segunda-feira, 23 de abril de 2012

BERGSON, 1859-1941


BERGSON, 1859-1941 DL - POR GILLES DELEUZE
[1956]

Um grande filósofo é aquele que cria novos conceitos: esses conceitos ultrapassam as dualidades do pensamento ordinário e, ao mesmo tempo, dão às coisas uma verdade nova, uma distribuição nova, um recorte extraordinário. O nome de Bergson permanece ligado às noções de duração, memória, impulso vital, intuição. Sua influência e seu gênio se avaliam graças à maneira pela qual tais conceitos se impuseram, foram utilizados, entraram e permaneceram no mundo filosófico. Desde Os dados imediatos, o conceito original de duração estava formado; em Matéria e memória, um conceito de memória; em A evolução criadora, o de impulso vital. A relação das três noções vizinhas deve indicar-nos o desenvolvimento e o progresso da filosofia bergsoniana. Qual é, pois, essa relação?

Em primeiro lugar, entretanto, nós nos propomos estudar somente a intuição, não que ela seja o essencial, mas porque ela é capaz de nos ensinar sobre a natureza dos problemas bergsonianos. Não é por acaso que, falando da intuição, Bergson nos mostra qual é a importância, na vida do espírito, de uma atividade que põe e constitui os problemas [1]: há mais falsos problemas do que falsas soluções, e eles aparecem antes de haver falsas soluções para os verdadeiros problemas. Ora, se uma certa intuição encontra-se sempre no coração da doutrina de um filósofo, uma das [29] originalidades de Bergson está em que sua doutrina organizou a própria intuição como um verdadeiro método, método para eliminar os falsos problemas, para propor os problemas com verdade, método que os propõe então em termos de duração. “As questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser propostas mais em função do tempo do que do espaço” [2]. Sem dúvida, é a duração que julga a intuição, como Bergson lembrou várias vezes, mas, ainda assim, é somente a intuição que pode, quando  tomou consciência de si como método, buscar a duração nas coisas, evocar a duração, requerer a duração, precisamente porque ela deve à duração tudo o que ela é. Portanto, se a intuição não é um simples gozo, nem um pressentimento, nem simplesmente um procedimento afetivo, nós devemos determinar primeiramente qual é o seu caráter realmente metódico.
A primeira característica da intuição é que, nela e por ela, alguma coisa se apresenta, se dá em pessoa, ao invés de ser inferida de outra coisa  e concluída. O que está em questão, aqui, é já a orientação geral da filosofia; com efeito, não basta dizer que a filosofia está na origem das ciências e que ela foi sua mãe; agora que elas estão adultas e bem constituídas, é preciso perguntar por que há ainda filosofia, em que a ciência não basta. Ora, a filosofia respondeu de apenas duas maneiras a uma tal questão, e isto porque, sem dúvida, há somente duas respostas possíveis: uma vez dito que a ciência nos dá um conhecimento das coisas, que ela está, portanto, em certa relação com elas, a filosofia pode renunciar a rivalizar com a ciência, pode deixar-lhe as coisas, e só apresentar-se de uma maneira crítica como uma reflexão sobre esse conhecimento que se tem delas. Ou então, ao contrário, a filosofia pretende instaurar, ou antes restaurar, uma outra relação com as coisas, portanto um outro conhecimento, conhecimento e relação que a ciência precisamente nos ocultava, de que ela nos privava, porque ela nos permitia somente concluir e inferir, sem jamais nos apresentar, nos dar a coisa em si mesma. É nessa segunda via que Bergson se empenha, [30] repudiando as filosofias críticas, quando ele nos mostra na ciência, e também na atividade técnica, na inteligência, na linguagem cotidiana, na vida social e na necessidade prática, enfim e sobretudo, no espaço, outras tantas formas e relações que nos separam das coisas e de sua interioridade.
