domingo, 17 de junho de 2012

Os marxistas e sua antropologia*


por Pierre Clastres

Não que seja muito divertido, mas é preciso refletir um pouco sobre a antropologia marxista, sobre suas causas e seus efeitos, suas vantagens e seus inconvenientes. Pois se o etnomarxismo constitui, por um lado, uma corrente ainda poderosa nas ciências humanas, a etnologia dos marxistas é, por outro, de uma nulidade absoluta ou, melhor, radical: é nula na raiz. Eis por que não é necessário entrar no detalhe das obras: pode-se sem dificuldade tomar em bloco homogêneo igual a zero. Convém portanto interrogarmo-nos sobre esse nada transbordante de ser (veremos de qual se trata), sobre essas conjunção entre discurso marxista e sociedade primitiva.
 Antes algumas referencias históricas. A antropologia francesa desenvolveu-se, de vinte anos para cá, graças a promoção institucional das ciências sociais ( criação de numerosos cursos de etnologia nas universidades e no CNRS [ Centre National de Recherches Scientifiques], mas também na esteira de um empreendimento muito considerável por sua originalidade, o de Lévi-Strauss. Assim a etnologia desenvolveu-se, até uma data recente, sob o signo principalmente do estruturalismo. Mas, há cerca de uns dez anos , produziu-se uma mudança de tendência: o marxismo ( o que chamam marxismo) aos poucos se impôs como linha importante de pesquisa antropológica, reconhecida por numerosos pesquisadores não marxistas como discurso legitimo e respeitável sobre as sociedades que os etnologos estudam. O discurso estruturalista cedeu assim o passo aos discurso marxista, como discurso dominante da antropologia.
 Por quais razões?
Invocar, nesse ou naqueles marxista, um talento superior ao de Lévi-Strauss, por exemplo, provocaria a hilaridade geral. Se os marxistas brilham, não é pelo talento, pois não o possuem
(por definição, poder-se-ia dizer): a maquina marxista não funcionaria, precisamente, se seus mecânicos tivessem o menor talento, como se verá. Por outro lado, atribuir, como se faz amiúde, a regressão do estruturalismo à versatilidade da moda parece inteiramente superficial. Na medida em que o discurso estruturalista veicula um pensamento forte (um pensamento), ele é transconjuntural e indiferente à moda: um discurso vazio é rapidamente esquecido. Veremos daqui algum tempo o que resta dele. Claro que não se pode tampouco relacionar à moda a progressão do marxismo em etnologia. Este estava pronto de antemão a preencher uma enorme lacuna do discurso estruturalista ( na verdade, o marxismo não preenche absolutamente nada, como tentarei mostrar). Que lacuna é essa onde se implanta o fracasso do estruturalismo? É que esse importante discurso da antropologia social não fala da sociedade. O que é evacuado, apagado do discurso estruturalista (essencialmente o de Lévi-Strauss: pois, salvo alguns discípulos mais ou menos hábeis, capazes de ser no máximo um sub-Lévi-Strauss, quem são os estruturalistas ?), aquilo de que esse discurso não pode falar, porque não é feito para isso, é da sociedade primitiva concreta, de seu modo de funcionamento, sua dinâmica interna, de sua economia e de sua política
 Mas afinal, dirão, o parentesco, os mitos, não são importantes? Certamente. Com exceção de alguns marxistas, todos concordam em reconhecer a importância decisiva do trabalho de Lévi-Strauss sobre As estruturas elementares do parentesco. Aliás, esse livro suscitou, entre os etnologos, uma formidável inflação de estudos de parentescos, que não se cansam de falar do irmão da mão ou da filha da irmã. A ponto de perguntarmo-nos se são capazes de falar outra coisa. Mas coloquemos de uma vez por todas a verdadeira questão: o discurso sobre o parentesco é um discurso sobre a sociedade? O conhecimento do sistema de parentescos de uma