ciclos de ovulação através de hormônios ou o uso da tecnologia.
Para o homem o problema é a baixa produtividade de espermatozoide e isso é provocado por vários problemas e que só podem ser constatados clinicamente. Essa ideia da infertilidade é construída a partir da ausência de gametas, e isso é uma dimensão física importante. A leitura biomédica sobre a idade das mulheres está sendo feita a partir da ideia do útero e do ovário reprodutor. Ocorre que a idade cronológica não é a única forma de pensar a idade de uma mulher. A sua idade depende muito mais do seu contexto, das questões ambientais. Por exemplo, um médico me disse uma vez, numa entrevista em Barcelona, que uma mulher de 20 anos que fuma tem um ovário de 40 anos. Aí entra a relação com o meio ambiente, a relação com o uso de álcool, de fumo e de estilo de vida para a constituição de uma fertilidade ou de uma infertilidade, da possibilidade de imaginar um ovário ou um útero adequado. No caso do homem, esses fatores também são muito importantes: a relação com o meio, o nível de estresse, a condição do uso de drogas e alimentação têm sido apontados como um fatores importantes, hoje, em relação à infertilidade.
IHU On-Line – Quais são as dimensões clínicas e o ponto de vista biomédico?
Marlene Tamanini – O médico, quando olha o processo de infertilidade, está pensando na ciência biomédica. Agora ele pode dizer: “Que bom, tem um campo em expansão, têm muitas tecnologias surgindo, tem a entrada de novos profissionais e novas redes de especialidade”. Do ponto de vista clínico, já não se pode falar mais de '‘o médico’' intervindo na reprodução assistida, porque ele já não é o único profissional do campo. Tem um processo de atividades administrativas e de técnicos de laboratórios que também está se constituindo e alargando esse olhar.
Outro aspecto importante é que o gerenciamento dessas atividades, na maioria das clínicas que passei em Barcelona, são majoritariamente femininas. Então, eu acabei por concluir que a reprodução assistida está crescendo sempre mais na direção do feminino para a intervenção, para a ação, assim como o gerenciamento, o estabelecimento de protocolos e dos valores nesse quadro.
Por outro lado, os médicos têm que conhecer, numa razão de complementaridade, quais são as melhores técnicas. Esse diálogo é intenso e existe uma implicação de decisões entre essas especialidades, o que faz com que a clínica se amplie para muitos outros campos. Isso muda totalmente a relação com a clínica; possibilita que ela passe a interferir e oferecer condições para as pessoas decidirem coisas diferentes sobre a sua idade reprodutiva e também interferir nas decisões, com o poder escolher ser mãe mais tarde. Gosto de pensar também a clínica como um espaço de normatização social. Isto porque, à medida que essa reprodução assistida se expande, você começa a compartilhar uma outra representação de mundo.
IHU On-Line – Como fica a construção da feminilidade e da masculinidade, quando a questão é a reprodução assistida?
Marlene Tamanini – Vamos pensar a partir da ideia de paternidade para pensar a masculinidade. No caso da reprodução assistida, quando o companheiro da mulher está numa relação heterossexual, o primeiro aspecto que vai aparecer é a dimensão física. Ele vai formar uma consciência sobre a própria infertilidade, o que não é fácil para o homem, porque normalmente quem está em tratamento, em processo de infertilidade, é a mulher. Pelas médias dos estudos que fazemos, percebemos que a mulher normalmente já está em tratamento há 5 ou 6 anos, quando o companheiro é chamado para um simples espermograma.
A clínica também tem dificuldade. O médico, o psicólogo, a enfermeira têm dificuldade de diminuir esse processo. Ainda que exista tecnologia hoje para usar, buscar o gameta através de cirurgia, os médicos têm que trabalhar com a ideia de que o homem possui muita dificuldade para aceitar que é infértil. Embora estatisticamente eles apresentem uma infertilidade bastante alta, os homens têm dificuldade de aceitar essa condição.
Quando você coloca que o homem precisa se tratar, insere na situação uma crise bastante importante. Isto porque nas representações modelares não são as únicas, mas as que foram tomadas hegemonicamente. Dizer a um homem que é infértil soa como chamá-lo de impotente. O homem confunde infertilidade com impotência. Ele passa a viver a experiência da incapacidade reprodutiva vinculada a um imaginário, que é social e cultural, de impotência sexual. Entrar com o seu corpo para um processo de tratamento não é expor a infertilidade para ele, mas sim expor a impotência. Claro que estou falando de um homem numa perspectiva mais tradicional, de um modelo de masculinidade que se chama, em vários estudos, de hegemônica.
Outra questão que precisa ser pensada, no caso da masculinidade, é a dimensão social. A infertilidade masculina só ganhou visibilidade recentemente. Ela era silenciada na história, tanto pela biomedicina quanto pela sociedade. A biomedicina não tinha tecnologia para tratar o homem antes da injeção intracitoplasmática de espermatozoide. Então, mantinha-se em silêncio e o homem também ficava numa relação de ostracismo, separado por falha. Ele era considerado não participante, porque as mulheres buscavam o tratamento, buscavam os filhos, cuidam dos filhos, apareciam em público com os filhos e eles não.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios enfrentados pelos casais homossexuais?
Marlene Tamanini – Pensando a Espanha e países que aprovaram a reprodução assistida para casais homossexuais femininos, as mulheres vêm enfrentando menos desafios, porque elas têm o útero, e ele ainda é a base sobre a qual se faz uma gestação. As mulheres têm a possibilidade que a companheira que não entra com o útero doe o óvulo, elas buscam facilmente o sêmen em um banco. Não existem impedimentos legais para elas fazerem isto em muitos países, como na Espanha, por exemplo.
No Brasil, estamos lutando para reconhecer a Lei da Conjugalidade Homossexual, e então nós vamos ter que pensar como vai se realizar a prática da reprodução assistida. Nós temos hoje vários casos de mulheres que fizeram inseminação artificial com doador anônimo e que tiveram seus filhos e estão os criando. A reprodução assistida é percebida no Brasil nas descrições legais como prioritariamente para casais héteros. Porém, não diz nada oficialmente proibindo a inseminação ou fertilização in vitro para casais de mulheres e homens homossexuais. No caso, as mulheres têm como fazer, mas os homens. não. Eles não têm útero; possuem dois espermatozoides e não podem, com a nova resolução, ter um útero aparentado, porque foi definido a gravidez em substituição pelo útero de referência a mulher do casal. Portanto, eles não são mulheres. Eles não tem a irmã, eles não podem, eles não têm ninguém que possa oferecer o útero para eles. Ficou inviabilizado todo este processo.
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