Mas a intuição tem uma segunda característica: assim compreendida, ela se apresenta como um retorno. Com efeito, a relação filosófica que nos insere nas coisas, ao invés  de nos deixar de fora, é mais restaurada do que instaurada pela filosofia, é mais reencontrada do que inventada. Estamos separados das coisas, o dado imediato não é, portanto, imediatamente dado; mas nós não podemos estar separados por um simples acidente, por uma mediação que viria de nós, que concerniria tão-somente a nós: é preciso que esteja fundado nas próprias coisas o movimento que as desnatura; para que terminemos por perdê-las, é preciso que as coisas comecem por se perder; é preciso que um esquecimento esteja fundado no ser. A matéria é justamente, no ser, aquilo que prepara e acompanha o espaço, a inteligência e a ciência. É graças a isso que Bergson faz coisa totalmente distinta de uma psicologia,  vez que,  mais do  que ser a  simples inteligência  um  princípio  psicológico  da matéria e do espaço, a própria matéria é um princípio ontológico da inteligência[3]. É por isso também que ele não recusa direito algum ao conhecimento científico, e nos diz que esse conhecimento não nos separa simplesmente das coisas e de sua verdadeira natureza, mas que apreende pelo menos uma das duas metades do ser, um dos dois lados do absoluto, um dos dois movimentos da natureza, aquele em que a natureza se distende e se põe ao exterior de si [4]. Bergson irá mesmo mais longe, uma vez que, em certas condições, a ciência pode unir-se à filosofia, ou seja, ter acesso com ela a uma compreensão total [5]. De qualquer maneira, nós  podemos dizer desde já que não haverá em Bergson a menor distinção de dois mundos, um sensível, outro inteligível, mas somente dois movimentos ou antes dois sentidos de um único e mesmo movimento: um deles é tal que o movimento tende a se congelar em seu produto, no resultado que [31] o interrompe; o outro sentido é o que retrocede, que reencontra no produto o movimento do qual ele resulta. Do mesmo modo, os dois sentidos são naturais, cada um à sua maneira: o primeiro se faz segundo a natureza, mas  esta corre aí o risco de se perder a cada repouso, a cada respiração; o segundo se faz contra a natureza, mas ela aí se reencontra, ela se retoma na tensão. O segundo só pode ser encontrado sob o primeiro, e é sempre assim que ele é reencontrado. Nós reencontramos o imediato porque, para encontrá-lo, precisamos retornar. Em filosofia, a primeira vez é já a segunda; é essa a noção de fundamento. Sem dúvida, de certa maneira, o produto é que é, e o movimento é que não é, que não é mais. Mas não é nesses termos que se deve propor o problema do ser. A cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto e a sombra de seu produto. O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é que não é  e o movimento é que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados. Bergson nos mostra isso em seu livro mais difícil: não é o presente que é e o passado que não  é mais, mas o presente é útil, o ser é o passado, o ser era [6] –  veremos que essa tese funda o imprevisível e o contingente, ao invés de suprimi-los. Bergson substituiu a distinção de dois mundos pela distinção de dois movimentos, de dois sentidos de um único e mesmo movimento, o espírito e a matéria, de dois tempos na mesma duração, o passado e o presente, que ele soube conceber como coexistentes justamente porque eles estavam na mesma duração, um sob o outro e não um depois do outro. Trata-se de nos levar, ao mesmo tempo, a compreender a distinção necessária como diferença de tempo, e também a compreender tempos diferentes, o presente e o passado, como contemporâneos um do outro, e formando o mesmo mundo. Nós veremos de que maneira.
Por que dar o nome de imediato àquilo que reencontramos? O que é imediato? Se a ciência é um conhecimento real da coisa, um conhecimento da realidade, o que ela [32] perde ou simplesmente corre o risco de perder não é exatamente a coisa. O que a ciência corre o risco  de perder, a menos que se deixe penetrar de filosofia, é menos a própria coisa do que a diferença da coisa, o que faz seu ser, o que faz que ela seja sobretudo isto do que aquilo, sobretudo isto do que outra coisa. Bergson denuncia com energia o que lhe parece ser falsos problemas: por que há, sobretudo, algo ao invés de nada, por que, sobretudo, a ordem ao invés da desordem [7] ?  