domingo, 10 de junho de 2012

nu-sol - hypomnemata 143


 Boletim eletrônico mensal
 do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 143, abril de 2012.
 
Do que engessa e do que se move: que nenhum nome fique à sombra.
diante do mesmo
Em 2010, ano em que foi lançado o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), as discussões políticas institucionais em torno da formação daComissão da Verdade (Eixo Orientador VI, “Direito à memória e à verdade”) mantiveram intocáveis as violências perpetradas por militares covardes e seus funcionários sobre os corpos de homens e mulheres corajosos que resistiram à ditadura civil-militar implantada, no Brasil, com o golpe de 1964.
Nesse momento alguns intelectuais combativos chamaram a atenção, sobretudo, para a oportunista substituição do termo “repressão política” por “conflitos políticos”, em nome da conservação das alianças do governo com empresários e setores militares.
Esta substituição isentava o Estado de todas as inomináveis violências justificadas sob o argumento de conservar a ordem e manter a Segurança Nacional, e tiveram como efeito a prisão, a tortura e a morte de milhares de pessoas.
Foi precisamente com essa substituição que a presidente Dilma Rousseff sancionou em novembro de 2011, a lei para a criação da Comissão da Verdade. Quatro meses depois do Projeto de Lei, emergiram os primeiros escrachos em variadas capitais do Brasil.
Surpreendendo a monotonia de certas manifestações políticas recentes, os jovens escrachados escolheram como espaço de suas ações não as grandes avenidas ou sedes de prédios do governo, mas as portas das casas de torturadores, legistas e militares que violentaram de variados modos a existência de resistentes à ditadura civil-militar nos anos 1960 e 1970.
Tais escrachos escancararam onde moram e com o que trabalham hoje os covardes colaboradores da ditadura civil-militar brasileira.
Os escrachos não são uma prática recente na América do Sul.  Aparecem no Brasil com a variação esculacho, referindo-se à gíria utilizada nos dias de hoje para designar uma dura (tortura) que se toma de um policial na rua quando se é abordado.

escrachos
O vocábulo escrache pode advir do genovês “scraccé”, sinônimo de fotografia do rosto. A palavra já é definida em léxicos como o “Diccionario del hablade los argentinos” como protesto que visa denunciar o domicílio de pessoas acusadas de violar os direitos humanos. E foi precisamente na Argentina que emergiram, em 1995, as primeiras ações escrachadas.
Desde a segunda metade da década de 1980, certas manifestações que reivindicavam as informações sobre os chamados “desaparecidos” e a memória dos militantes assassinados pelos militares, reorganizavam parte da população argentina.
Em espaços como o Taller de la amistad e Taller Julio Cortazar militantes que combateram a ditadura conviviam com crianças órfãs, filhas de seus companheiros de luta e lhes contavam o real desfecho da existência de seus pais.
Na década seguinte - a mesma que se iniciou com a série de indultos concedidos pelo governo de Carlos Menem a mais de duzentos militares -, um acontecimento denominado Jornada de MemoriaRecuerdo y Compromiso na Faculdade de Humanidades e Ciências Sociais de Buenos Aires, auxiliou a reunir, sobretudo, esses jovens que tiveram seus pais assassinados pelos militares argentinos.
Sob efeito dessas movimentações, que ganharam força a partir dos anos 1990, irrompe o movimento dos HIJOS.
Um dos estopins para o escrache foi a peça de teatro inventada pelos HIJOS chamada bla,bla,bla, na qual se conta a história de um torturador que frequentava uma quitanda e manchava de sangue cada fruta que tocava. A peça se encerrava com os jovens afirmando que era necessário que o quitandeiro não vendesse frutas a esse homem, o motorista de táxi o rejeitasse em seu carro, o jornaleiro não aceitasse vender a ele os papéis com as notícias diárias.
 Animados pela encenação e visando responder às declarações públicas de militares como Adolfo Scilingo acerca dos chamados “voos da morte”, voos conduzidos por aviões da Aeronáutica que lançavam ao mar homens e mulheres presos sob a acusação de terrorismo, os HIJOS decidiram organizar a Comissão dos Escraches.
O primeiro alvo da corajosa insolência dos jovens foi precisamente Jorge Magnaco, médico conivente com a tortura de muitas das mães desses HIJOS, encarregado dos partos na Escuela de Mecánica de La Armada (ESMA) e do roubo organizado das crianças, filhos de militantes, pelo Estado.
Conta-se, entre os HIJOS, que um dos integrantes do grupo nasceu no interior da ESMA, porém, sua mãe já ciente dos feitos do execrável médico fez uma marca na orelha esquerda do filho e comunicou às demais mulheres presas.
Depois de tornar-se “desaparecida”, antes de Magnaco ou algum outro abjeto torturador roubar a criança, companheiras de prisão conseguiram fazer com que seu filho chegasse aos quatros meses de vida aos cuidados dos avôs paternos.
O resultado do escrache sobre Magnaco foi a sua demissão da clínica em que estava empregado, seguida da expulsão do condomínio onde morava.
Diante das violências cometidas pelo Estado, entre elas a prisão, a tortura e a morte de milhares de pais, mães, filhos, é comum ouvir entre os argentinosescrachados que a cumplicidade que experimentam na luta é uma relação entre irmãos.
No mesmo país em que irrompeu há trinta e cinco anos o movimento das Madres de La Plaza de Mayo, organizado por mães em busca das informações acerca de seus filhos “desaparecidos”, as ações dos HIJOS ganharam força para exigir a exposição da história recente do país.
As ações de Madres e Hijos voltam-se hoje contra aqueles que investiram em prender, torturar, matar e roubar as crianças que nasceram de mulheres que resistiam ao governo.
Como narra a trágica Antígona de Sófocles, a revolta de Madres e Hijos explicita que não há governo que suporte o fogo advindo daqueles cujos filhos dilacerados não tiveram outra sepultura que cães, feras ou alguma ave a contaminar altares com porções pestilentas.
Cinco anos após as movimentações na Argentina, durante o julgamento de Pinochet, no Chile, eclodiram ações que também visavam expor publicamente a podridão rançosa de homens que dedicaram suas vidas a servir à ditadura.
Chamadas de funa, as manifestações dos jovens chilenos, desmascararam, entre tantos, o torturador German Muñoz e Emilio Alvear, este último ex-integrante da DINA (Dirección de Inteligencia Nacional) e hoje funcionário da empresa de telecomunicações Telefónica.
Todavia, para além das urgências das funas e escraches em expor tais sobrevidas medíocres, é preciso também não esquecer, ainda hoje, que grande parte das populações dos países da América do Sul foi conivente, medrosa e favorável às abomináveis violências do Estado.
Em “Noturno do Chile”, o escritor Roberto Bolaño mostra como durante a ditadura de Pinochet, na casa da personagem Maria Canales, eramorganizadas tertúlias literárias frequentadas por artistas e teóricos de vanguarda.
Certa noite no porão da casa, aparentemente insuspeita, um dos presentes à soireé se perdeu nos seus corredores e, ao chegar ao porão, deparou-se com um corpo inchado e supurado por torturas.
Depois da visão, fechou a porta e voltou em silêncio para o sarau. O silêncio, provocado pelo medo e covardia, contrastava com os urros e berros de dor de quem tinha a vida arruinada por homens covardes. Contraste ubíquo que sustentou a violência dos governos em vários cantos da América do Sul.

