domingo, 17 de junho de 2012

O homem está morto? - entrevista com michel foucault


L'homme est-il mort? (entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38, 15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel.  Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. I., p. 540-544, por Marcio Luiz Miotto. Revisão de wanderson flor do nascimento.  


[... primeiro pedimos a Michel Foucault que definisse o lugar exato e a significação do humanismo em nossa cultura. ]


    - Cremos que o humanismo é uma noção muito antiga que remonta a Montaigne e bem mais além. Ora, a palavra "humanismo" não existe nos Ensaios. Na verdade, com essa tentação da ilusão retrospectiva à qual sucumbimos muito freqüentemente, imaginamos de boa vontade que o humanismo sempre foi a grande constante da cultura ocidental. Assim, o que distinguiria esta cultura das outras, das culturas orientais ou islâmicas, por exemplo, seria o humanismo. Comovemo-nos quando reconhecemos vestígios deste humanismo noutro lugar, num autor chinês ou árabe, e temos então a impressão de nos comunicar com a universalidade do tipo humano.
    Ora, não somente o humanismo não existe nas outras culturas, mas está provavelmente na nossa cultura na ordem da miragem.
    No ensino secundário, aprendemos que o século XVI foi a era do humanismo, que o classicismo desenvolveu os grandes temas da natureza humana, que o século XVIII criou as ciências positivas e que chegamos enfim a conhecer o homem de maneira positiva, científica e racional com a biologia, a psicologia e a sociologia. Imaginamos que, ao mesmo tempo, o humanismo tem sido a grande força que animou o nosso desenvolvimento histórico e que é finalmente a recompensa desse desenvolvimento, resumidamente, que é o princípio e o fim. O que nos admira na nossa cultura atual, é que ela possa ter a preocupação com o humano. E se falamos de barbárie contemporânea, é na medida em que as máquinas, ou certas instituições, nos aparecem como não humanas.
    Tudo isso é da ordem da ilusão. Primeiramente, o movimento humanista data do fim século XIX. Em segundo lugar, quando se olha ligeiramente as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem literalmente nenhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamente também pelo corpo, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem mesmo é completamente ausente.
    Em As Palavras e as Coisas, quis mostrar de quais peças e quais pedaços o homem foi composto no fim século XVIII e início do XIX. Tentei caracterizar a modernidade dessa figura, e o que me pareceu importante era mostrar isso: não é tanto porque se teve um cuidado moral com o ser humano que se teve a idéia de conhecê-lo cientificamente, mas é pelo contrário porque construiu-se o ser humano como objeto de um saber possível que em seguida desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo contemporâneo, temas que são encontrados nos marxismos frouxos, em Saint-Exupéry e Camus, em Teilhard Chardin, resumidamente, em todas essas figuras pálidas da nossa cultura.

    - Você falou aqui de humanismos frouxos. Mas como você situa algumas formas mais sérias de humanismo, o humanismo de Sartre, por exemplo ?

    - Se afastamos as formas fáceis de humanismo que representam Teilhard e Camus, o problema de Sartre aparece como completamente diferente. Aproximadamente, pode-se dizer isso: o humanismo, a antropologia e o pensamento dialético estão ligados. O que ignora o homem, é a razão analítica contemporânea que se viu nascer com Russell, e que aparece em Lévi-Strauss e nos lingüistas. Esta razão analítica é incompatível com o humanismo, enquanto que a própria dialética se nomeia acessoriamente de humanismo.
    Ela se nomeia por várias razões: porque é uma filosofia da história, porque é uma filosofia da prática humana, porque é uma filosofia da alienação e da reconciliação. Por todas essas razões e porque continua, no fundo, uma filosofia do retorno a si mesmo, a dialética promete em certa medida ao ser humano que ele se tornará um homem autêntico e verdadeiro. Ela promete o homem ao homem e, nessa medida, não é dissociável de uma moral humanista. Neste sentido, os grandes responsáveis do humanismo contemporâneo, são evidentemente Hegel e Marx.
    Ora, parece-me que escrevendo a Crítica da razão dialética, Sartre pôs em certa medida um ponto final, ele fechou novamente o parêntese sobre todo este episódio da nossa cultura que começa com Hegel. Ele fez tudo o que pôde para integrar a cultura contemporânea, isto é, as aquisições da psicanálise, da economia política, da história, da sociologia, à dialética. Mas é característico que ele não poderia deixar cair tudo o que é da competência da razão analítica e que faz profundamente parte da cultura contemporânea: lógica, teoria da informação, lingüística, formalismo. A Crítica da razão dialética é o magnífico e patético esforço de um homem século XIX para pensar o século XX. Neste sentido, Sartre é o último hegeliano, e eu diria mesmo o último marxista.

    - Ao humanismo sucederá então uma cultura não dialética. Como você a concebe e o que se pode dizer dela agora? 

    - Esta cultura não dialética que está a caminho de se formar é ainda muito balbuciante por diversas razões. Primeiro, porque tem aparecido espontaneamente em regiões extremamente diferentes. Ela não tem lugar privilegiado. Também não se apresentou, de entrada, como uma inversão total. Ela começou com Nietzsche quando ele mostrou que a morte de Deus não era o aparecimento, mas o desaparecimento do homem, que o homem e Deus tinham estranhos parentescos, que eram ao mesmo tempo irmãos gêmeos e pais e filhos um do outro, que Deus estando morto, o homem não poderia não desaparecer, ao mesmo tempo, deixando atrás de si uma monstruosidade.
    Ela apareceu igualmente em Heidegger, quando tentou retomar a abordagem fundamental do ser em um retorno à origem grega. Apareceu igualmente em Russell, quando fez a crítica lógica da filosofia, em Wittgenstein, quando colocou o problema das relações entre lógica e linguagem, nos lingüistas, e nos sociólogos como Lévi-Strauss.
    Resumidamente, para nós mesmos atualmente, as manifestações da razão analítica ainda são dispersas. É aqui que se apresenta a nós uma tentação perigosa, o retorno puro e simples ao século XVIII, tentação que ilustra bem o interesse atual pelo século XVIII. Mas não se pode ter um tal retorno. Não refaremos mais a Enciclopédia ou o Tratado das sensações de Condillac
[1].