Se tais problemas são falsos, mal propostos, isso acontece por duas razões. Primeiro, porque eles fazem do ser uma generalidade, algo de imutável e de indiferente que, no conjunto imóvel em que é tomado, pode distinguir-se tão-somente do nada, do não ser. Em seguida, mesmo que se tente dar um movimento ao ser imutável assim posto, tal movimento será apenas o da contradição, ordem e desordem, ser e nada, uno e múltiplo. Mas, de fato, assim como o movimento não se compõe de pontos do espaço ou de instantes, o ser não pode se compor de dois pontos de vista contraditórios: as malhas seriam muito frouxas [8]. O ser é um mau conceito enquanto serve para opor tudo o que é ao nada, ou a própria coisa a tudo aquilo que ela não é: nos dois casos, o ser abandonou, desertou das coisas, não passa de uma abstração. Portanto, a questão bergsoniana não é: por que alguma coisa ao invés de nada? mas: por que isto ao invés de outra coisa? Por que tal tensão da duração[9] ? Por que esta velocidade ao invés de uma outra[10] ? Por que tal proporção[11] ? E por que uma percepção vai evocar tal lembrança, ou colher certas freqüências, umas ao invés de outras[12] ? Isso quer dizer que o ser é a diferença, e não o imutável ou o indiferente, tampouco a contradição, que é somente um falso movimento. O ser é a própria diferença da coisa, aquilo que Bergson chama freqüentemente de nuança. “Um empirismo digno deste nome [...] talha para o objeto um conceito apropriado ao objeto apenas, conceito do qual mal se pode dizer que ainda seja um conceito, [33] uma vez que ele só se aplica unicamente a esta coisa” [13] . E, em um texto curioso, no qual Bergson atribui a Ravaisson  a intenção de opor a intuição intelectual à idéia geral como a luz branca à simples idéia de cor, lê-se ainda:  “Em lugar de diluir seu pensamento no geral, o filósofo deve concentrá-lo no  individual [...] O objeto da metafísica é reapreender, nas existências individuais, seguindo-o até a fonte de que ele emana, o raio particular que, conferindo a cada uma delas sua nuança própria, torna assim a ligá-la à luz universal” [14]. O imediato é precisamente a identidade da coisa e de sua diferença, tal como a filosofia a reencontra ou a “reapreende”. Na ciência e na metafísica, Bergson denuncia um perigo comum: deixar escapar a diferença, porque uma concebe a coisa como um produto e um resultado, porque a outra concebe o ser como algo de imutável a servir de princípio. Ambas pretendem atingir o ser ou recompô-lo a partir de semelhanças e de oposições cada vez mais vastas, mas a semelhança e a oposição são quase sempre categorias práticas, não ontológicas. Donde a insistência de Bergson em mostrar que, graças a uma semelhança, corremos o risco de pôr coisas extremamente diferentes sob uma mesma palavra, coisas que diferem por natureza [15]. O ser, de fato, está do lado da diferença, nem uno nem múltiplo. Mas o que é a nuança, a diferença da coisa, o que é a diferença do pedaço de açúcar?  Não é simplesmente sua diferença em relação a uma outra coisa: nós só teríamos aí uma relação puramente exterior, remetendo-nos em última instância ao espaço. Não é tampouco sua diferença em relação a tudo o que o pedaço de açúcar não é: seríamos remetidos a uma dialética da contradição. Já Platão não queria que se confundisse a alteridade com uma contradição; mas, para Bergson, a alteridade  ainda não basta para fazer que o ser  alcance as coisas e seja verdadeiramente o ser das coisas. Ele substitui o conceito platônico de alteridade por um conceito aristotélico, aquele de alteração, para fazer desta a própria substância. O ser é [34] alteração, a alteração é substância[16]. E é bem isso que Bergson denomina duração, pois todas as características pelas quais ele a define, desde Os dados imediatos, voltam sempre a isto: a duração é o que difere ou o que muda de natureza , a qualidade, a heterogeneidade, o que difere de si mesmo. O ser do pedaço de açúcar se definirá por uma duração, por um certo modo de durar, por uma certa distensão ou tensão da duração.
Como a duração tem esse poder? A questão pode ser proposta de outra maneira:  se o ser é a diferença da coisa,  o que daí resulta para a própria  coisa? Encontramos aqui uma terceira característica da intuição, mais profunda que as precedentes. Como método, a intuição é um método que busca a diferença. Ela se apresenta como buscando e encontrando as diferenças de natureza, as “articulações do real”. O ser é articulado; um falso problema é aquele que não respeita essas diferenças. Bergson gosta de citar o texto em que Platão compara o filósofo ao bom cozinheiro que corta segundo as articulações naturais; ele censura constantemente a ciência e a metafísica por terem perdido esse sentido das diferenças de natureza, por terem retido somente diferenças de grau aí onde havia uma coisa totalmente distinta, por terem, assim, partido de um “misto” mal analisado. Uma das passagens mais célebres de Bergson nos mostra que a intensidade recobre de fato diferenças de natureza que a intuição pode reencontrar [17]. Mas sabemos que a ciência e mesmo a metafísica não inventam seus próprios erros ou suas ilusões: alguma coisa os funda no ser. Com efeito, enquanto nos achamos diante de produtos, enquanto as coisas com as quais estamos às voltas são ainda resultados, não podemos apreender as diferenças de natureza pela simples razão de que elas não estão aí: entre duas coisas, entre dois produtos, só há e só pode haver diferenças de grau, de proporção. O que difere por natureza nunca é uma coisa, mas uma tendência. A diferença de natureza não está entre dois produtos, entre duas coisas, mas em uma única e mesma coisa, entre duas tendências que a atravessam, está