domingo, 15 de maio de 2011

divulgação: FILOSOFIA: O que é um Conceito?

para os colegas que estão empenhados na leitura de deleuze e guattari e que não tiveram acesso à cópia impressa do livro "O que é a filosofia?", sigo na postagem da sequência de textos, agora com o primeiro texto do capítulo FILOSOFIA: O que é um Conceito?
Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem portanto uma cifra. É uma multiplicidade, embora nem toda multiplicidade seja conceituai. Não há conceito de um só componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo qual uma filosofia "começa", possui vários componentes, já que não é evidente que a filosofia deva ter um começo e que, se ela determina um, deve acrescentar-lhe um ponto de vista ou uma razão. Descartes, Hegel, Feuerhach não somente não começam pelo mesmo conceito, como não têm o mesmo conceito de começo. Todo conceito é ao menos duplo, ou triplo, etc. Também não há conceito que tenha todos os componentes, já que seria um puro e simples caos: mesmo os pretensos universais, como conceitos últimos, devem sair do caos circunscrevendo um universo que os explica (contemplação, reflexão, comunicação...). Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus componentes. É por isso que, de Platão a Bergson, encontramos a idéia de que o conceito é questão de articulação, corte e superposição. É um todo, porque totaliza seus componentes, mas um todo fragmentário. É apenas sob essa condição que pode sair do caos mental, que não cessa de espreitá-lo, de aderir a ele, para reabsorvê-lo.
Sob quais condições um conceito é primeiro, não absolutamente, mas com relação a um outro? Por exemplo, outrem é necessariamente segundo em relação a um eu? Se ele o é, é na medida em que seu conceito é aquele de um outro — sujeito que se apresenta como um objeto — especial com relação ao eu: são dois componentes. Com efeito, se nós o identificarmos a um objeto especial, outrem já não é outra coisa
senão o outro sujeito, tal como ele aparece para mim; e se nós o identificarmos a um outro sujeito, sou eu  que sou outrem, tal como eu lhe apareço. Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução: estamos aqui diante de um problema concernente à pluralidade dos sujeitos, sua relação, sua apresentação recíproca. Mas tudo muda evidentemente se acreditamos descobrir um outro problema: em que consiste a posição de outrem, que o outro sujeito vem somente "ocupar" quando ele me aparece como objeto especial, e que eu venho, por minha vez, ocupar como objeto especial quando eu lhe apareço? Deste ponto de vista, outrem não é ninguém, nem sujeito nem objeto. Há vários sujeitos porque há outrem, não o inverso. Outrem exige, então, um conceito a priori de que devem derivar o objeto especial, o outro sujeito e o eu, não o contrário. A ordem mudou, do mesmo modo que a natureza dos conceitos ou que os problemas aos quais se supõe que eles respondam. Deixamos de lado a questão de saber que diferença há entre um problema na ciência e na filosofia. Mas, mesmo na filosofia, não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados (pedagogia do conceito).
Procedamos sumariamente: consideremos um campo de experiência tomado como mundo real, não mais com relação a um eu, mas com relação a um simples "há...". Há, nesse momento, um mundo calmo e repousante. Surge, de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um objeto mas, o que é muito diferente, como um mundo  possível, como a possibilidade de um mundo assustador. Esse mundo possível não é real, ou não o é ainda, e todavia não deixa de existir: é um expressado que só existe em sua expressão, o rosto ou um equivalente do rosto. Outrem é, antes de mais nada, esta existência de um mundo possível. E este mundo possível tem também uma realidade própria em si mesmo, enquanto possível: basta que aquele que exprime fale e diga "tenho medo", para dar uma realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são mentirosas). 
O "eu", como índice lingüístico, não tem outro sentido. E, mais ainda, não é indispensável: a China é um mundo possível, mas assume realidade logo que se fale chinês ou que se fale da China num campo de experiência dado. É muito diferente do caso em que a China se realiza, tornando-se o próprio campo de experiência. Eis, pois, um conceito de outrem que não pressupõe nada além da determinação de um mundo sensível como condição. Outrem surge neste caso como a expressão de um possível. Outrem é um mundo possível, tal como existe num rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade. Neste sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto existente, linguagem real ou fala.
