terça-feira, 19 de outubro de 2010

DIVULGAÇÃO: O Povo Sabe Votar (O Retorno)

O Povo Sabe Votar (O Retorno)[1] - por Nara Magalhães[2]
Em um livro que resultou de quase dez anos de pesquisa antropológica a respeito de eleições com grupos populares, eu afirmava, há mais de dez anos atrás, que o povo sabe votar. Mas não sabia que estava cometendo o que hoje está sendo chamado “delito de opinião”. E que em 2010, em pleno Século XXI, uma psicanalista e comentarista qualificada, do porte de Maria Rita Kehl, tenha sido demitida de um jornal por afirmar o mesmo é, no mínimo, surpreendente.
O jornal parece ter se alinhado com uma velha e conhecida perspectiva, aquela que considera que o Brasil está impedido de entrar na modernidade, e pior, a responsabilidade maior disso não seria da elite, mas da sua população ruidosa e misturada. Não é de admirar que a famosa baixa auto-estima brasileira ou a nostalgia da metrópole continue imperando em muitas análises ditas intelectuais sobre nossa democracia. Segundo essas perspectivas, o Brasil seria um país que não tem jeito, pela corrupção, pelo jeitinho, pelo atraso do seu povo.
Mas essas análises, aparentemente profundas e cheias de boas intenções, na verdade estão a apregoar que o Brasil não tem jeito porque o referencial é outro: a metrópole continua a ser inigualável, o padrão máximo, inalcançável pela colônia.
Ignoram que corrupção não é um privilégio brasileiro. Em praticamente todas as sociedades capitalistas (ricas, emergentes e pobres) ela se faz presente desde sempre. O Japão, a China, a Itália, a Inglaterra, os EUA, volta e meia se deparam com alguma denúncia a respeito, que têm motivado demissões de grandes mandatários - na política, na economia, no exército, nas grandes empresas, nos ministérios. Isso demonstra que não se consegue extirpá-la apenas com desenvolvimento. A lei severa e a punição efetiva é a única possibilidade de combatê-la.
Aliás, as ditas análises sobre esses casos também preferem ignorar uma pergunta crucial: qual a fonte dos recursos para corrupção no Brasil? Além dos agentes que manipulam o dinheiro ilegal oriundo de todo tipo de criminalidade (tráfico de drogas, comércio ilegal de armas, contrabando, etc.), quem são os outros agentes corruptores? Será que grandes e respeitáveis empresários brasileiros não consideram este o melhor e mais curto caminho para aprovar projetos de seus interesses, ganharem licitações, aumentar seus negócios e seus lucros? Conseguiremos combater a corrupção sem mudar essa mentalidade?
De novo, prefere-se supor que é “o povo” genericamente o responsável por essa situação, porque seria ele o responsável por eleger “deliberadamente” os corruptos.
Mas na pesquisa que realizei encontrei alguns fatos que desmentem isso e que são, no mínimo, curiosos. Por exemplo, ao conversar longamente com uma líder comunitária, ela me relatou que em sua comunidade haviam feito campanha para um candidato, e trabalharam várias “mães” para ele. O objetivo delas era a re-construção de um Clube de Mães e Creche da vila que estavam desativados. A senhora me contava entusiasmada que fizeram um trabalho intenso, e conseguiram reconstruir tanto o clube de mães como a creche, e culminaram com um café em que todos participaram. “Deu tudo certo!”, afirmou enfática. O candidato não se elegeu, mas isso é um detalhe.
Nesse universo popular, desacreditar das promessas dos políticos (que são sempre os outros, com quem eles não se identificam) e considerá-los todos iguais é uma constante. Trata-se de eleitores que pintam os muros de suas casas com o nome de um candidato ou partido, vão a uma festa ou churrasco da campanha de outro, usam camisetas de um terceiro, e ainda votam em um quarto ou quinto, rindo e dizendo: o voto é secreto.
