terça-feira, 8 de outubro de 2013

Foucault, um filósofo que pratica histórias

por salma tannus muchail

O pensamento de Foucault apresenta duas fortes marcas. Primeiro, a da atualidade; segundo, a da mobilidade

Foucault pensa filosoficamente praticando investigações históricas. Uma caracterização inicial e ampla de seus trabalhos permite evidenciar algumas escolhas: primeiro, o campo destas histórias é sempre o nosso espaço ocidental; segundo, o tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai do final do renascimento (por volta do século 16) até a nossa modernidade (séculos 19 e 20), atravessando, com especial destaque, a chamada idade clássica (séculos 17 e 18); terceiro, o trajeto reconstruído neste espaço e neste tempo tem como principal perspectiva realçar as transformações demarcando dois limiares, a saber, as passagens do final do renascimento para a idade clássica e desta para a nossa modernidade.
Histórias circunscritas dentro de uma dada localização, no curso de determinados períodos e segundo certo ponto de vista, eis a moldura que cerca este quadro geral dos escritos de Foucault. Tentemos tracejar os temas contemplados no interior do quadro.
Por um lado, a um olhar mais imediato, desdobra-se uma diversidade de assuntos: a loucura e o louco, a medicina clínica e o doente, os saberes das chamadas ciências humanas, a prisão e o delinqüente, a sexualidade e o sujeito ético – eis os “objetos” vários das histórias que Foucault escreve. Por outro lado, um recuo do olhar permite uma percepção de conjunto por meio da qual se revelam certos eixos comuns atravessando a diversidade temática: a questão da constituição histórica de saberes em discursos qualificados como verdadeiros e a correlata desqualificação de outros (é o eixo da “verdade”); a vinculação entre a dimensão discursiva e a esfera extradiscursiva ou das práticas sociais com a conseqüente conexão entre a ordem da verdade e a dos regimes de poder (é o eixo do “poder”); a constituição do homem historicamente objetivado e subjetivado no plano do conhecimento em contraponto à constituição de si mesmo no plano da ética (é o eixo do “sujeito”), eis os “elos” que articulam aquela variedade de temáticas.
Neste traçado de caracterização muito geral das investigações, é interessante indicar o pro-pósito que as envolve. Sem dúvida, são estudos rigorosamente elaborados com informações minuciosas sobre os assuntos escolhidos, em sua variedade e em seus eixos, sem jamais des-locá-los de seus contextos, de suas épocas e de seus lugares. Contudo, não visam a um conhecimento erudito de sociedades passadas. O percurso daquele trajeto histórico pretende antes trazer à luz as disposições epistemológicas, políticas e éticas de nossa sociedade, fazer ver o nosso presente his—tó-rico, e fazê-lo ver com clareza tanto maior quanto melhor se puder alcançar a compreensão de nossa sociedade pela sua diferença com o que a precede.
É claro que um quadro geral como esse que buscamos esboçar só se deixa desenhar sob uma visão retrospectiva que abarca, como que a partir de seu “ponto de chegada”, todo o caminho já percorrido pela produção filosófico-histórica de Foucault. Quando a tomamos, porém, sob uma visão mais estritamente cronológica, constatamos que aqueles três eixos de articulação, embora sempre presentes, não são sempre igualmente simultâneos; descortina-se uma sucessiva predominância de cada um deles ao longo da produção de Foucault quando considerada desde seu “ponto de partida”. Isso permite configurar “fases” ou “etapas” na trajetória de seus escritos.
Assim, no decorrer desse percurso, os estudiosos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem uma repartição possível em três momentos. No primeiro, as publicações principais da década de 60, História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica – uma arqueologia do olhar médico (1963), As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas (1966), A arqueologia do saber (1969). No segundo, os dois grandes livros da década de 70,Vigiar e punir – Nascimento da prisão (1975) e A vontade de saber – volume I de História da sexualidade (1976). O terceiro momento compreende os volumes II e III de História da sexualidade, intitulados O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984).
Embora esquemática e “relativizável”, essa distribuição encontra fundamento na predominância sucessiva de um ou outro daqueles três eixos articuladores: nas primeiras obras, o predomínio das preocupações com saberes considerados verdadeiros; nas obras do segundo momento, a acentuação dos vínculos entre verdade e poder; nas últimas, a dimensão ética na abordagem das relações consigo e com os outros. Essas etapas receberam denominações: arqueologia, genealogia e genealogia da ética. A esse conjunto, devem ser acrescentadas ainda duas situações ocorridas após a morte de Foucault (1984): a publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos, aulas etc., que Foucault realizara em diversos países) e, bem mais recentemente ainda, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no Collège de France entre os anos 70 e 84 (foram ministrados 13 cursos), cuja publicação iniciou-se em 1997 (foram publicados até o presente quatro cursos).
Para concluir, consideremos, resumidamente, alguns traços do pensamento foucaultiano remetendo-o, como o faz ele próprio, a Kant e principalmente a Nietzsche (sem falar em Heidegger, que ele freqüentemente também menciona). Em Kant, a retomada de um tipo de filosofia compreendida como atitude que problematiza nosso presente, que interroga a constituição de nosso modo histórico de ser. Em Nietzsche, a crítica ao olhar supra-histórico e a inclusão do olhar perspectivo.
A partir daí poderíamos dizer que o pensamento de Foucault apresenta duas fortes marcas. Primeiro, a da atualidade: esta é a marca de que falávamos no início e significa que, ao fazer filosofia investigando a história, o trabalho foucaultiano busca não apenas o conhecimento erudito das sociedades passadas, mas, antes, a melhor compreensão de nós mesmos pela confrontação com o que já não somos. Segundo, a da mobilidade: esta é a marca que complementa a primeira e significa que os escritos histórico-filosóficos de Foucault não só propiciam a compreensão de nossa sociedade historicamente situada na perspectiva da sua diferença com o que a precede, como também sugerem possibilidades de transformação no que ela pode vir a ser.
Salma Tannus MuchailProfessora titular de filosofia da PUC-SP

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