Evidentemente todo conceito tem uma história. Este conceito de outrem remete a Leibniz, aos mundos possíveis de Leibniz e à mônada como expressão de mundo; mas não é o mesmo problema, porque os possíveis de Leibniz não existem no mundo real. Remete também à lógica modal das proposições, mas estas não conferem aos mundos possíveis a realidade correspondente a suas condições de verdade (mesmo quando Wittgenstein encara as proposições de medo ou de dor, não vê nelas modalidades exprimíveis numa posição de outrem, porque deixa outrem oscilar entre um outro sujeito e um objeto especial). Os mundos possíveis têm uma longa história(1). Numa palavra, dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma história, embora a história se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes. Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.
Mas, por outro lado, um conceito possui um devir que concerne, desta vez, a sua relação com conceitos situados no mesmo plano. Aqui, os conceitos se acomodam uns aos outros, superpõem-se uns aos outros, coordenam seus contornos, compõem seus respectivos problemas, pertencem à mesma filosofia, mesmo se têm histórias diferentes. Com efeito, todo conceito, tendo um número finito de componentes, bifurcará sobre outros conceitos, compostos de outra maneira, mas que constituem outras regiões do mesmo plano, que respondem a problemas conectáveis, participam de uma co-criação. Um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes. No caso do conceito de Outrem, como expressão de um mundo possível num campo perceptivo, somos levados a considerar de uma nova maneira os componentes deste campo por si mesmo: outrem, não mais sendo nem um sujeito de campo, nem um objeto no campo, vai ser a condição sob a qual se redistribuem, não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento e a profundidade... Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro. Outrem faz o mundo passar, e o "eu" nada designa senão um mundo passado ("eu estava tranqüilo..."). Por exemplo, Outrem basta para fazer, de todo comprimento, uma profundidade possível no espaço, e inversamente, a tal ponto que, se este conceito não funcionasse no campo perceptivo, as transições e as inversões se tornariam incompreensíveis, e não cessaríamos de nos chocar contra as coisas, o possível tendo desaparecido. Ou ao menos, filosoficamente, seria necessário encontrar uma outra razão pela qual nós não nos chocamos... É assim que, a partir de um plano determinável, se passa de um conceito a um outro, por uma espécie de ponte: a criação de um conceito de Outrem, com tais componentes vai levar à criação de um novo conceito de espaço perceptivo, com outros componentes, a determinar (não se chocar, ou não se chocar demais, fará parte de seus componentes).
Partimos de um exemplo bastante complexo. Como fazer de outra maneira, já que não há conceito simples? O leitor pode partir de qualquer exemplo, a seu gosto. Nós acreditamos que dele decorrerão as mesmas conseqüências concernentes à natureza do conceito ou ao conceito de conceito. Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes. Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos (assim Outrem tem o rosto entre seus componentes, mas o Rosto, ele mesmo, será considerado como conceito, tendo também componentes). Os conceitos vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados  o nada. Em segundo lugar, é próprio do conceito tornar os componentes inseparáveis nele: distintos, heterogêneos e todavia não separáveis, tal é o estatuto dos componentes, ou o que define a consistência do conceito, sua endo-consistência. É que cada componente distinto apresenta um recobrimento parcial, uma zona de vizinhança ou um limite de indiscernibilidade com um outro: por exemplo, no conceito de outrem, o mundo possível não existe fora do rosto que o exprime, embora se distinga dele como o expressado e a expressão; e o rosto, por sua vez, é a proximidade das palavras de que já é o porta-voz. Os componentes permanecem distintos, mas algo passa de um a outro, algo de indecidível entre os dois: há um domínio ab que pertence tanto a a quanto a b, em que a e b "se tornam" indiscerníveis. São estas zonas, limites ou devires, esta inseparabilidade, que definem a consistência interior do conceito. Mas este tem igualmente uma exoconsistência, com outros conceitos, quando sua criação implica a construção de uma ponte sobre o mesmo plano. As zonas e as pontes são as junturas do conceito.
