sábado, 10 de março de 2012

hypomnemata 141


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 

do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 141, fevereiro de 2012.

Drogas, cuidados e ambientes monitorados
Eles são chamados de nóias, zanzam como andrajos à cata de resíduos, material para reciclagem a ser entregue em cooperativas sustentáveis, uma esmola, uma pedra de crack. Pernoitam pelas ruas da cidade e sustentam o olhar atônito.
Governo e população mostram-se confiantes em higienizar as ruas destes farrapos com programas repressivos e ambulatoriais. Enquanto isso as classes mais abastadas procuram curar seus parentes em clínicas especializadas que não dispensam o uso de maconha, ou em pentecostais, com suas conhecidas práticas de resignação.
Vivemos uma nova maneira de abordagem do chamado usuário de drogas. A legislação recente reconhece os programas de redução de danos que investem em cura e inclusão e autoriza o uso do ayuasca para cerimônias religiosas. Concentra a repressão no tráfico, apesar de imprecisa quanto à portabilidade de substâncias ilícitas. Assim, os programas de governo voltam-se ao atendimento ambulatorial com terapêuticas, investindo na vontade do usuário de abandonar a droga.
O combate às drogas passa hoje por uma modulação, para além da repressão. Personalidades públicas difundem seus argumentos favoráveis à descriminalização da maconha; pipocam marchas com o respaldo jurídico e policial defendendo a liberdade de manifestação; mídias e a internet produzem variadas opiniões.
Circula, assim, a construção de um consenso relativo aos novos cuidados com a pasmada população de usuários, não desconhecendo os moralistas de plantão que exigem repressão, isolamento ou o abate desta parte do rebanho e limpeza do espaço para o seu trânsito como gado limpo e reprodutor. O consumo de liberdades governa o temário da descriminalização e doscuidados com os nóias, compondo o conjunto aceitável, neste momento, para a ecologia ambiental.
A reviravolta neoliberal provocada pela implementação constante do desenvolvimento sustentável, produz novas maneiras de governar condutas. Os programas ambulatoriais e de redução e danos funcionam voltados para um indivíduo do qual espera adespoluição de si. Os efeitos das lutas ecológicas ultrapassam o tema da preservação e da conservação da natureza para se situarem nos ambientes monitorados das cidades, não só por meios eletrônicos.
Deixamos a era do pastorado na qual um líder atendia às faltas individuais e coletivas do rebanho. Agora, cada membro também deve ser um pastor de si e dos demais, mostrar-se resiliente, monitorar as condutas de cada um e configurar-se como umcidadão-polícia, convocado à participação constante para além da representatividade política.
Os nóias são indivíduos a serem despoluídos e vinculados a programas de higienização de zonas das cidades com interface com os programas de revitalizações urbanas voltados à população em geral. Eles devem ser tratados e, como os demais,ocupados para o seu benéfico e o da cidade, recebendo cuidados necessários para descobrirem suas potencialidades produtivas, afastados do vício e da violência.
Os programas expressam a racionalidade neoliberal relativa à conformação do indivíduo como capital humano, combinando repressão e atenção com saúde atrelada à segurança, pelos quais governos e a sociedade civil organizada contam com cada cidadão-polícia na higienização dos ambientes.
Constata-se, uma vez mais, que o tráfico de drogas é algo impossível de ser extirpado (sua supressão levaria a déficits monumentais na indústria bélica e financeira) e que ele exercita suas mobilidades, instalando-se, agora, no México e nas regiões norte e nordeste do Brasil.
Resta ao usuário de crack a esperança na salvação, celestial ou ambulatorial, com inclusão? O sonho da higienização provoca a descentralização da cracolândia-SP.
Vagando como morto-vivo, porque esta também é a face da liberdade do consumo, caminha doidão, como testemunha do jamais limpo e salutar capitalismo. Estampa em seu corpo a putrefação dos asseados, saudáveis e bem vestidos conformistas adeptos das melhorias na subsistência.

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