sexta-feira, 27 de abril de 2012

Deleuze e a questão da literalidade: uma via alternativa



Deleuze e a questão da literalidade: uma via alternativa

Deleuze and the question of literality: an alternative path


Tomaz Tadeu
Doutor em Educação pela Stanford University (EUA) e professor da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: qorpo100orgaos@yahoo.com



RESUMO
Discuto algumas das questões propostas por François Zourabichvili em "Deleuze e a questão da literalidade", publicado neste mesmo dossiê. Argumento que: a) a literalidade, tal como apresentada por Zourabichvili, deixa igualmente inexplicadas as relações metafóricas de que pretende dar conta; b) a metáfora e a literalidade não são equiparáveis: a primeira, enquanto operação lingüística supõe uma equivalência semântica; a segunda, enquanto operação material supõe uma equivalência pragmática; c) Deleuze e Guattari oferecem uma visão da literalidade muito mais simples e direta do a que propõe Zourabichvili.

Palavras-chave: Literalidade. Metáfora. Pragmática.

ABSTRACT
This paper discusses some of the issues François Zourabichvili raised in his "Deleuze and the question of literality", also in this collection. Its arguments are: 1) As Zourabichvili presents it, the notion of literality, does not account for the metaphoric relationships he intends to explain; 2) metaphor and literality are not commensurate since the former, as a linguistic operation, presupposes a semantic equivalence, and the latter, as a material operation, presupposes a pragmatic equivalence; c) Deleuze and Guattari give us a much more simple and direct view of literality than that proposed by Zourabichvili.
Key words: Literality. Metaphor. Pragmatics.