    - Como evitar essa tentação ?

    - É necessário tentar descobrir a forma própria e absolutamente contemporânea desse pensamento não dialético. A razão analítica século XVII era caracterizada essencialmente por sua referência à natureza; a razão dialética do século XIX desenvolveu-se sobretudo em referência à existência, ou seja, ao problema das relações do indivíduo à sociedade, da consciência à história, da práxis à vida, do sentido ao sem sentido, do vivo ao inerte.
    Parece-me que o pensamento não dialético que se constitui agora não põe em jogo a natureza ou a existência, mas isso que é o saber. Seu objeto próprio será o saber, de tal modo que esse pensamento esteja em posição segunda em relação ao conjunto, à rede geral dos nossos conhecimentos. Ele terá que se interrogar sobre a relação que pode haver, por um lado, entre os diferentes domínios do saber e, por outro lado, entre saber e não-saber.
    Não se trata de uma empresa enciclopédica. Primeiramente, a Enciclopédia acumulava os conhecimentos e fazia sua justaposição. O pensamento atual deve definir isomorfismos entre os conhecimentos. Em segundo lugar, a Enciclopédia tinha por tarefa de expulsar o não-saber em benefício do saber, das luzes. A nós, temos a compreender positivamente a relação constante que existe entre o não-saber e o saber, porque um não suprime o outro; eles estão em relação constante, apoiam-se um no outro e podem ser compreendidos apenas um através do outro. É por isso que a filosofia passa atualmente por uma espécie de crise de austeridade.
    É menos sedutor falar do saber e dos seus isomorfismos que da existência e o seu destino, menos consolador falar das relações entre saber e não-saber que falar da reconciliação do homem consigo mesmo numa iluminação total. Mas, depois de tudo, o papel da filosofia não é forçosamente o de adocicar a existência dos homens e prometer-lhes algo como uma felicidade.

    - Você fala de literatura. Em As Palavras e as Coisas, na margem da arqueologia das ciências humanas, mas no mesmo movimento de pensamento, você esboça, a propósito de Dom Quixote e Sade sobretudo, isso que poderia ser uma abordagem nova da história literária. Qual deveria ser esta abordagem?

    - A literatura pertence à mesma trama que todas as outras formas culturais, a todas as outras manifestações do pensamento de uma época. Disso nós sabemos, mas o traduzimos comumente em termos de influências, de mentalidade coletiva, etc. Ora, creio que a maneira mesma de utilizar a linguagem numa cultura dada em um momento dado está ligada intimamente a todas as outras formas de pensamento.
    Pode-se perfeitamente compreender em um só movimento a literatura clássica e a filosofia de Leibniz, a história natural de Lineu, e a gramática de Port-Royal. Parece-me da mesma maneira que a literatura atual faz parte desse mesmo pensamento não dialético que caracteriza a filosofia.

    -Como assim?

    - À partir de Igitur
[2], a experiência de Mallarmé (que era contemporânea de Nietzsche) mostra bem como o jogo próprio e autônomo da linguagem vem se alojar precisamente onde o homem acaba de desaparecer. Depois, pode-se dizer que a literatura é o lugar onde o homem não cessa de desaparecer em proveito da linguagem. Onde "isso fala", o homem não existe mais.
    Desse desaparecimento do homem em benefício da linguagem, obras tão diferentes como as de Robbe-Grillet e de Malcolm Lowry, de Borges e Blanchot o testemunham. Toda a literatura está em uma relação com a linguagem que é no fundo a que o pensamento mantém com o saber. A linguagem diz o saber não sabido da literatura.


    - As Palavras e as Coisas é aberto com uma descrição de As Meninas de Vélasquez, que se apresenta como o exemplo perfeito da idéia de representação no pensamento clássico. Se você fosse escolher um quadro contemporâneo para ilustrar da mesma maneira o pensamento não dialético de hoje, qual você escolheria?

    - Parece-me que é a pintura de Klee que representa melhor, em relação ao nosso século, o que pôde ser Vélasquez em relação ao seu. Na medida em que Klee faz aparecer em forma visível todos os gestos, atos, grafismos, vestígios, lineamentos, superfícies que podem constituir a pintura, ele faz o ato mesmo de pintar o saber manifesto e cintilante da própria pintura.
    Sua pintura não é de arte bruta, mas uma pintura re-significada pelo saber aos seus elementos mais fundamentais. E estes elementos, aparentemente os mais simples e os mais espontâneos, os mesmos que não apareciam e que pareciam não dever jamais aparecer, são os que Klee espalha sobre a superfície do quadro. As Meninas representava todos os elementos da representação, o pintor, os modelos, o pincel, a tela, a imagem no espelho, elas decompunham a pintura mesma nos elementos que faziam uma representação.
    Já a pintura de Klee compõe e decompõe a pintura nos seus elementos que, por serem simples, não são menos suportados, assombrados, habitados pelo saber da pintura.

         
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[1][1] Condillac, E. de. Traité des sensations - 1754. Paris: Fayard, 1984.
[2] Mallarmé, S., Igitur. Paris: Gallimard, 1925.

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