Em terceiro lugar, cada conceito será pois considerado como o ponto de coincidência, de condensação ou de acumulação de seus próprios componentes. O ponto conceitual não deixa de percorrer seus componentes, de subir e de descer neles. Cada componente, neste sentido, é um traço intensivo, uma ordenada intensiva que não deve ser apreendida nem como geral nem como particular, mas como uma pura e simples singularidade — "um" mundo possível, "um" rosto, "certas" palavras — que se particulariza ou se generaliza, segundo se lhe atribui valores variáveis ou se lhe designa uma função constante. Mas, contrariamente ao que se passa na ciência, não há nem constante nem variável no conceito, e não se distinguirão, nem espécies variáveis para um gênero constante, nem espécie constante para indivíduos variáveis. As relações no conceito não são nem de compreensão nem de extensão, mas somente de ordenação, e os componentes do conceito não são nem constantes nem variáveis, mas puras e simples variações ordenadas segundo sua vizinhança. Elas são processuais, modulares. O conceito de um pássaro não está em seu gênero ou sua espécie, mas na composição de suas posturas, de suas cores e de seus cantos: algo de indiscernível, que é menos uma sinestesia que uma sineidesia. Um conceito é uma heterogênese, isto é, uma ordenação de seus componentes por zonas de vizinhança. É ordinal, é uma intensão presente em todos os traços que o compõem. Não cessando de percorrê-los segundo uma ordem sem distância, o conceito está em estado de sobrevôo com relação a seus componentes. Ele é imediatamente co-presente sem nenhuma distância de todos os seus componentes ou variações, passa e repassa por eles: é um ritornelo, um opus com sua cifra.
O conceito é um incorporai, embora se encarne ou se efetue nos corpos. Mas, justamente, não se confunde com o estado de coisas no qual se efetua. Não tem coordenadas espaço-temporais, mas apenas ordenadas intensivas. Não tem energia, mas somente intensidades, é anergético (a energia não é a intensidade, mas a maneira como esta se desenrola e se anula num estado de coisas extensivo). O conceito diz o acontecimento, não a essência ou a coisa. É um Acontecimento puro, uma becceidade, uma entidade: o acontecimento de Outrem, ou o acontecimento do rosto (quando o rosto por sua vez é tomado como conceito). Ou o pássaro como acontecimento. O conceito define-se pela inseparabilidade de um número  finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevôo absoluto, à velocidade infinita. Os conceitos são "superfícies ou volumes absolutos", formas que não têm outro objeto senão a inseparabilidade de variações distintas(2). O "sobrevôo" é o estado do conceito ou sua infinitude própria, embora sejam os infinitos maiores ou menores segundo a cifra dos componentes, dos limites e das pontes. O conceito é bem ato de pensamento neste sentido, o pensamento operando em velocidade infinita (embora maior ou menor).
O conceito é, portanto, ao mesmo tempo absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes, aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas condições que impõe ao problema. É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário. É infinito por seu sobrevôo ou sua velocidade, mas finito por seu movimento que traça o contorno dos componentes. Um filósofo não pára de remanejar seus conceitos, e mesmo de mudá-los; basta às vezes um ponto de detalhe que se avoluma, e produz uma nova condensação, acrescenta ou retira componentes. O filósofo apresenta às vezes uma amnésia que faz dele quase um doente: Nietzsche, diz Jaspers, "corrigia ele mesmo suas idéias, para constituir novas, sem confessá-lo explicitamente; em seus estados de alteração, esquecia as conclusões às quais tinha chegado anteriormente". Ou Leibniz: "eu acreditava entrar no porto, mas... fui jogado novamente em pleno mar"(3). O que porém permanece absoluto é a maneira pela qual o conceito criado se põe nele mesmo e com outros. A relatividade e a absolutidade do conceito são como sua pedagogia e sua ontologia, sua criação e sua autoposição, sua idealidade e sua realidade. Real sem ser atual, ideal sem ser abstrato... O conceito define-se por sua consistência, endo-consistência e exo-consistência, mas não tem referência: ele é auto-referencial, põe-se a si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo que é criado. O construtivismo une o relativo e o absoluto.