determinada tribo nos informa sobre sua vida social? De modo nenhum: quando se descascou um sistema de parentesco, pouco se avançou no conhecimento da sociedade que o emprega, ainda estamos no limiar. O corpo social primitivo não se reduz aos laços de sangue e de aliança, ele não é apenas uma maquina de fabricar relações de parentesco. Parentesco não é sociedade: quer isso dizer que as relações de parentescos são secundarias no tecido social primitivo? Muito pelo contrário, elas são fundamentais. Em outras palavras, a sociedade primitiva, menos que qualquer outra, não pode ser pensada sem as relações de parentescos, e no entanto o estudo do parentesco ( em todo caso, tal como foi conduzido até o presente) nada ensina sobre o ser social primitivo. Para que servem as relações de parentesco nas sociedades primitivas? O estruturalismo pode apenas fornecer uma única resposta, maciça: para codificar a proibição do incesto. Essa função do parentesco ensina que os homens não são animais, não são mais do que isso: ela não explica de que maneira o homem primitivo é um homem particular, diferente dos outros, de que maneira a sociedade primitiva é irredutível às outras. E, no entanto, os laços de parentescos cumprem uma função determinada, imanente à sociedade primitiva como tal, isto é, como sociedade indivisa constituída de iguais: parentesco, sociedade, igualdade estão do mesmo lado. Mas essa é uma outra história, da qual falaremos numa outra oportunidade.
 É no terreno as mitologia que se situa o outro grande êxito de Lévi-Strauss. A analise dos mitos provocou menos vocações do que a do parentesco: entre outras coisas, porque é mais difícil e porque certamente ninguém conseguiria fazer tão bem quanto o mestre. Qual a condição para que sua analise possa se desenvolver? A de que os mitos constituam um sistema homogêneo, a de que os mitos “se pensem entre si”, como diz o próprio Lévi-Strauss. Os mitos têm portanto relação um com os outros, eles são pensáveis. Muito bem. Mas o mito (tal mito particular) limita-se a pensar seus vizinhos para que o mitólogo possa pensá-los todos juntos? Seguramente não. Aqui também a concepção estruturalista abole, de uma maneira particularmente clara, a relação com o social: é a relação dos mitos entre si que é desde o inicio privilegiada, por elisão do lugar de produção e invenção do mito, a sociedade. Que os mitos se pensam entre si, que sua estrutura seja analisável, não há duvida, e Lévi-Strauss oferece uma prova brilhante; mas isso, de certo modo, é secundário: pois eles pensam primeiramente a sociedade que sem pensa neles, e aí reside sua função. Os mitos constituem o discurso da sociedade primitiva sobre si mesma, eles envolvem uma dimensão sociopolitica que a analise estrutural evita, naturalmente, levar em conta sob pena de entrar em pane. O estruturalismo só é operatório à condição de separar os mitos da sociedade, de aprendê-los, etéreos, Flutuando a uma boa distancia de seu espaço de origem . E por isso quase nunca se fala daquilo que, no entanto, impõe-se como experiência privilegiada da vida social primitiva, a saber: o rito. Com efeito, que há mais de coletivo, de mais social do que um ritual? O rito é a mediação religiosa entre o mito e a sociedade: mas, para a análise estrutural, a dificuldade provém de que os ritos não se pensam entre si. Impossível pensá-los. Logo, retira-se o rito e, com ele, a sociedade.
 Quer se aborde o estruturalismo por seu cume (a obra de Lévi-Strauss) , quer se considere esse cume segundo suas encostas principais (análises do parentesco; análise dos mitos), Uma constatação se impõe, a constatação de uma ausência: esse discurso elegante, com freqüência muito rico, não fala da sociedade. O estruturalismo é como uma teologia sem deus: é uma sociologia sem sociedade.

