terça-feira, 8 de outubro de 2013

Um resistente nos Estados Unidos

por joãocamillo penna

Em seu último momento, ele se interessa por um novo tipo de luta social, por formas de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram da experiência da cultura gay em San Francisco

A presença de Michel Foucault nos Estados Unidos é significativa. Ela é sensível das formas mais diversas: em órgãos específicos de difusão da pesquisa acadêmica na crítica literária, em revistas como Social Text (primeiro número: inverno de 1979, gerida principalmente por Fredric Jameson, de abordagem marxista), Representations (primeiro número: fevereiro de 1983, órgão do Novo Historicismo) ou Cultural Critique (primeiro número: 1985), mas também na antropologia (Paul Rabinow, por exemplo), na história da ciência e da tecnologia (Donna Haraway) ou ainda em campos da política, como o movimento carcerário ou antipsiquiátrico, para mencionar só algumas áreas. É preciso, no entanto, cautela ao falar de Foucault nos Estados Unidos. Cinco razões principais para isso.
Primeira, a profunda inadequação da noção de “influência”, cuja fraqueza epistemológica é tema interno à própria obra de Foucault, que via a leitura causal dos fenômenos de semelhança e repetição como um suporte mágico inadequado. Assim, não se pode falar de “influência” da História da loucura sobre o movimento antipsiquiátrico nos Estados Unidos e na Inglaterra, já que um é em larga medida contemporâneo do outro – embora seja verdade que há muito de Foucault em A manufatura da loucura de Thomas Szasz (1970). Além disso, a relação entre Foucault e seus leitores americanos não é sempre amistosa, sendo freqüentemente marcada por uma ambigüidade crítica rigorosa, que precisa arrancar a Foucault um campo aberto por sua reflexão (caso de algumas apropriações como a dos Estudos de gênero ou a dos Estudos subalternos).
Segunda, não é evidente que as apropriações de Foucault nos Estados Unidos sejam homogêneas ao sentido original de seus projetos na França, embora a hipótese da existência de dois Foucaults, um Foucault americano e outro francês, como escreveu Vincent Descombes, seja algo excessiva. É inegável, portanto, que a inserção de Foucault no que se convencionou chamar “ontologias do múltiplo” (com Deleuze, Derrida, Lyotard…), i.e., a tradução filosófica francesa da política de maio de 1968, tem pouco a ver com o debate multiculturalista e a discussão sobre políticas identitárias americanas, momento mais fecundo da recepção foucaultiana nos Estados Unidos, nos anos oitenta. Embora não seja menos verdade que a crítica da subordinação do pensamento ao sujeito e ao Um, e uma idêntica afirmação da multiplicidade, lida em termos culturais ou identitários nos Estados Unidos, perpasse tanto uma quanto a outra.
Terceira, a articulação do debate foucaultiano nos Estados Unidos se dá no contexto da grande importação do pensamento francês nesse país, em que Foucault está longe de ser um caso isolado, sendo lido em conjunto com Derrida, Deleuze, Bourdieu, os historiadores das mentalidades, ou, um pouco antes, com Althusser, Lacan e Barthes, pensadores bastante heterogêneos entre si.
Quarta, a academia americana dialoga com aspectos distintos da obra foucaultiana, ela própria marcada por cortes profundos. É o caso das discussões no campo da filosofia e das ciências sociais sobre as ciências humanas ou da “virada interpretativa” (lingüística ou culturalista), marcada por uma crítica hermenêutica ao positivismo científico. É algo como o conceito de epistéme que será retomado, podendo ser “culturalizado” ou não, para querer dizer algo como uma “rede de significações tecida” pelo ser humano, conforme a definição de cultura formulada por Clifford Geertz (citando Max Weber), enquanto as apropriações mais recentes (Estudos pós-coloniais, Estudos de gênero, Queer Theory) se fixarão, como veremos, na História da sexualidade ou em Vigiar e punir.
Acresce-se a isso, finalmente, que o “último” Foucault será marcado por suas freqüentes visitas aos Estados Unidos, como professor convidado e conferencista. A partir delas ele se interessará por um novo tipo de luta social, por modo de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram em particular da experiência da cultura gay em San Francisco. Além disso, o fato inédito de que a apresentação sistemática de algumas de suas últimas colocações não só aparecerá antes nos Estados Unidos do que na França, como será incluída no interior de uma poderosa reflexão e tradução americana de sua obra, o livro de Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (ambos professores na Universidade da Califórnia, em Berkeley), Michel Foucault, uma trajetória filosófica (de 1982 e 1983).
O caminho a tomar deve ser, portanto, outro: há um gesto foucaultiano claramente reconhecível em suas apropriações americanas. Esse gesto tem dois lados: o seu construtivismo radical e um estilo de ativismo que chamarei, precariamente, de nietzschiano. A marca foucaultiana aparecerá de forma nítida no mercado editorial americano sob o traço reconhecível em títulos contendo as palavras mágicas: a invenção de, a construção de, o nascimento de…
Mas como entender o construtivismo de Foucault? Ele é claramente definido na Arqueologia do saber: substituir uma interrogação sobre o conteúdo secreto da loucura pelo mapeamento da constituição da doença mental por meio do conjunto de enunciados que a nomeiam, recortam, explicam, julgam e, finalmente falam pela loucura (“articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus”). Substituir a discussão sobre as coisas (sobre a referência) pela discussão sobre a formação de objetos no interior do discurso, o conjunto de regras que permite que a criminalidade, por exemplo, possa ter-se tornado objeto de parecer médico, ou que a loucura possa tornar-se objeto de parecer psiquiátrico.