Enfim, o conceito não é discursivo, e a filosofia não é uma formação discursiva, porque não encadeia proposições. É a confusão do conceito com a proposição que faz acreditar na existência de conceitos científicos, e que considera a proposição como uma verdadeira "intensão" (o que a frase exprime): então o conceito filosófico só aparece, quase sempre, como uma proposição despida de sentido. Esta confusão  reina na lógica, e explica a idéia infantil que ela tem da filosofia. Medem-se os conceitos por uma gramática "filosófica" que os substitui por proposições extraídas das frases onde eles aparecem: somos restringidos sempre a alternativas entre proposições, sem ver que o conceito já foi projetado no terceiro excluído. O conceito não é, de forma alguma, uma proposição, não é proposicional, e a proposição não é nunca uma intensão. As proposições definem-se por sua referência, e à referência não concerne ao Acontecimento, mas a uma relação com o estado de coisas ou de corpos, bem como às condições desta relação. Longe de constituir uma intensão, estas condições são todas extensionais: implicam sucessivas operações de enquadramento em abcissas ou de linearização que fazem os dados intensivos entrar em coordenadas espaço-temporais e energéticas, em operações de correspondência entre conjuntos assim delimitados. São essas sucessões e essas correspondências que definem a discursividade nos sistemas extensivos; e a independência das variáveis nas proposições opõe-se à inseparabilidade das variações no conceito. Os conceitos, que só têm consistência ou ordenadas intensivas fora de coordenadas, entram livremente em relações de ressonância não discursiva, seja porque os componentes de um se tornam conceitos com outros componentes sempre heterogêneos, seja porque não apresentam entre si nenhuma diferença de escala em nenhum nível. Os conceitos são centros de vibrações, cada um em si mesmo e uns em relação aos outros. É por isso que tudo ressoa, em lugar de se seguir ou de se corresponder. Não há nenhuma razão para que os conceitos se sigam. Os conceitos, como totalidades fragmentárias, não são sequer os pedaços de um quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem. Eles formam um muro, mas é um muro de pedras secas e, se tudo é tomado conjuntamente, é por caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de um conceito a um outro, são ainda encruzilhadas, ou desvios que não circunscrevem nenhum conjunto discursivo. São pontes moventes. Desse ponto de vista, não é errado considerar que a filosofia está em estado de perpétua digressão ou digressividade. Daí decorrem grandes diferenças entre a enunciação filosófica dos conceitos fragmentários e a enunciação científica das proposições parciais.
Sob um primeiro aspecto, toda enunciação é enunciação de posição; mas ela permanece exterior à proposição, porque tem por objeto um estado de coisas como referente, e por condições as referências que constituem valores de verdade (mesmo se estas condições em si mesmas são interiores ao objeto). Ao contrário, a enunciação de posição é estritamente imanente ao conceito, já que este não tem outro objeto senão a inseparabilidade dos componentes pelos quais ele próprio passa e repassa, e que constitui sua consistência. Quanto ao outro aspecto, enunciação de criação ou de assinatura, é certo que as proposições científicas e seus correlatos não são menos assinadas ou criadas que os conceitos filosóficos; falamos de teorema de Pitágoras, de coordenadas cartesianas, de número hamiltoniano, de função de Lagrange, tanto quanto de Idéia platônica ou de cogito de Descartes, etc. Mas os nomes próprios aos quais se vincula assim  enunciação, malgrado serem históricos, e atestados como tais, são máscaras para outros de-vires, servem somente de pseudônimos a entidades singulares mais secretas. No caso das proposições, trata-se de observadores parciais extrínsecos, cientificamente definíveis com relação a tal ou tais eixos de referência, ao passo que, para os conceitos, são personagens conceituais intrínsecos que impregnam tal ou tal plano de consistência. Não se dirá somente que os nomes próprios têm usos muito diferentes nas filosofias, ciências e artes: o mesmo acontece para os elementos sintáticos, e notadamente as preposições, as conjunções, "ou", "pois"... A filosofia procede por frases, mas não são sempre proposições que se extraem das frases em  geral.
Por enquanto, dispomos apenas de uma hipótese muito ampla: das frases ou de um equivalente, a filosofia tira conceitos (que não se confundem com idéias gerais ou abstratas), enquanto que a ciência tira prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte tira perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções ou sentimentos). Em cada caso, a linguagem é submetida a provas e usos incomparáveis, mas que não definem a diferença entre as disciplinas sem constituir também seus cruzamentos perpétuos.
EXEMPLO I
É necessário de início confirmar as análises precedentes tomando o exemplo de um conceito filosófico assinado, dentre os mais conhecidos, ou seja, o cogito cartesiano, o Eu de Descartes: um conceito de eu. Este conceito tem três componentes: duvidar, pensar, ser (não se concluirá daí que todo conceito seja  triplo).