 Conjulgando-se a um maior poder das ciências humanas, manifestou-se portanto uma forte - e legítima - demanda entre os pesquisadores e estudantes: queremos falar da sociedade, falem-nos das sociedades! É então que a cena. Ao gracioso minueto dos estruturalistas, polidamente dispensados, sucede um novo balé, o dos marxistas (como eles próprios se chamam): estes dançam uma robusta bourrée e, com seus tamancos guarnecidos de pregos, batem com rudeza o solo da pesquisa. Por diversas razões (políticas e não cientificas), o publico, numeroso, aplaude. É que o marxismo, de fato, como teoria da sociedade e da história, esta por natureza habilitado a estender seu discurso ao campo da sociedade primitiva. Melhor: a lógica da doutrina marxista a obriga a não negligenciar nenhum tipo de sociedade, faz parte da natureza dizer a verdade a propósito de todas as formações sociais que balizam a história. É por isso que, imanente ao discurso marxista global, há um discurso antecipadamente pronto a ser feito sobre a sociedade primitiva.
 Os etnólogos marxista constituem uma falange obscura mas numerosa. Em vão procuramos, nesse corpo disciplinado, uma individualidade marcante, um espirito original: devotos da mesma doutrina, todos professam a mesma crença e salmodiam o mesmo credo; cada um zelando para que o vizinho respeite na ortodoxia a letra dos cânticos entoados por esse coro pouco angélico. No entanto, objetar-me-ão, tendências ali se enfrentam, e duramente. De fato: cada um deles passa o tempo a tratar o outro como impostor pseudo-marxista. cada um reivindica como sua a boa interpretação do Dogma. Naturalmente, não me compete descobrir quem merece o titulo de marxista autêntico (que resolvam entre si). Em troca, posso tentar mostrar (isso não é um prazer, é um dever) que suas querelas de seitas agitam a mesma paróquia e que o marxismo de um não vale mais que o do outro.
 Tome-se, por exemplo,  Meillassoux. Ele seria, dizem, uma das cabeças pensantes (pensantes!) da antropologia marxista. Nesse caso preciso, esforços penosos me são poupados graças à análise detalhada que A.Adler dedicou a uma obra recente desse autor(1).  Que o leitor se reporte portanto à referida obra e à sua critica: o trabalho de Adler é sério, cerrado , mais do que atento ( Adler, como Meillassoux - ou melhor, não como ele -, é de fato um especialista da África). O pensador marxista deveria orgulhar-se de ter que lidar com um leitor tão consciencioso, testemunhar-lhe reconhecimento: mas não é o que acontece. Às objeções muito razoáveis de Adler (que destrói, como era de se esperar, o empreendimento do autor), Meillassoux opõem uma resposta(2) que se pode resumir sem dificuldade: os que não estão de acordo com a antropologia marxista são partidários de Pinochet. Ponto final. É sumário, mas claro. Malditas sejam as nuanças, quando se é protetor austero da doutrina. Ele é uma espécie de entreguista, há algo de Monsenhor Lefebvre nesse homem: o mesmo fanatismo estreito, a mesma alergia incurável à duvida. Dessa madeira fazem-se bonecos inofensivos. Mas, quando este boneco esta no poder, ele torna-se inquietante e chama-se, por exemplo, Vichinsky: Ao Gulag os descrentes! Lá aprenderão a não mais duvidar que as relações de produção dominam a vida social primitiva.
 Mas Meillassoux não é o único, e seria injusto para os outros fazer pensar que ele detém o monopólio do marxismo antropológico. Por um cuidado de eqüidade, convém dar a seus colegas o lugar que merecem.
 Tome-se, por exemplo, Godelier. Ele adquiriu uma considerável reputação (na parte baixa da rua de Tournon) de pensador marxista. Seu marxismo chama a atenção, pois parece menos áspero, mais ecumênico que o de Meillasoux. Há algo de radical-socialista nesse homem (vermelho por fora, branco por dentro). Seria então um oportunista? Nada disso. É um atleta do pensamento, que empreendeu fazer a síntese entre estruturalismo e marxismo. É preciso vê-lo saltitar de Marx a Lévi-Strauss. (Saltitar? Como se fosse um passarinho? São guinadas de elefante!)
Folheemos seu último livro(3) e especialmente o prefácio à segunda edição: ocupação que, diga-se de passagem, é pouco prazerosa. O estilo, de fato, é o homem, e este não exatamente proustiano (vê-se bem que o rapaz não está de olho na Academia francesa).