e se move...
Somente hoje, talvez animados pela modorrenta discussão institucional acerca da Comissão da Verdade, os escrachos irrompem em certos cantos do Brasil.
As ações, assim como as ocorridas na Argentina e no Chile, são realizadas por jovens que não viveram durante o período de repressão ditatorial.
Estes jovens trazem à tona nomes de homens abjetos e que não podem e não devem ser esquecidos como Harry Shibata, conhecido legista que assinou inúmeros laudos médicos para o regime militar, entre eles, o que atestava como suicídio o assassinato do jornalista Wladimir Herzog; David dos Santos Araújo, torturador durante a ditadura civil-militar e hoje proprietário de uma empresa prestadora de serviços de segurança privada.
publicização destes e de outros nomes revela que estes homens seguem trabalhando com segurança, seja no governo ou por fora dele, ocupam cargos na máquina do Estado, continuam produzindo laudos ou ensinando jovens alunos a produzi-los segundo seus métodos escusos.
As informações sobre as atividades destes colaboradores reiteram que a exposição da verdade a respeito do que se passou durante a ditadura civil-militar não é questão reservada ao passado e tampouco revanchismo.
Trata-se de uma preocupação pertinente a qualquer lutador da liberdade no presente (ver hypomnemata extra de janeiro de 2010 http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=142).
Um cidadão que torturou e/ou atestou violências e mortes não pode hoje estar de posse de um exército de mercenários armados, tampouco executando funções ditas públicas.
Afastá-los de suas atividades e retirar os seus nomes de ruas, prédios e praças é coerente com quem vive a democracia como potência de liberdades e ameaça aqueles que a encaram como mero resultado de arranjos institucionais.
Da mesma maneira que é importante a garantia de uma Comissão da Verdade que nomeie e traga a público os colaboradores e os documentos ligados à história recente do país, os escrachos não devem se enredar na mera reivindicação por justiça e punição, reiterando a face autoritária das democracias hodiernas.
            Não se trata de fazer da exposição pública um tribunal popular, mas de olhar o passado para enfrentar os efeitos de tecnologias de poder como a polícia e o tribunal hoje.
        Os defensores da liberdade não podem deixar de atentar para os dispositivos autoritários, regulares ou de exceção, que habitam as democracias. A sua mera institucionalização não garante liberdade alguma. É preciso perguntar-se: que lugar pode ocupar aí um tribunal?

avacalhar
As práticas que expõem os ignóbeis perseguidores, que em nome da Ordem e do Estado prenderam, torturaram e mataram homens e mulheres corajosos, devem prosseguir e expandir.
Os escrachos devem também ampliar seus alvos aos covardes e perseguidores de hoje, que, em plena democracia seguem acossando, prendendo, torturando e matando nas vielas, quebradas e porões de delegacias e prisões espalhadas pelo país.
Todo preso é um preso político!
Que os escrachos não se tornem a antessala de novas institucionalidades ou plataforma de lançamento de indignados arrivistas em busca de uma normalização para sua própria vida.
Que os escrachos se transformem! Não daremos sossego aos negociadores políticos da verdade!
Que os escrachos persistam em seu alarido de combate contra a letargia provocada pelas permutas políticas entre governos.
Que os escrachos avancem como um modo de avacalhar, isto é, desmoralizar, pôr a ridículo, mudar de opinião ou de bando, afrontar e incomodar.
Como disse, certa vez, um “bandido”: quando a gente não pode mudar a gente avacalha.

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