O enunciado total do conceito, enquanto multiplicidade, é: eu penso "logo" eu sou; ou, mais completamente: eu que duvido, eu penso, eu sou, eu sou uma coisa que pensa. É o acontecimento sempre renovado do pensamento, tal como o vê Descartes. O conceito condensa-se no ponto E, que passa por todos os componentes, e onde coincidem E' — duvidar, E" — pensar, E'" — ser. Os componentes como ordenadas intensivas se ordenam nas zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade que fazem passar de uma à outra, e que constituem sua inseparabilidade: uma primeira zona está entre duvidar e pensar (eu que duvido não posso duvidar que penso), e a segunda está entre pensar e ser (para pensar é necessário ser). Os componentes apresentam-se aqui como verbos, mas isto não é uma regra, basta que sejam variações. Com efeito, a dúvida comporta momentos que não são as espécies de um gênero, mas as fases de uma variação: dúvida sensível, científica, obsessiva. (Todo conceito tem, portanto, um espaço de fases, ainda que seja de uma maneira diferente daquela da ciência.) O mesmo vale para os modos do pensamento: sentir, imaginar, ter idéias. O mesmo vale para os tipos de ser, coisa ou substância: o ser infinito, o ser pensante finito, o ser extenso. É de se observar que, neste último caso, o conceito do eu não retém senão a segunda fase do ser, e deixa fora o resto da variação. Mas esse é precisamente o sinal de que o conceito se fecha como totalidade fragmentária com "eu sou uma coisa pensante": não se passará às outras fases do ser senão por pontes-encruzilhadas que levam a outros conceitos. Assim, "entre minhas idéias, eu tenho a idéia de infinito" é a ponte que conduz do conceito de eu àquele de Deus, este novo conceito tendo ele mesmo três componentes, que formam as "provas" da existência de Deus como acontecimento infinito, a terceira (prova ontológica) assegurando o fechamento do conceito, mas também lançando, por sua vez, uma ponte ou uma bifurcação na direção de um conceito de extensão, porquanto garante o valor objetivo de verdade das outras idéias claras e distintas de que dispomos.
Quando nos perguntamos: há precursores do cogito?, queremos dizer: há conceitos assinados por filósofos anteriores, que teriam componentes semelhantes ou quase idênticos, mas onde faltaria um, ou então que acrescentariam outros, de tal maneira que um cogito não chegaria a cristalizar-se, os componentes não coincidindo ainda em um eu? Tudo parecia pronto e todavia algo faltava. O conceito anterior remetia talvez  um outro problema, diferente daquele do cogito (é preciso uma mutação de problema para que o cogito cartesiano apareça), ou mesmo se desenrolava sobre um outro plano. O plano cartesiano consiste em recusar todo pressuposto objetivo explícito, em que cada conceito remeteria a outros conceitos (por exemplo, o homem animal-racional). Ele exige somente uma compreensão pré-filosófica, isto é, pressupostos implícitos e subjetivos: todo mundo sabe o que quer dizer pensar, ser, eu (sabe-se fazendo-o, sendo ou dizendo-o). É uma distinção muito nova. Esse plano exige um conceito primeiro que não deve pressupor nada de objetivo.
De modo que o problema é: qual é o primeiro conceito sobre este plano, ou por qual começar para determinar a verdade como certeza subjetiva absolutamente pura? Tal é o cogito. Os outros conceitos poderão conquistar a objetividade, mas com a condição de serem ligados por pontes ao primeiro conceito, de responderem a problemas sujeitos às mesmas condições, e de permanecerem sobre o mesmo plano: será a objetividade que adquire um conhecimento certo, e não a objetividade que supõe uma verdade reconhecida como preexistente ou já lá. É inútil perguntar se Descartes tinha ou não razão. Pressupostos subjetivos e implícitos valem mais que pressupostos objetivos explícitos? É necessário "começar" e, no caso positivo, é necessário começar do ponto de vista de uma certeza subjetiva? O pensamento pode, sob essa condição, ser o verbo de um Eu? Não há resposta direta. Os conceitos cartesianos não podem ser avaliados a não ser em função dos problemas aos quais eles respondem e do plano sobre o qual eles ocorrem. Em geral, se os conceitos anteriores puderam preparar um conceito, sem por isso constituí-lo, é que seu problema estava ainda enlaçado com outros, e o plano não tinha ainda a curvatura ou os movimentos indispensáveis. E se conceitos podem ser substituídos por outros, é sob a condição de novos problemas e de um outro plano, com relação aos quais (por exemplo) "Eu" perde todo sentido, o começo perde toda necessidade, os pressupostos toda diferença — ou assumem outras. Um conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função das condições de sua criação. Há um plano melhor que todos os outros, e problemas que se impõem contra os outros? Justamente não se pode dizer nada a este respeito. Os planos, é necessário fazê-los, e os problemas, colocá-los, como é necessário criar os conceitos. O filósofo faz o que pode, mas tem muito a fazer para saber se é o melhor, ou mesmo se interessar por esta questão. Certamente, os novos conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos, com nossa história e sobretudo com nossos devires.