Enfim. A conclusão desse prefácio é um tanto confusa. Com efeito, Godelier explica que Lefort e eu colocamos  a questão da origem do Estado em nosso trabalho sobre La Boétie (não é em absoluto disso que se trata), que Deleuze e Guatarri ja haviam respondido a ela em O Anti-Édipo,  mas que suas idéias "eram provavelmente inspiradas em Clastres" (p. 25, n. 3). vá compreender-se. Em todo caso, Godelier é honesto; reconhece que não compreende nada do que lê (ele enfeita suas citações com pontos de exclamação e de interrogação).
Godelier não gosta da categoria de desejo, que aliás também o repele. Eu perderia meu tempo - Pois ele não compreenderia - em tentar explicar-lhe  que o que Lefort e que identificamos por esse termo pouco tem a ver com o uso que dele fazem Deleuze e Guatarri. Deixemos isso de lado. De todo modo, essas idéias são suspeitas a seus olhos porque a burguesia as aplaude, e ele faz o que for preciso "para que a burguesia seja a única a aplaudi-las".
 Já ele, Godelier, é aplaudido pelo proletariado. As suas altivas declarações, quantas ovações da periferia! Reconheçamos que há algo de comovente (e de inesperado)  nessa ruptura ascética: ele renuncia à Universidade da burguesia, as suas pompas e carreiras, as suas obras e promoções. É o São Paulo das ciências humanas. Amém. Ainda assim, impacienta-se o leitor, será que esse bronco só profere asneiras? Ele deve ter uma idéia de vez em quando! Mas é muito difícil encontrar as idéias de Godelier nessa opressiva retórica marxista. Descontadas as citações de Marx, e as banalidades em que todos incorrem nos momentos de relaxamento, não sobra grande coisa. Admitamos porém que, no prefácio à primeira edição e no prefácio à segunda, nosso paquiderme despendeu um esforço considerável ( não é boa vontade que lhe falta). Embarcando num verdadeiro "périplo", como ele próprio diz, esse ousado navegante atravessou oceanos de conceitos. O que descobriu? Por exemplo, que as representações das sociedades primitivas (religiões, mitos etc.) pertencem ao campo da ideologia. Ora, convém aqui ser marxista (não como Godelier), isto é, fiel ao texto de Marx: com efeito, o que é para este ultimo a ideologia? É o discurso que enuncia sobre si mesma uma sociedade dividia, estruturada em torno do conflito social. Em uma palavra, a ideologia é a mentira . Para que haja ideologia é preciso ao menos que haja divisão social. Godelier ignora isso: como saberia
ele que a ideologia, no sentido formulado por Marx, é um fenômeno moderno, aparecido no século XVI, contemporâneo justamente do nascimento do Estado moderno, democrático? Não é o saber histórico que estorva a cabeça de Godelier: assim, para ele, religião e mito são ideologia. Certamente ele pensa que ideologia é o mesmo que idéias. Crê que todo mundo é como ele. Não é na sociedade primitiva que a religião é ideologia, mas na cabeça de Godelier: para ele, com certeza, sua religião é sua ideologia marxista. O que significa falar de ideologia a propósito de sociedades  primitivas, isto é, de sociedades indivisas, sociedades sem classes, se por natureza elas excluem a possibilidade de tal discurso? Significa, em primeiro lugar, que Godelier não faz o menor caso de Marx; a seguir, que não compreende nada do que é uma sociedade primitiva. Nem marxista nem etnólogo! Um gênio!