Somos gratos ao Professor Zourabichvili por nos ter chamado a atenção para a centralidade da questão da literalidade em Deleuze. Nada explícita em Deleuze, pouco discutida na literatura deleuziana, sem problematizá-la, como o fez, aqui, brilhantemente, o professor Zourabichvili, fica difícil situar um discurso filosófico, em aparência, abundantemente metafórico, mas, confessadamente, antimetafórico ou literal. Em geral, passa-se por cima do problema, ou simplesmente ignorando-o, tomando a declaração deleuziana da literalidade de seu discurso como coisa dada e facilmente compreendida (o que, certamente, não é), ou, alternativamente, lidando-se com essas aparentes metáforas como se elas, realmente, o fossem (o que implicaria, obviamente, extrair, da filosofia deleuziana, conclusões que não são as suas).
Proponho-me, aqui, não a polemizar com o professor Zourabichvili, mas a fazer-lhe algumas questões para iniciar uma discussão e, talvez, convidá-lo a explicitar um pouco mais alguns de seus argumentos.
Antes de entrar na questão da literalidade, entretanto, começaria fazendo-lhe uma questão sobre a parte introdutória de sua fala. Inicialmente, Zourabichvili lista três traços ou temas que, na sua opinião, seriam inseparáveis de uma "teoria do ensino" em Deleuze. Eles são bastante conhecidos e coincidem com o que a maior parte dos comentadores destaca quando mencionam a possibilidade de uma "pedagogia deleuziana", se se pode falar da existência de um tal animal: que se ensina aquilo que se pesquisa e não aquilo que sabe; que há um certo mistério, um certo enigma em qualquer processo de aprendizagem; e que a atividade de pensar – e, portanto, o ensino ou a pedagogia do pensar – não tem nada a ver com a solução de problemas e sim com a colocação de problemas. Poderíamos adicionar a essa lista mais alguns elementos, como, por exemplo, a questão de uma "pedagogia do concepto", introduzida em O que é a filosofia?, e que vem sendo desenvolvida pelo professor Giuseppe Bianco. Ou, em vez de elementos de uma "teoria da aprendizagem", retirados dos segmentos em que Deleuze trata diretamente desse tema, poderíamos extrair elementos que, talvez, sejam até mais interessantes a esse respeito, de uma pragmática do ensino e da pedagogia, como os que estão implícitos na maluca conferência do excêntrico Professor Challenger (ele próprio inspirado, talvez, numa pedagogia performática de Antonin Artaud) do Platô 3, "Geologia da Moral" (Deleuze & Guattari, 2000, p. 53 e ss.). Mas a minha dúvida ou a minha questão está na vinculação que Zourabichvili faz entre esses três elementos ou temas e a questão da literalidade. Zourabichvili (2005) diz: "Um outro aspecto, menos visível, implica os três outros (...). É a insistência na compreensão ao pé da letra. (...) A literalidade é o motivo de uma pedagogia interna à filosofia, de uma pedagogia propriamente filosófica". Em primeiro lugar, não consigo perceber, qual é a conexão, aqui apenas declarada mas não demonstrada, entre a questão da literalidade e o conjunto dos outros temas inicialmente listados. Que a questão da literalidade tenha implicações pedagógicas, isto eu entendo, e Zourabichvili volta a isso ao final de sua fala, questão à qual também voltarei ao final da minha. O que é difícil de compreender é qual é o vínculo que a questão da literalidade tem, por exemplo, com o tema do "ensina-se o que se pesquisa e não o que se sabe". (Aliás, Barthes diz algo semelhante, no seu Seminário Como viver junto: "Creio, de fato, que para haver uma relação de ensino que funcione é preciso que aquele que fala saiba só um pouco mais do que aquele que escuta [às vezes, mesmo, sobre certos pontos, menos: são vai-e-vens]. Pesquisa, e não Aula") (Barthes, 2003, p. 39). Ou com o tema do mistério, do enigma, da aprendizagem. Ou com a questão do pensar concebida como colocação e não como solução de um problema.
Em segundo lugar, não compreendo tampouco o deslizamento ocorrido entre a primeira parte (a lista dos três temas) e esta em que Zourabichvili introduz a questão da literalidade, pelo qual ele passa de uma "teoria do ensino" em geral para uma "pedagogia interna à filosofia, de uma pedagogia propriamente filosófica". Esse deslizamento torna ainda mais misteriosa a ligação que Zourabichvili faz entre os três temas e a questão da literalidade. O que distinguiria uma "teoria do ensino" (supostamente mais geral) e uma "pedagogia propriamente filosófica"? Em que se distinguiriam, por exemplo, o ensino da História, da Matemática e da Filosofia? E se a questão da literalidade é o que define uma "pedagogia propriamente filosófica" de que forma poderia estar ela vinculada ao conjunto dos três temas que se abrem, na sua própria descrição, para uma teoria mais geral da aprendizagem?
Passo, agora, para a questão da literalidade em si, que constitui, na verdade, o centro de sua intervenção. Dada a economia deleuziana em explicitá-la, não podemos atuar, aqui, mais do que como egiptólogos, condenados a decifrar signos. Criptógrafos, mas não intérpretes, nem hermeneutas. Zourabichvili nos fornece uma possibilidade, engenhosa e notável, de decifração. Também aqui fiquei com algumas dúvidas, o que me leva a fazer-lhe algumas perguntas, na tentativa de, talvez, desfazê-las.