Do ponto de vista do candidato (seja corrupto ou honesto), é muito difícil saber qual será a atitude de fato desse eleitor, se pode ou não contar com seu voto. Fica mais fácil chamá-lo de “despolitizado” ou “alienado” do que reconhecer que há nesse eleitor uma sabedoria e um aprendizado próprio da dinâmica eleitoral brasileira. Na época, chamei essa atitude do eleitor popular de um exercício de “cidadania às avessas”. Pois se trata de uma tentativa que ele faz de obtenção de recursos necessários para o grupo da vila, que deveria ser fornecido através de políticas públicas adequadas (uma creche, um espaço comunitário) e quando não o é, as lideranças identificam no contexto eleitoral uma possibilidade de atendimento dessas necessidades. Mesmo que, para isso, precisem enganar os candidatos.
Podemos acusar esse eleitor de vender seu voto? Na verdade, ele promete votar num candidato e não há garantias de que o faça. Podemos, no máximo, sugerir que ele mente aos candidatos, prometendo o voto a vários, sem concretizar a promessa. Ele ainda acrescenta: “O importante é a pessoa, não o partido”. E há quem acredite, e julgue que no Brasil os partidos não são fortes por este motivo. Mas, na verdade, essa afirmação abre o leque de conversas e permite o diálogo do eleitor com candidatos de todos os partidos.
Como se chegou a essa situação? Através das promessas vãs, eleição após eleição; da proximidade do candidato em momentos pré-eleitorais e seu distanciamento após a eleição; através dos acordos inusitados entre partidos que antes apareciam como inimigos; através das mudanças de partidos pelos candidatos. Enfim, através da relação do eleitor com o candidato e com o político eleito, e através da experiência vivida a respeito. Não é um caminho de uma única via. Mas não podemos considerar que esse eleitor vote de modo contrário a seus interesses, como parecem sugerir as análises que lhe atribuem um não saber.
Talvez o que os analistas apressados de plantão queiram sugerir novamente é a responsabilidade do eleitor pela fragilidade da democracia brasileira. Mas os únicos que parecem acreditar nisso são os próprios analistas daqui. Pois aquelas democracias que eles mais admiram e ainda têm como padrão, estão, por sua vez, a admirar o Brasil. O charme de um presidente operário, o índice de popularidade alcançado e a possibilidade concreta de eleger uma sucessora talvez sejam alguns dos motivos.
Outro dos motivos é que talvez com um distanciamento que lhes permite ver as coisas com menos apaixonamento que nós, os envolvidos nas torcidas eleitorais locais.
Para finalizar, gostaria de perguntar: existe um único voto certo? Numa democracia, teoricamente, existem tantos votos certos quantos forem os concorrentes em uma eleição. Eu considero que nesta eleição o voto certo é na Dilma. Mas isso não me dá o direito de supor que os leitores de Serra são ignorantes. Talvez o que eles sejam é defensores de um outro projeto de Brasil, diferente daquele que eu acredito ser o melhor. Talvez entre suas fileiras estejam aqueles que estão cansados de ver esse populacho ascendendo à condição de cidadão, num contexto em que cada vez menos é necessário exercitá-la como cidadania às avessas.
Porto Alegre, outubro de 2010.
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[1] “O Povo Sabe Votar” é o título de um livro da mesma autora, publicado pela Editora Vozes, em 1998.
[2] Nara Magalhães é antropóloga, pesquisadora dos temas política e mídia. Além do livro citado, é autora também do livro “Eu vi um Brasil na TV: televisão e cultura em perspectivas antropológicas”, além de vários artigos, entre eles: “Reflexões sobre televisão e a ‘falta de cultura’ no Brasil”, publicado pela Revista Em Questão, da FABICO/UFRGS. É Pesquisadora Associada do Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACI) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), e trabalha atualmente na Pró-Reitoria de Graduação da mesma universidade.

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