 Em boa lógica, sua concepção "ideológica" da religião primitiva deveria levá-lo a determinar o mito como ópio do selvagem. Não o apressemos, ele faz o que pode, da próxima vez dirá. Mas, além de uma lógica nula, seu vocabulário é pobre. Com efeito, esse vigoroso montanhês parte a palmilhar os Andes (p.21-22). E o que descobre lá? Que a relação entre a casta dominante dos Incas e o campesinato constituía uma troca desigual (é ele que sublinha, ainda por cima). De onde ele tirou isso? Então, entre o Senhor e o Súdito há uma troca desigual? E, certamente, também entre o capitalista e o operário? O nome disso não é corporativismo? Godelier-Salazar, lado a lado, quem diria! Enriquecemos, pois, o vocabulário de Godelier: a troca desigual chama-se simplesmente roubo ou, em termos marxistas, exploração. Eis o preço que se paga quando se quer ser ao mesmo tempo estruturalista (troca e reciprocidade) e marxista (desigualdade): não se é absolutamente nada. Godelier tenta aqui colar a categoria de troca ( que vale apenas para as sociedades primitivas, isto é, as sociedades de Iguais) sobre as sociedades divididas em classes, isto é, estruturadas sobre a desigualdade ( ele mistura tudo e escreve besteiras - racionárias, evidentemente -, introduzindo ora a religião na ideologia, ora a troca na desigualdade.
 Tudo, nele, segue o mesmo passo. Ele se interessa, por exemplo, pelas sociedades australianas? Cheio de astúcia, como de costume, descobre que lá "as relações de parentesco eram igualmente relações de produção, constituíam a   estrutura econômica" (p.9; é sempre ele que sublinha). mas o que faz a produção ai? Essa proposição não tem a rigor o menor conteúdo. Com efeito, ela significa que as ditas relações de produção se estabelecem entre parentes? Ora, com quem ele quer elas se estabeleçam? Com os inimigos talvez? Com exceção da guerra, todas as relações sociais se estabelecem entre parentes, é obvio. Qualquer etnónologo iniciante o sabe. Banalidade sem interesse, portanto.  Mas não é isso que nos quer dizer o marxista Godelier.  Ele quer fazer entrar à força na sociedade primitiva (onde elas não cabem) as categorias marxistas de relações de produção, de forças produtivas, de desenvolvimento de forças produtivas - essa penosa linguagem estereotipada, incessantemente repetida  -, escorando-se ao mesmo tempo no estruturalismo: sociedade primitiva = relações de parentesco = relações de produção. E ponto final.
 Algumas breves observações a esse respeito. Primeiro, sobre a categoria de produção. Mais competentes e atentos aos fatos do que Godelier (o que não é difícil), especialistas em economia primitiva como Marshall Sahlins, nos Estados Unidos, ou Jacques Lizot, na França, que se ocupam de etnologia e não de catecismo, estabeleceram que a sociedade primitiva funciona precisamente como máquina de antiprodução; que o modo de produção doméstico opera sempre abaixo de suas possibilidades; que não há relação de produção porque não há produção, esta sendo a última preocupação da sociedade primitiva. Naturalmente, Godelier (cujo marxismo é exatamente a mesma piada que o de seu concorrente Meillassoux, são os irmão Marx) não pode renunciar à Sagrada Produção, caso contrário seria a falência, ele ficaria desempregado. Mas Godelier é um sujeito a quem não falta saúde: com a bonomia de um trator, ele esmaga os fato etnológicos sob a doutrina que o faz viver e, o que é mais, tem o descaramento de reprovar  nos outros "um desprezo total por todos os fatos que os contradizem"(p.24). Ele sabe do que fala, o espertalhão.
 Sobre o parentesco, enfim. Embora estruturalista, um marxista não pode compreender o que são as relações de parentesco. Para que serve um sistema de parentesco? Serve, aluno Godelier, para fabricar parentes. Mas para que serve um parente? Não, seguramente, para produzir qualquer coisa. Serve, até segunda ordem, para portar justamente o nome de parente. É essa a principal função sociológica do parentesco na sociedade primitiva (e não instituir a proibição do incesto). Eu poderia certamente ser mais claro. Limitar-me-ei a dizer, por ora ( pois um pouco de suspense produz os melhores efeitos) , que a função de nomeação, inscrita no parentesco, determina todo o ser sóciopolítico da sociedade primitiva. É ai que reside o nó entre parentesco e sociedade, que desataremos noutra ocasião. Se Godelier conseguir dizer um pouco mais a esse respeito, ganhará uma assinatura grátis da revista Libre.
