Priscila Figueiredo* dialoga com “Poesia”, filme mais recente de Lee Chang-dong e inaugura “Estética”, nova coluna em Outras Palavras
Poesia, filme de 2010 com direção e roteiro de Lee Chang-dong, não é propriamente inovador, e a sequência final é um tanto melodramática. Mas o argumento é inventivo; sua realização, digna e cuidadosa. E pode contar com uma atriz (Yun Jung-hee) esplêndida, através da qual a protagonista, Mija, já por si interessante e rica, sobe a um novo patamar de complexidade. Ela me lembrou o verso de Drummond “(…) Mas é uma flor. Ela furou o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio”. O asfalto aqui é o mais inóspito. A revelação de que a menina que acaba de se suicidar era sistematicamente estuprada por colegas de escola impregna sinistramente o barulhinho dos eletroeletrônicos, as espinhas do neto adolescente de Mija, envolvido no caso, a desordem da cozinha, o ruído dos carros. Com o céu mais azul e claro lá fora, os pais discutem o modo de ocultar a culpa dos filhos, discutem enquanto comem, bebem. O que nos alimenta deveria estar bem guardado de assuntos assim. Corpo demais na mesa, corpo vilipendiado, que as palavras se iludem de estar recobrindo. Fico pensando em antigas normas de comportamento, especialmente naquelas que faziam preceder a refeição de uma oração ou um silêncio respeitoso. Faltam medidas profiláticas em toda parte, falta recato. Os pais negociam, comem, riem e até mesmo lamentam pelo que aconteceu à menina. Mas precisam salvar os filhos. A direção da escola está com eles, não quer escândalo. Sentimos aversão. Até a polícia acha melhor não abrir investigação. Os pais dizem que a vítima gostava do assédio. Mas quem acreditará nisso?, perguntam. O que sabemos é que há um corpo boiando, que nos entra goela abaixo dos olhos quando se anuncia, num dos primeiros planos, o título do filme: Poesia. Água muito azul, que rola e se prateia, quase inclinada. A inclinação é para que melhor escorregue o corpo em nossa direção, o qual a câmera primeiro focalizava de longe, indistinto, e a correnteza veio trazendo para perto de crianças brincando, no primeiro plano, e para perto de nós. Um corpo paira, revirado, na comida, nas conversas, na gordura da cozinha, na televisão, na banheira. Sentimos náusea.
A linda avó, com seu chapéu de renda branca, suas roupas de tecidos adamascados, está sentindo o mesmo também. A atriz tem uma pele de nácar, aquela beleza cantada por séculos de poesia. Mais de uma vez se diz no filme que ela está bem vestida demais. Esse julgamento vem de um dos pais, aqueles pais estranhos, em que a consciência moral quase não pulsa mais. Ah mas naquele que primeiro a procurou há ao menos alguma noção de beleza, ele quase poderia se apaixonar pela velha moça; ele percebe como ela canta bem, como ela se veste bem –pode não parecer, diz, mas ela é pobre, isto é, ela não parece pobre pela elegância; a verdade, porém, é que não terá dinheiro para ajuntar à quantia que esperamos dar à mãe da menina.
Há coisas repulsivas nessa Coreia do Sul. Ajustes e acordos sobre cadáveres expostos… Há algo de Brasil aqui, observa-me um amigo. Mas quanta delicadeza na avozinha. Ela está aprendendo a poesia, está tentando aplicar as primeiras lições do professor: para escrever, é preciso ver. Ela apura os olhos, as asas de seu nariz regular tremulam, seus sentidos devem se alongar até o meio ambiente, e isso logo agora que a poesia como gênero, diz o mesmo professor (fora da sala de aula), está desaparecendo, logo agora que tudo começa a cheirar tão mal para Mija e lhe dão a ver a terrível imagem de um corpo boiando. Como ela se dá conta de que seu neto não vê nada e não se deixa ver!
Um porco inescrutável. Nem os animais fazem tanta sujeira, diz ela ao menino quando se levanta deixando no chão da sala uma bagunça que agora nos parece sinistra. Mas a aluna precisa escrever o que começa a distinguir. Logo agora que ela é diagnosticada com Alzheimer, que as palavras lhe faltam e os nomes mais ordinários começam a sumir da cabeça. Primeiro serão os substantivos concretos, depois os verbos, conforme a sentença médica. Justo os substantivos concretos, os que nomeiam as coisas mais disponíveis para a percepção visual! Indefectível, no entanto, Mija não abre mão de seu caderninho de anotações. Não, não é para se lembrar porque está perdendo a memória; é para por em prática um conselho do mestre. Ela anota suas impressões sobre o mundo, o meio ambiente. Aparentemente, ver é ver a paisagem. Ela tem grandes, enormes problemas, mas não perde a compostura, o esmero em se vestir; ela também não desiste do curso, ela continua. Aplica-se com zelo à poesia, abre bem os olhos, sente o vento nas folhagens, quer escrever ao menos um poema, é tarefa para o último dia de aula. Às vezes ela tem de virar o rosto – o feio, em mais de uma forma, puxa seu olhar, o invade; é preciso se desviar, é preciso fechar os olhos às vezes. Esqueci de mencionar o homem doente, vítima talvez de derrame, para quem ela trabalha. Ele curte um desejo louco por ela, um desejo que recebe expressão tortuosa, desagradável de ver: espasmos grotescos, repuxamento dos olhos, enrijecimentos. Seu corpo falha, como falha a memória de Mija. Amor, poesia –a hora deles soou, mas está fazendo água em toda parte. De repente um corpo é cuspido para dentro dos olhos. Poesia, horror. A velha cujo sorriso fascinador, cuja beleza atraia tantos olhares no passado e que bem aprendeu a arte de se compor para os outros, agora tem de prestar toda a atenção no mundo.
O extraordinário no filme talvez seja o esforço de uma estrutura delicadíssima e já evanescente para metabolizar o mais terrível. Uma sequência sintetiza esse esforço, que é do filme: Mija é incumbida pelos pais de procurar a mãe da menina e fazer a oferta de dinheiro pelo seu silêncio. Como ela, é mulher, cria com dificuldades o neto; poderá, portanto, estabelecer uma empatia com mais facilidade que os homens (as mães jamais aparecem), o assunto é mais que melindroso. É necessário agir com sutileza. A avó hesita, mas por fim aceita ir ao encontro da mulher. Não a acha em sua casa, lhe dizem que está no campo, trabalhando. O sol é forte, deve ser umas duas da tarde, há muitos abricós caídos no chão, ela pega um deles, morde com prazer, procura sentir a paisagem azul e amarela e avista a mãe. Aproxima-se, com a sua graça de sempre, falando das frutas doces, do verão; por um momento sua interlocutora sorri, fala também. Mija se despede. Os abricós, mero pretexto, tornam-se o texto principal, e ela não intervém, não lhe desvia a direção; não podia interferir na lógica interna da conversa, que tomou a forma de poesia da natureza — era pra falar de damascos, nada mais. O “verdadeiro” conteúdo pesaria naquele suave diálogo, que parece ter feito bem à mãe, a distraiu de seu trabalho, a fez rir um pouco. Com tempo e atenção espiritual, a delicada Mija saberá achar a forma adequada para um conteúdo feroz. Ou este, lentamente assimilado por uma ética e uma sensibilidade singular, fornecerá as leis próprias para a sua poesia.
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Priscila Figueiredo é poeta e ensaísta. Tem graduação em alemão e português na USP, onde faz o pós-doutorado na área de Teoria Literária. É autora de Em busca do inespecífico (ed. Nankin, 2001) e Mateus (no prelo, editora Bem-te-vi).
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