É precisamente a noção foucaultiana de “discurso” que interessará, por exemplo, a Edward Said, em O Orientalismo (1978), livro que funda sozinho o campo inteiro dos Estudos coloniais e pós-coloniais na Academia Norte-americana. “Orientalismo”, explica Said, nas páginas iniciais de seu livro, é a “enorme e sistemática disciplina por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar – e até produzir – politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente, cientificamente e imaginariamente, o Oriente, durante o período pós-iluminista”. Reconhecemos os termos das análises clássicas do Foucault de Vigiar e punir: a disciplina, em seu duplo sentido de saber/poder, que constitui, fabrica, ou produz o objeto Oriente, para dominá-lo ou controlá-lo. Eis o gesto foucaultiano, na verdade uma tradução do tema transcendental (kantiano): estudar a constituição do Oriente enquanto objeto discursivo, que não pode ser confundido com a cultura própria dos países do Oriente Médio, consiste em examinar as condições de seu aparecimento como construção ocidental enquanto objeto a ser dominado e outro simétrico inverso do Ocidente.
Mas é sobretudo enquanto produtor de subjetividades que o disciplinamento do binômio saber/poder contribuirá ao debate identitário americano. São os temas propostos em Vigiar e punir e A vontade de saber, respectivamente, do “exame” (criminológico ou psiquiátrico) e da “confissão”, por um lado, que vão colocar o problema da enunciação em primeiro plano. Foucault explica que a criação mais fecunda do sistema penitenciário não é a “detenção privativa da liberdade”, mas a criação do personagem do delinqüente que suplementa a prisão e duplica o delito. Em A vontade de saber, por outro lado, delineia-se a polêmica proposição sobre a construção da sexualidade como categoria científica-política-social, produzindo-a (a matriz é sempre a da fabricação industrial) a partir das proibições e regulamentações de comportamentos que eram suspeitos de reprimi-la. A “tecnologia” ou o “dispositivo” sexual consiste no conjunto de técnicas concebidas com o intuito de maximizar a vida no bojo de um novo poder no século 19, o biopoder, constituindo quatro objetos e suas respectivas ciências: a sexualidade infantil (a pedagogia), a sexualidade feminina (como especialização da medicina), o controle da procriação (a demografia) e a perversão (como campo da psiquiatria).
Embora a palavra “identidade” não apareça nestes textos de Foucault, é a tradução dos personagens por identidades que se mostrará extremamente profícua para o debate americano. A objetivação/subjetivação da mulher como ser sexuado, por exemplo, é sua identidade constituída pelo saber/poder, forma aprisionada e limitada, determinada por aparelhos complexos de controle. Ao mesmo tempo é a forma possível com a qual pode contar qualquer movimento identitário de mulheres que pretenda se libertar dessa forma aprisionada. Double-bind terrível e inescapável com o qual os Estudos de gênero deverão se confrontar (Teresa de Lauretis, por exemplo), que oporá um construtivismo radical (a identidade genérica é fabricada enquanto “personagem” do biopoder e é incapaz de dizer qualquer coisa de interessante sobre a mulher) a uma necessidade de recorrer, nem que seja estrategicamente, a uma quase-essência feminina como espaço comunitário político afirmativo e liberalizante da mulher, abrindo a possibilidade de constituição de um sujeito-mulher. Aqui, se juntam possivelmente as preocupações em torno do problema das “técnicas de si”, da transformação de si mesmo em sujeito, do último Foucault.
Um problema análogo coloca-se para os Estudos gays e lésbicos, que se reagruparão em seguida como Queer Theory. Enquanto antes do século 19, no direito canônico e civil, a sodomia era vista simplesmente como um ato proibido, a partir do século 19 – Foucault nos oferece a data de 1870 –, o homossexual torna-se um personagem, compreendido como um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, uma morfologia, uma anatomia e uma fisiologia. A definição destas “sexualidades periféricas” no contexto da “implantação perversa” e da especificação dos indivíduos é a mesma da constituição de sexualidades ditas normais. Daí, o grande interesse dos Estudos de gênero (ou da Queer Theory) também pelas formas da masculinidade ou pela heterossexualidade vista como comportamento compulsório.
Dizer que a sexualidade é um efeito discursivo artificial (não-natural), um instrumento político-social e não uma positividade, uma realidade psicológica ou física não implica de maneira nenhuma dizer que ela seja pura e simplesmente discursiva, mas sim propor polemicamente um salutar antídoto a qualquer tentativa de fundamentar uma “teoria da sexualidade”. Novo double-bind identitário, mas cuja solução corajosa e arriscada poderia ser formulada da seguinte maneira: já que a sexualidade é pura fabricação do biopoder, por que não reinventar um modo corporal e de prazer que não seja o sexual, uma forma de experimentação coletiva e pessoal, que propusesse uma maneira nova e até agora desconhecida de relação com o corpo? David Halperin caminharia nesse sentido. É o tipo de ativismo nietzschiano de que falei no início.
João Camillo Pennaprofessor no Departamento de Ciência da Literatura, na UFRJ. Publicou, dentre outros, “Este corpo, esta dor, esta fome:  notas sobre o testemunho hispano-americano” in Seligmann-Silva, Márcio (Org.).História-Memória-Literatura. O testemunho na  era das catástrofes. São Paulo: Editora Unicamp, 2003, e organizou, com Virgínia Figueiredo, A imitação dos modernos, de Philippe Lacoue-Labarthe. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000

Nenhum comentário:

Postar um comentário