 Esse prefácio de Godelier é um florilégio: as flores mais raras o compõem. Trabalho de artista. Colhamos uma última citação: "pois - e muitos ignoram - existiram e ainda existem numerosas sociedades divididas em ordens ou em castas ou em classes, em exploradores e explorados, e que no entanto não conhecem o Estado". Por que ele não diz em primeiro lugar, pois o esclarecimento é importante, a que sociedades alude? Por que guardar esse segredo? Quanto ao resto, ele quer dizer claramente que se pode pensar a divisão social sem O Estado. Mas o que pode ser o Estado para Godelier? Com certeza, os ministérios, a Casa Branca, o Kremlin, o Élysée. Decididamente, é simpática essa inocência de provinciano na capital. Mas basta de efusões. Godelier esquece uma única coisa, a principal ( que os marxistas têm o cuidado de não esquecer quando controlam o aparelho de Estado), a saber: que o Estado é o exercício do poder político. Não se pode pensar o poder sem o Estado ou o Estado sem o poder. Em outras palavras: lá onde identificamos um exercício efetivo do poder por uma parte da sociedade sobre o resto, estamos confrontados com uma sociedade dividida, isto é, uma sociedade com Estado ( mesmo se a {?} do Déspota não é muito grande). A divisão social em dominantes e dominados é, de uma ponta a outra, política, ela reparte os homens em Senhores do poder e Súditos do poder. A economia, o tributo, a dívida, o trabalho alienado aparecem como signos e efeitos da divisão política segundo o eixo do poder, conforme mostrei bem noutra parte (e Godelier não é o ;ultimo a aproveitar-se do que escrevi, à p.22 por exemplo, mas sem citar-me, o safado... Como dizia Kant, há quem não goste de pagar sua dívida). A sociedade primitiva é não dividida porque não possui órgão separado do poder político. A divisão social passa primeiramente pela separação entre sociedade e o órgão {?} do Poder. Logo, toda não sociedade não primitiva (isto é, dividida) comporta, mais ou menos desenvolvida, a figura do Estado. Obviamente, entre a figura mínima do Estado, tal como a encarnavam certas realezas polinézias, africanas ou outras, e as formas mais estabelecidas do Estado (ligadas, entre outras coisas, à demografia, ao fenômeno urbano, à divisão do trabalho, à escrita etc.) existem consideráveis graus na intensidade do poder exercido, na intensidade da opressão sofrida, o grau ultimo sendo atingido pelo tipo de poder exercido por fascistas e comunistas: aí o poder do Estado é total, a opressão absoluta. Mas permanece, irredutível, este ponto central: assim como não se pode pensar a sociedade indivisa sem a ausência do Estado, tampouco se pode pensar a sociedade dividida sem a presença do Estado. E refletir sobre a origem da desigualdade, da divisão social, das classes, da dominação, é refletir no campo da política, do poder, do Estado, e não no campo da economia, da produção etc. A economia engendra-se a partir do político, as relações de produção vêm das relações de poder, o Estado engendra as classes.

Uma vez saboreando o espetáculo de toda esta farsa, abordemos agora a questão importante: o que vem a ser o discurso marxista em antropologia? Eu falava, ao iniciar este texto, da nulidade radical da etnologia marxista (leiam, leitores, as obras de Meillassoux, Godelier e companhia: é edificante). Radical, ou seja, desde o ponto de partida. E por que? Porque esse discurso não é um discurso científico (isto é, preocupado com a verdade), mas um discurso puramente ideológico (isto é, preocupado com a eficácia política). Para ver com clareza, convém primeiro distinguir entre o pensamento de Marx e o marxismo. Marx foi, com Bakunin, o primeiro critico do marxismo. O pensamento de Marx é uma grandiosa tentativa (às vezes bem, às vezes mal sucedida) de pensar a sociedade de seu tempo ( o capitalismo ocidental) e a história que a fez surgir. O marxismo contemporâneo é uma ideologia a serviço de uma política. De modo que os marxistas nada têm a ver com Marx. Eles são os primeiros a reconhecer. Godelier e Meillassoux não se tratam de impostores pseudo-marxistas? É inteiramente verdade, estou de acordo com eles, ambos têm razão. Descaradamente, os dois se valem da barba de Marx para melhor impingir sua mercadoria. Belo exemplo de publicidade enganosa. Mas será preciso mais de um {?} para desonrar um Marx.