Se entendi bem, o centro de seu argumento reside em remeter as proposições aparentemente metafóricas de Deleuze (e Guattari) à afirmação deleuziana de que o empirismo, sobretudo o de Hume, centra-se no princípio de que "as relações são exteriores a seus termos ou idéias". Embora intempestiva, a leitura deleuziana não é difícil de ser compreendida. Trocando-se a palavra "relação" por "estrutura", o estruturalismo não diz nada diferente disso. Em suma, não há nada nos termos ou nas idéias, tomados isoladamente, que antecipe as relações que se possa fazer entre eles. Ou, em outras palavras, as relações não podem ser deduzidas das qualidades dos termos ou das idéias que as compõem. Elas têm que ser feitas, independentemente deles.
Agora, a pergunta é: como se passa do caráter exterior das relações para a questão da literalidade? De novo, se entendi bem, Zourabichvili toma a literalidade como constituindo uma dessas relações, que por ser exterior a seus termos, permitiria contornar a aparente metaforicidade de proposições tais como: "somos feitos de linhas" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 145), "o cérebro é uma erva" (Deleuze & Guattari, 2000, p. 25), "o inconsciente é uma fábrica" (idem, 1976, p. 41), "O pequeno Hans devém cavalo" (idem, 1997, p. 44). Ou ainda, a minha preferida, de O anti-Édipo: "o que há por toda parte são máquinas, e sem qualquer metáfora" (1976, p. 16), mas a ela voltarei em seguida.
Numa metáfora, um termo dado, o "cérebro", por exemplo", é descrito, por razões poéticas, expressivas, ou por razões didáticas, por meio de um outro termo, não-dado, a "erva". Ao transferir as características do termo não-dado para o termo dado, substituo sua conotatividade, sua referencialidade, pelas características de outro, dotando-o de uma denotatividade que, por si só, ele não tinha. Tomar uma proposição tal como "o cérebro é uma erva" por uma metáfora, equivaleria a considerá-la como uma proposição atributiva, que se poderia traduzir, por exemplo, por uma cadeia de proposições atributivas: "o cérebro é descentralizado", "o cérebro é não-hierárquico", "o cérebro é rasteiro" etc. O que Zourabichvili parece estar sugerindo é que, para fugir da aparente metaforicidade de tais proposições, seria preciso tomá-las como proposições relacionais. O que não fica claro é qual é o tipo de relação que está contida em proposições tais como "o cérebro é uma erva". O exemplo que Deleuze dá para demonstrar o caráter exterior das relações é "Pedro é menor que Paulo" (Deleuze & Parnet; 1998, p. 69). Esta claramente não é uma proposição atributiva, mas relacional. Mas em que sentido "o cérebro é uma erva" é uma relação desse tipo? Ou como se pode passar da proposição aparentemente atributiva "o cérebro é uma árvore" para uma proposição relacional? Parece que Zourabichvili o faz, sugerindo a substituição da partícula atributiva "é" pela partícula conjuntiva "e", o que transformaria a atribuição numa relação. Está bem, temos agora: "o cérebro" "e" "a árvore", dois termos simplesmente justapostos. Mas, neste caso, o resultado é que, em vez de explicar a literalidade, já não temos nenhuma literalidade a explicar. Com a substituição do "é" pelo "e" perdeu-se também o objeto da explicação. Parece-me que a substituição do "é" pelo "e" tem, em Deleuze, muito mais a ver com a disposição a se trocar a questão da essência pela da multiplicidade do que com a questão da troca da metáfora pela literalidade.
Um segundo aspecto deste problema é que a metáfora é uma operação lingüística, uma palavra pela outra, enquanto a literalidade, o "ao pé da letra" propõe justamente uma operação extralingüística, material, empírica, uma coisa pela outra. A primeira, enquanto operação lingüística supõe uma identidade, uma semelhança, uma similitude, uma equivalência de sentido, uma equivalência semântica. Não saímos, aqui, da significância, apenas trocamos uma por outra. A segunda, enquanto operação material, supõe um isomorfismo, uma equivalência de funcionamento, uma equivalência pragmática.
Voltemos, agora, ao início de O anti-Édipo, onde Deleuze e Guattari façam talvez a sua declaração mais abertamente antimetafórica e dela nos forneçam seu exemplo mais explícito. Cito da edição brasileira:
Em toda parte são máquinas, de maneira alguma metaforicamente, máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Um máquina-órgão é ligada em uma máquina-fonte: uma emite um fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina acoplada nela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina para comer, uma máquina anal, uma máquina para falar, uma máquina para respirar (ataque de asma). É por isso que somos todos bricoleurs, cada um suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina energia, e sempre fluxos e cortes. (...) Alguma coisa se produz: efeitos de máquinas, e não metáforas. (Deleuze & Guattari, 1976, p. 15-16)
Não pode haver uma concepção mais materialista da literalidade do que esta. É, parece-me, uma decifração do hieróglifo da literalidade, um tanto diferente daquela oferecida pelo professor Zourabichvili. Entendi algo errado? Li algo errado? Pode ser.
