domingo, 6 de outubro de 2013

Dona Maria, os benditos e as almas

MARIA_EXPRESSIVA
Isolada com marido, a quatro quilômetros do ser humano mais próximo, última romeira habita pé-de-morro onde sua comunidade fervilhava, nos anos 1960 
Crônica de Ana Aranha, no blog 3 por 4
As pessoas insistem que o casal mude para a cidade. Afinal, não é prudente uma senhora e um senhor de 76 anos morarem sozinhos num lugar tão isolado. A elas, dona Maria explica: “Ninguém aqui tá só. Tamos acompanhados com Deus e as almas”.
Maria Mendes da Silva e Bento Benigo dos Santos são os últimos habitantes de uma comunidade de romeiros que se instalou ao pé de um morro no norte do Tocantins. Na década de sessenta, os devotos bateram o chão e ergueram cerca de cinquenta casas de pau a pique perto da trilha que leva ao morro, onde há duas igrejas. A vila dos romeiros, onde mais duas igrejas foram construídas, vivia embalada por cantos, batidas de tambor e badaladas dos sinos. Além dos moradores, muitos devotos vinham em romaria do Norte e do Nordeste.
Hoje, fora a casa de dona Maria e seu Bento, todas as outras estão vazias. Alguns moradores rumaram ao Norte, outros ficaram até o fim da vida e lá estão, enterrados sob o chão batido ao redor das igrejas. Quando dona Maria anda entre os muitos crucifixos – sempre com os pés descalços quando pisando no chão da vila – vai lembrando dos nomes e das histórias de quem viveu ali.
Mas, ao contrário do que pode parecer para nós, forasteiros, o lugar é cheio de vida. Uma vida que hoje quase não se vê. Dona Maria e seu Bento mantêm as tradições: batem o o sino da igreja, cantam os benditos e rezam as penitências todo sábado, domingo e segunda-feira – dias em que é proibido trabalhar. Às vezes, os rituais são acompanhados pela “familinha”, como ela chama os seis filhos, 24 netos e oito bisnetos que moram na cidade. Às vezes não. Mas o casal não se sente só. Dona Maria e seu Bento são convictos de que o falecido padrinho espiritual da comunidade Manuel Borges dos Santos está presente, olhando por eles e pelas almas da vila.
Manuel Borges era um influente líder religioso na região. Há quem diga que, não fosse sua morte precipitada por um acidente, o beato formaria uma comunidade similar à Canudos de Antônio Conselheiro.
Dona Maria enche os olhos quando fala do seu padinho. Assombra-se ao lembrar da capacidade dele em adivinhar o que os fiéis faziam. “Se tu namorasse com teu marido lá em Juazeiro do Norte e chegasse aqui pra pedir a benção, ele não pegava na sua mão. Fazia a cruz de longe. Ele sabia tudo, não era como esses homens que não sabem nada do nosso coração”.
Foi ele que cavou o buraco no topo do morro onde, até hoje, há água o ano todo, até nos períodos de seca. Dona Maria conta que a água é “de milagre” e já curou muita gente, como um de seus filhos que nasceu entrevado. Perto da fonte, fica uma cruz de madeira e uma Igreja, ambas cercadas por vista exuberante da caatinga e um vento redentor. Manuel Borges foi o único enterrado lá em cima, sua sepultura ornada por uma pequena capela.
A subida é íngreme sobre pedras lisas e sob o sol impiedoso do Tocantins – um teste de resistência para os seres sedentários da cidade. Na volta, dona Maria ri da minha cara vermelha e acode com água e almoço. Com mais que o dobro da minha idade e o triplo de músculos na perna, ela sobe o mesmo morro enquanto cantarola o bendito.
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No roteiro de dona Maria não há espaço para conversa pequena, qualquer assunto é caminho para as coisas grandes. Como quando perguntei onde ela nasceu. “Sou de Mirador, Maranhão”, respondeu, mas logo corrigiu a objetividade: “Nasci maranhense. Ainda não morri, nem tenho inveja de quem morreu, porque vou morrer também”.
Ela vive uma vida larga em histórias porque não limita seu aprendizado aos ensinamentos do dia. “Meu padinho falou que não há sonho perdido. Se você sonha um sonho ruim é porque seu espírito passou naquela ruindade e você ficou sabendo. Se foi uma coisa boa, é porque seu espírito encarnou naquela matéria e você ficou sabendo”.
Às vezes ela acorda mais sabida e o povo duvida, chamam suas ideias de “variaridades” – qualidade de quem está “variando”. Ela fica ofendida. Dona Maria não sabe ler ou escrever (nunca pisou numa escola), mas se orgulha da cabeça onde guarda com propriedade a história da sua vila e uma miríade de benditos e rezas que podem estender-se por horas.
Quando foi convidada pelo padre para rezar um dos benditos que só ela sabe, na igreja católica da cidade, as devotas se surpreenderam: “Você tem muita coragem, eu não dou conta de rezar sozinha um bendito desse tamanho”. Ao que dona Maria respondeu: “você não tem cabeça não, mulher?”.
A cidade de cinco mil habitantes, a cerca de 4 quilômetros da vila dos romeiros, foi oficialmente criada em 1989 com o título de Aragominas. Mas os moradores não reconhecem esse nome. Na região, todos chamam o local de “Pé do Morro”. As histórias de dona Maria podem parecer distantes do mundo em que a maioria das pessoas vive hoje, mas ela tem mais lastro de realidade do que a nomenclatura oficial inventada pelos governantes.
Para fechar a entrevista (ou a conversa, que é uma das palavras de que ela mais gosta), Dona Maria rezou um bendito e encerrou com as seguintes palavras: “Se vocês tiverem acreditando nessa conversa, vocês levam e conversam lá por onde andarem”.
Não travei conversa com as outras almas da vila dos romeiros, nem me tornei uma pessoa mais ou menos religiosa ao conhecer o local. Mas saí de lá carregando uma certeza: eu acredito em dona Maria. Se, daqui a algum tempo, as pessoas que conversam tanto pela “nuvem virtual” duvidarem que um ser tão especial pisou na terra, a prova está aqui. Registrada neste texto que termina com um convite para ouvir o bendito de “Nossa Senhora da Luz”, embalado pela única voz que sabe rezá-lo.

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