 O marxismo pós-marxiano, ao tornar-se uma ideologia dominante do movimento operário, tornou-se inimigo principal do movimento operário, constitui-se como a forma mais arrogante daquilo que o século XIX produziu de mais estúpido: o Cientificismo. Em outras palavras, O marxismo contemporâneo auto-institui-se como o discurso que enuncia as leis do movimento histórico, as leis de transformação das sociedades que se engendram umas a partir das outras. Logo, o marxismo pode falar de todo tipo de sociedade, uma vez que conhece de antemão, seu principio de funcionamento. Mas tem mais: o marxismo deve falar de todo tipo de sociedade possível ou real, pois a universidade das leis que ele descobre não admite nenhuma exceção. Caso contrário, é a doutrina em bloco que vem abaixo. Consequentemente, a fim de manter não apenas a coerência mas a existência mesma desse discurso, é imperativo para os marxistas formular a concepção marxista da sociedade primitiva, constituir uma antropologia marxista. Sem o que não haveria teoria marxista da história, mas apenas a analise de uma sociedade particular ( o capitalismo do século XIX) elaborada por um homem chamado Marx.
 Mas eis os marxistas pegos na armadilha de seu marxismo. De fato, eles não têm escolha: precisam submeter os fatos sociais às mesmas regras de funcionamento e transformação que regem as outras formações sociais. não poderia haver aqui dois pesos e duas medidas: se há leis da história, elas devem se aplicar tanto a seu ponto de partida ( a sociedade primitiva) quanto à continuação de seu curso. Logo deve haver um só peso, uma só medida. Qual a medida marxista dos fatos sociais? É a economia (4). O marxismo é um economismo, ele reduz o corpo social à infra-estrutura econômica, o social é o econômico. E por isso os antropólogos marxistas são obrigados a extrair do corpo social primitivo o que, segundo eles, funciona noutras partes: as categorias de produção, de relações de produção,  de desenvolvimento das forças produtivas, de exploração etc. A fórceps, como diz Adler. E é assim que os mais velhos exploram os mais jovens (Meillassoux), que as relações de parentesco são relações de produção (Godelier).
 Mas não voltemos a essas tolices. Quero apontar apenas o obscurantismo militante dos antropólogos marxistas. eles falsificam sem o menor pudor os fatos, espezinham-nos e trituram-nos até nada mais restar. Substituem a realidade dos fatos sociais pela ideologia de seu discurso. Meillassoux, Godelier e companha são os Lissenko das ciências humanas, insaciáveis em seu frenesi ideológico, em sua vontade de devastação da etnologia: até o fim, isto é, até a supressão pura e simples da sociedade primitiva como sociedade especifica, como ser social independente. Na lógica do discurso marxista, a sociedade primitiva não pode simplesmente existir, não tem o direito a existência autônoma, seu ser só se determina em função do que virá depois dela, do que é seu futuro obrigatório. Para os marxistas, as sociedades primitivas são apenas, eles proclamam doutamente, sociedades pré-capitalistas. Eis aí o modo de organização da sociedade que foi o de toda a humanidade durante dezenas de milênios, mas para os marxistas, {?}. Para eles, a sociedade primitiva só existe na medida em que se reduz à figura da sociedade aparecida  no final do século XVIII, o capitalismo. Antes disso nada conta, tudo é pré-capitalista. Esses simplórios não complicam a existência, ser marxista é repousante. Tudo se explica a partir do capitalismo, pois eles possuem a boa doutrina, a chave que abre a sociedade capitalista e portanto todas as formações sociais históricas. Resultado: para o marxismo em geral, o que {mede} a sociedade é a economia, e para os etnomarxistas, que vão ainda mais longe, o que mede a sociedade primitiva é a sociedade capitalista. E ponto final. Mas os que não recuam diante de um pouco de fadiga colocam a questão à maneira de Montaigne ou de La Boétie ou de Rousseau, e julgam o que veio depois em relação ao que havia antes: o que são sociedades primitivas? Por que apareceram a desigualdade, a divisão social, o poder separado, o Estado?