Curiosamente, a tradução portuguesa deste parágrafo de O anti-Édipo (Assírio & Alvim, 1966) comete um erro, numa tradução, aliás, toda ela deficiente, extremamente revelador sobre a questão da metáfora. Em francês, a frase, não incluída na citação acima, é: "Le président Schreber a les rayons du ciel dans le cul". Na tradução portuguesa: "O presidente Schreber tem raios de sol no cu". Deixemos de lado o fato de que a tradução trocou "céu" por "sol". Devem ter sido levados a pensar, pela frase seguinte, "ânus solar", que se tratava de um erro de Deleuze e Guattari e fizeram a devida "correção". A tradução brasileira registra, corretamente: "O presidente Schreber tem os raios do céu no cu". O erro lusitano acaba por ser ilustrativo do que estamos discutindo. Ironicamente, a omissão dos artigos ("raios" em vez de "os raios"; "de" em vez de "do") transforma a expressão original de Deleuze e Guattari, um exemplo de expressão literal, numa expressão metafórica. "Os raios" são os raios mesmo, literalmente. Já "raios" aponta para algo que é como se fossem raios. Isto é uma metáfora. O mesmo vale para a diferença entre "de céu" (equivocadamente, "sol", na tradução lusitana) e "do céu". A tradução portuguesa desdiz, com esta frase mal traduzida, justamente um dos argumentos centrais desse parágrafo).
Mas uma busca em Mil platôs pela ocorrência da palavra "metáfora" parece confirmar que Deleuze e Guattari oferecem uma versão da literalidade muito mais simples e direta do que aquela que, por um brilhante, mas complexo desvio, Zourabichvili nos oferece em sua fala. Retomo, sumariamente, algumas dessas ocorrências. Refiro-me às páginas da edição brasileira de Mil Platôs para quem quiser conferir os trechos completos.
Nesses exemplos todos, Deleuze e Guattari descrevem a literalidade, em oposição a tomá-lo como metáfora, do termo que utilizam por palavras como "efetivamente", "efetiva", "em realidade", "verdadeiro", "autêntico", ou até mesmo a expressão "em pessoa", como no exemplo a seguir, reafirmando sempre a utilização "ao pé da letra". No Platô 3: "Não é 'como', não é 'como um elétron', 'como uma interação' etc. O plano de consistência é a abolição de qualquer metáfora; tudo o que consiste é Real. São elétrons em pessoa, buracos negros verdadeiros, organitos em realidade, seqüências de signos autênticas" (Deleuze & Guattari, 2000, p. 87).
O exemplo seguinte é particularmente interessante porque se refere a um dos exemplos referidos pelo professor Zourabichvili, o do devir, neste caso, o devir-animal. Está na seção "Lembranças de uma molécula" do Platô 10. É um longo trecho. Destaco apenas passagens que reforçam a concepção de literalidade aqui destacada: "Realidade do devir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal" (idem, 1997, p. 65). E eles assim explicitam em que consiste essa "realidade": "Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna um cachorro molar latindo, mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-se um cachorro molecular" (idem, ibid., p. 67). "(...) trata-se do devir-animal em ato, trata-se da produção do animal molecular (enquanto que o animal 'real' é tomado em sua forma e subjetividade molares)" (idem, ibid.).
No Platô 11, ainda outro exemplo: "A figura moderna não é a da criança, nem a do louco, e menos ainda a do artista, mas aquela do artesão cósmico: (...). A invocação do Cosmo não opera absolutamente como uma metáfora; ao contrário, a operação é efetiva desde que o artista coloque em relação um material com forças de consistência ou de consolidação" (idem, ibid., p. 162).
Quase terminando com meus exemplos, encontramos no Platô 13: "Mais uma vez, a palavra 'axiomática" é tão pouco uma metáfora aqui, que reencontramos literalmente, a propósito do Estado, os problemas teóricos suscitados pelos modelos numa axiomática; pois os modelos de realização, por mais diversos que sejam, são considerados isomorfos com relação à axiomática que eles efetuam" (idem, 2002, p. 154.
E dou agora o exemplo final, do mesmo Platô 13. Desta vez, a literalidade deleuzo-guattariana é tomada de uma citação de Lewis Munford:
Lewis Munford parece estar certo ao designar os impérios arcaicos sob o nome de megamáquinas, precisando que, ali também, não se trata de metáforas: 'Se, mais ou menos como a definição clássica de Reuleaux, pode-se considerar uma máquina como a combinação de elementos sólidos, tendo cada um sua função especializada e funcionando sob controle humano para transmitir um movimento e executar um trabalho, então a máquina humana é certamente uma verdadeira máquina'. (idem, ibid., p. 156)
Finalmente, transfiro-me para a parte final da fala do professor Zourabichvili. Ele termina nos fazendo um convite em favor de uma "pedagogia do pensamento", "em que o trabalho de figuração não deixa de formar uma unidade com a literalidade". Aqui, fico apenas curioso em que consistiria exatamente esta "pedagogia do pensamento", que Zourabichvili apenas anuncia.

Referências bibliográficas
BARTHES, R. Como viver junto. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. Vol. 5. Trad. de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2002.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Vol. 1. Trad. de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 2000.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. Vol. 4. Trad. de Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. De Georges Lamazière. São Paulo: Imago, 1976.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Trad. de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
ZOURABICHVILI, F. Deleuze e a questão da literaridade. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. ?, set.-dez. 2005.
        [ SciELO ]


Recebido em maio de 2005 e aprovado em julho de 2005.


cooperação.sem.mando

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