Mas que significam os conceitos de nosso tempo ou de um tempo qualquer? Os conceitos não são eternos, mas são por isso temporais? Qual é a forma filosófica dos problemas deste tempo? Se um conceito é "melhor" que o precedente, é porque ele faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um Acontecimento que nos sobrevoa. Mas não é já o que fazia o precedente? E se podemos continuar sendo platônicos, cartesianos ou kantianos hoje, é porque temos direito de pensar que seus conceitos podem ser reativados em nossos problemas e inspirar os conceitos que é necessário criar. É qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos, repetir o que eles disseram, ou então fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que mudam necessariamente?
É por isso que o filósofo tem muito pouco prazer em discutir. Todo filósofo foge quando ouve a frase: vamos discutir um pouco. As discussões são boas para as mesas redondas, mas é sobre uma outra mesa que a filosofia joga seus dados cifrados. As discussões, o mínimo que se pode dizer é que elas não fariam avançar o trabalho, já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa. Que alguém tenha tal opinião, e pense antes isto que aquilo, o que isso pode importar para a filosofia, na medida em que os problemas em jogo não são enunciados? E quando são enunciados, não se trata mais de discutir, mas de criar indiscutíveis conceitos para o problema que nós nos atribuímos. A comunicação vem sempre cedo demais ou tarde demais, e a conversação está sempre em excesso, com relação a criar. Fazemos, às vezes, da filosofia a idéia de uma perpétua discussão como "racionalidade comunicativa" ou como "conversação democrática universal". Nada é menos exato e, quando um filósofo critica um outro, é a partir de problemas e de um plano que não eram aqueles do outro, e que fazem fundir os antigos conceitos, como se pode fundir um canhão para fabricar a partir dele novas armas. Não estamos nunca sobre o mesmo plano. Criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio. Mas aqueles que criticam sem criar, aqueles que se contentam em defender o que se esvanesceu sem saber dar-lhe forças para retornar à vida, eles são a chaga da filosofia. São animados pelo ressentimento, todos esses discutidores, esses comunicadores. Eles não falam senão deles mesmos, confrontando generalidades vazias. A filosofia tem horror a discussões. Ela tem mais que fazer. O debate lhe é insuportável, não porque ela é segura demais de si mesma: ao contrário, são suas incertezas que a arrastam para outras vias mais solitárias. Contudo, Sócrates não fazia da filosofia uma livre discussão entre amigos? Não é o auge da sociabilidade grega como conversação de homens livres? De fato, Sócrates tornou toda discussão impossível, tanto sob a forma curta de um agôn de questões e respostas, quanto sob a forma longa de uma rivalidade de discursos. Ele fez do amigo o amigo exclusivo do conceito, e do conceito o impiedoso monólogo que elimina, um após o outro, todos os rivais.