 Como é possível, perguntamo-nos, que possa funcionar essa visão tão vesga da realidade? pois, se ela está em recessão de uns tempos para cá, ainda assim atrai clientes. Não ha duvida que esses clientes (os ouvintes e leitores desses marxismos) não são exigentes quanto à qualidade dos produtos que consomem, é o mínimo que se pode dizer. Tanto pior para eles! Se gostam dessa sopa, que a engulam. Mas ficarmos nisso seria ao mesmo tempo muito cruel e muito simples: ao denunciarmos o empreendimento dos etnomarxistas, podemos, antes de mais nada, ajudar um certo numero de intoxicados a não morrerem idiotas (esse marxismo é o ópio dos pobres de espirito). Mas seria muito leviano, quase irresponsável, limitar-se a destacar (se posso dizer) a nulidade de um Meillassoux ou de um Godelier. A produção deles não vale um vintém, é coisa sabida, mas seria uma grande erro subestimá-la: com efeito, o nada de seu discurso marcara o ser com que se farta, a saber: sua capacidade de difundir uma ideologia de conquista do poder. Na sociedade francesa contemporânea, a Universidade ocupa um lugar considerável. E na Universidade, sobretudo no campo das ciências humanas ( pois parece ser mais difícil ser marxista em matemática ou em biologia), essa ideologia política que é o marxismo atual tenta se estabelecer como ideologia dominante.
 Nesse dispositivo global, nossos etnomarxistas ocupam um lugar modesto, certamente, mas não negligenciavel. Há uma divisão do trabalho político e eles cumprem sua parte no esforço geral: assegurar o triunfo de sua ideologia comum. Arre! Não seriam simplesmente stalinianos, bons aspirantes à burocracia, perguntamo-nos? Isso explicaria, em todo caso, seu desprezo pelas sociedades primitivas; estas lhe servem apenas de pretexto para difundir sua ideologia monolítica e sua linguagem estereotipada. Por isso, trata-se menos de zombar de sua estupidez que de desentocá-los do lugar real onde se situam: o confronto política em sua dimensão ideológica. Com efeito, os stalinianos não são conquistadores quaisquer do poder: o que eles querem é o poder total, o Estado de seus sonhos é o Estado totalitário: inimigos, como os fascistas, da inteligência e da liberdade, afirmam deter um saber total para legitimar o exercício de um poder total. Temos toda a razão de desconfiar de gente que aplaude os massacres do Camboja ou da Etiópia, porque os que massacram são marxistas. Se um dia desses Amim Dada proclamar-se marxista, ouvi-los-emos bradar: Bravo, Dada!
 E agora aguardemos e fiquemos à escuta: os brontossauros vão talvez zurrar. 
* Publicado na revista Libre, n. 3, 1978, com a seguinte nota: “ Estas paginas forma redigidas por Pierre Clastres alguns dias antes de sua morte. Ele não pôde fazer sua transcrição e revisão, o que resultou em alguns problemas de decifração do manuscrito. As palavras duvidosas estão entre chaves. As palavras ou expressões ilegíveis estão em branco”.

notas:
1. Claude Meillassoux, Femmes, greniers et capitaux (Paris: Maspero, 1976); Alfred Adler, "L'Éthnologie marxiste: vers un nouvel obscurantisme?". L'Homme, XVI, n.4.
2. Meillassoux, "Sur deux critiqus de Femmes, greniers et capitaux ou Fahrenheit 450,5". L'Homme, XVII, n.i.
3. Maurice Godelier, Horizon, trajets marxistes en anthropologie (Paris: Maspero,1977)
4. E, sobre esse ponto, há realmente em Marx uma raiz de marxismo, seria ridículo querer salvá-lo aqui dos marxistas. De fato, não se deixou ele escrever, em O Capital que: {falta a citação original}
buscado em: cooperação.sem.mando

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