EXEMPLO II
O Parmênides mostra quanto Platão é mestre do conceito. O Uno tem dois componentes (o ser e o não-ser), fases de componentes (o Uno superior ao ser, igual ao ser, inferior ao ser; o Uno superior ao nãoser, igual ao não-ser), zonas de indiscernibilidade (com relação a si, com relação aos outros). E um modelo de conceito. Mas o Uno não precede todo conceito? É aí que Platão ensina o contrário daquilo que faz: ele cria os conceitos, mas precisa colocá-los como representando o incriado que os precede. Ele põe o tempo no conceito, mas este tempo deve ser o Anterior. Ele constrói o conceito, mas como testemunha da preexistência de uma objetidade, sob a forma de uma diferença de tempo, capaz de medir o distanciamento ou a proximidade do construtor eventual. É que, no plano platônico, a verdade se põe como pressuposta, como já estando lá. Tal é a Idéia. No conceito platônico de Idéia, primeiro toma um sentido muito preciso, muito diferente daquele que terá em Descartes: é o que possui objetivamente uma qualidade pura, ou o que não é outra coisa senão o que ele é. Só a Justiça é justa, a Coragem é corajosa, tais são as Idéias, e há Idéia de mãe se há uma mãe que não é outra coisa senão mãe (que não teria sido filha por sua vez), ou pêlo, que não é outra coisa senão pêlo (e não cilicium também). Está entendido que as coisas, ao contrário, são sempre diferentes daquilo que elas são: no melhor dos casos, elas não possuem portanto a qualidade senão secundariamente, não podem senão aspirar à qualidade, e somente na medida em que elas participam da Idéia. Então o conceito de Idéia tem os seguintes componentes: a qualidade possuída ou por possuir; a Idéia que possui primordialmente, como imparticipável; o que aspira à qualidade, e não pode possuí-la a não ser secundariamente, terciariamente, quaternária-mente...; a Idéia participada, que julga as pretensões. Dir-se-ia o Pai, um pai duplo, a filha e os pretendentes. São as ordenadas intensivas da Idéia: uma pretensão não estará fundada a não ser por uma vizinhança, uma maior ou menor proximidade que se "teve" com relação à Idéia, no sobrevôo de um tempo sempre anterior, necessariamente anterior. O tempo sob esta forma de anterioridade pertence ao conceito, ele é como que sua zona. Seguramente não é neste plano grego, sobre este solo platônico, que o cogito pode eclodir. Enquanto subsistir a preexistência da Idéia (mesmo à maneira cristã dos arquétipos no entendimento de Deus), o cogito poderá ser preparado, mas não levado a cabo. Para que Descartes crie este conceito, será necessário que "primeiro" mude singularmente de sentido, tome um sentido subjetivo, e que toda diferença de tempo se anule entre a idéia e a alma que a forma enquanto sujeito (donde a importância da observação de Descartes contra a reminiscência, quando diz que as idéias inatas não são "antes", mas "ao mesmo tempo" que a alma). Será necessário que se chegue a uma instantaneidade do conceito, e que Deus crie até as verdades. Será necessário que a pretensão mude de natureza: o pretendente cessa de receber a filha das mãos de um pai para devê-la apenas a suas próprias proezas cavalheirescas..., a seu próprio método. A questão de saber se Malebranche pode reativar componentes platônicos num plano autenticamente cartesiano, e a que preço, deveria ser analisada deste ponto de vista.
Mas queríamos apenas mostrar que um conceito tem sempre componentes que podem impedir a aparição de um outro conceito, ou, ao contrário, que só podem aparecer ao preço do esvanecimento de outros conceitos. Entretanto, nunca um conceito vale por aquilo que ele impede: ele só vale por sua posição incomparável e sua criação própria. Suponhamos que se acrescente um componente a um conceito: é provável que ele estoure, ou apresente uma mutação completa, implicando talvez um outro plano, em todo caso outros problemas. É o caso do cogito kantiano. Sem dúvida Kant construiu um plano "transcendental" que torna a dúvida inútil e muda também a natureza dos pressupostos. Mas é em virtude desse plano que ele pode declarar que se "eu penso" é uma determinação que implica a este título uma existência indeterminada ("eu sou"), nem por isso sabemos como este indeterminado se torna determinável, nem portanto sob qual forma ele aparece como determinado. Kant "critica", pois, Descartes por ter dito: eu sou uma substância pensante, já que nada funda uma tal pretensão do Eu. Kant exige a introdução de um novo componente no cogito, aquele que Descartes tinha recusado: precisamente o tempo, pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se torna determinável. Mas eu não sou determinado no tempo, a não ser como eu passivo e fenomenal, sempre afetável, modificável, variável. Eis que o cogito apresenta agora quatro componentes: eu penso e, por isso, sou ativo; eu tenho uma existência; portanto esta existência não é determinável senão no tempo como aquela de um eu passivo; eu sou, pois, determinado como um eu passivo que se representa necessariamente sua própria atividade pensante como um Outro que o afeta. Não é um outro sujeito, é antes o sujeito que se torna um outro... É a via de uma conversão do eu em outrem? Uma preparação do "Eu é um outro"? É uma nova sintaxe, com outras ordenadas, outras zonas de indiscernibilidade asseguradas pelo esquema, depois pela afecção de si por si, que tornam inseparáveis o Eu (Je) e o Mim (Moi). Que Kant "critique" Descartes significa somente que traçou um plano e construiu um problema que não podem ser ocupados ou efetuados pelo cogito cartesiano. Descartes tinha criado o cogito como conceito, mas expulsando o tempo como forma de anterioridade para fazer dele um simples modo de sucessão que remete à criação contínua. Kant reintroduz o tempo no cogito, mas um tempo inteiramente diferente daquele da anterioridade platônica. Criação de conceito. Ele faz do tempo um componente de um novo cogito, mas sob a condição de fornecer por sua vez um novo conceito do tempo: o tempo torna-se forma de inferioridade, com três componentes, sucessão, mas também simultaneidade e permanência. O que implica, ainda, um novo conceito de espaço, que não pode mais ser definido pela simples simultaneidade, e se torna forma de exterioridade. É uma revolução considerável. Espaço, tempo, Eu penso, três conceitos originais ligados por pontes que são outras tantas encruzilhadas. Uma saraivada de novos conceitos. A história da filosofia não implica somente que se avalie a novidade histórica dos conceitos criados por um filósofo, mas a potência de seu devir quando eles passam uns pelos outros. Em toda parte reencontramos o mesmo estatuto pedagógico do conceito: uma multiplicidade, uma superfície ou um volume absolutos, auto-referentes, compostos de um certo número de variações intensivas inseparáveis segundo uma ordem de vizinhança, e percorridos por um ponto em estado de sobrevôo. O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que não se confunde com o estado de coisas no qual se encarna. Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos...
É inútil atribuir conceitos à ciência: mesmo quando ela se ocupa dos mesmos "objetos", não é sob o aspecto do conceito, não é criando conceitos. Dir-se-á que é uma questão de palavras, mas é raro que as palavras não impliquem intenções e armadilhas. Seria uma pura questão de palavras se decidíssemos reservar o conceito à ciência, sob condição de se encontrar outra palavra para designar o negócio da filosofia. Mas o mais das vezes procedemos de outra maneira. Começamos por atribuir o poder do conceito à ciência, definimos o conceito pelos procedimentos criativos da ciência, medimo-lo pela ciência, depois perguntamos se não resta uma possibilidade para que a filosofia forme por sua vez conceitos de segunda zona, que suprem sua própria insuficiência por um vago apelo ao vivido. Assim Gilles Gaston-Granger começa por definir o conceito como uma proposição ou uma função científicas, depois concede que pode até mesmo haver conceitos filosóficos que substituam a referência ao objeto pelo correlato de uma "totalidade do vivido"(4). Mas, de fato, ou a filosofia ignora tudo a respeito do conceito, ou ela o conhece de pleno direito e de primeira mão, a ponto de nada dele deixar para a ciência, que aliás não tem nenhuma necessidade dele e que só se ocupa de estados de coisas e de suas condições. As proposições ou funções bastam para a ciência, ao passo que a filosofia não tem necessidade, por seu lado, de invocar um vivido que só daria uma vida fantasmática e extrínseca a conceitos secundários, por si mesmos exangues. O conceito filosófico não se refere ao vivido, por compensação, mas consiste, por sua própria criação, em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como qualquer estado de coisas. Cada conceito corta o acontecimento, o recorta a sua maneira. A grandeza de uma filosofia avalia-se pela natureza dos acontecimentos aos quais seus conceitos nos convocam, ou que ela nos torna capazes de depurar em conceitos. Portanto, é necessário experimentar em seus mínimos detalhes o vínculo único, exclusivo, dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora. O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence.
(1) Esta história, que não começa com Leibniz, passa por episódios tão diversos quanto a proposição de outrem como tema constante em Wittgenstein ("ele está com dor de dente..."), e a posição de outrem como teoria do mundo possível em Michel Tournier (Vendredi ou les limbes du Pacifique, Gallimard).
(2) Sobre o sobrevôo, e as superfícies ou volumes absolutos como seres reais, cf. Raymond Ruyer, Néofinalisme, P.U.F., cap. IX-XI.
(3) Leibniz, Système nouveau de Ia Nature, §12.
(4) Gilles-Gaston Granger, Pour Ia connaissance philosophique, Ed. Odile Jacob, cap. VI.
cooperação.sem.mando

Nenhum comentário:

Postar um comentário