em um único e mesmo produto, entre duas tendências que aí se encontram [18]. Portanto, [35] o  que é puro nunca é a coisa; esta é sempre um misto que é preciso dissociar; somente a tendência é pura: isso quer dizer que a verdadeira coisa ou a substância é a própria tendência. Assim, a intuição aparece como um verdadeiro método de divisão: ela divide o misto em duas tendências que diferem por natureza. Reconhece-se o sentido dos dualismos caros a Bergson: não somente os títulos de muitas de suas obras, mas cada um dos  capítulos, e o anúncio que precede cada página, dão testemunho de um tal dualismo. A quantidade e a qualidade, a inteligência e o instinto, a ordem geométrica e a ordem vital, a ciência e a metafísica, o fechado e o aberto: essas são as figuras mais conhecidas. Sabe-se que, em última instância, elas se reconduzem à distinção, sempre reencontrada, da matéria e da duração. E matéria e duração nunca se distinguem como duas coisas, mas como dois movimentos, duas tendências, como a distensão e a contração. Mas é preciso ir mais longe: se o tema e a idéia de pureza têm uma grande importância na filosofia de Bergson, é porque as duas tendências não são puras em cada caso, ou não são igualmente puras. Só uma das duas tendências é pura, ou simples, sendo que a outra, ao contrário, desempenha o papel de uma impureza que vem comprometê-la ou perturbá-la [19]. Na divisão do misto, há sempre uma metade direita, a que nos remete à duração. Com efeito, mais do que diferença de natureza entre as duas tendências que recortam a coisa, a própria diferença da coisa era uma das duas tendências. E se nos elevamos até a dualidade  da matéria e da duração, vemos bem que a duração nos apresenta a própria natureza da diferença, a diferença de si para consigo, ao passo que a matéria é apenas o indiferente, aquilo que se repete ou o simples grau, o que não pode mais mudar de natureza. Não se vê ao mesmo tempo que o dualismo é um momento já ultrapassado na filosofia de Bergson? Com efeito, se há uma metade privilegiada na divisão, é preciso que tal metade contenha em si o segredo da outra. Se toda diferença está de um lado, é preciso que este lado compreenda sua diferença em relação ao outro, e, de uma certa maneira, o próprio outro ou sua possibilidade. A duração difere da matéria, mas porque ela é, inicialmente, o que difere em si e de si, de modo que a [36] matéria da qual ela difere é ainda duração.  Enquanto ficamos no dualismo, a coisa está no ponto de encontro de dois movimentos: a duração, que não tem graus por si própria, encontra a matéria como um movimento contrário, como um certo obstáculo, uma certa impureza que a perturba, que interrompe seu impulso , que lhe dá aqui tal grau, ali tal outro [20] . Porém, mais profundamente, é em si que a duração é suscetível de graus, porque ela é o que difere de si, de modo que cada coisa é inteiramente definida na duração, aí compreendida a própria matéria. Em uma perspectiva ainda dualista, a duração e a matéria se opunham como o que difere por natureza e o que só tem graus; porém, mais profundamente, há graus da própria diferença, sendo a matéria somente o mais baixo, o próprio ponto  onde a diferença, justamente, é tão-somente uma diferença de grau [21] . Se é verdadeiro que a inteligência está do lado da matéria em função do objeto sobre o qual ela incide, resta que só se pode defini-la em si, mostrando de que maneira ela, que domina seu objeto, dura. E, se se trata de definir, enfim, a própria matéria, não bastará mais apresentá-la como obstáculo e como impureza; será sempre preciso mostrar como ela, cuja vibração ocupa ainda vários instantes, dura.  Assim, toda coisa é completamente definida do lado direito, reto, por uma certa duração, por um certo grau da própria duração.
Um misto se decompõe em duas tendências, das quais uma é a duração, simples e indivisível; mas, ao mesmo tempo, a duração se diferencia em duas direções, das quais a outra é a matéria. O espaço é decomposto em matéria e em duração, mas a duração se diferencia em contração e em distensão, sendo esta o princípio da matéria. Portanto, se o dualismo é ultrapassado em direção ao monismo, o monismo nos dá um novo dualismo, dessa vez controlado, dominado, pois não é do mesmo modo que o misto se decompõe e o simples se diferencia. Assim, o método da intuição tem uma quarta e última característica: ele não se contenta em seguir as articulações naturais para segmentar as coisas, ele remonta [37] ainda às “linhas de fatos”, às linhas de diferenciação, para reencontrar o simples como uma convergência de probabilidades; ele não apenas corta, mas recorta, torna a cortar [22]. A diferenciação é o poder do que é simples, indivisível, do que dura. Aqui é que vemos sob qual aspecto a própria duração é um impulso vital. Bergson encontra na Biologia, particularmente na evolução das espécies, a marca de um processo essencial à vida, justamente o da diferenciação como produção das diferenças reais, processo do qual ele vai procurar o conceito e as conseqüências filosóficas. As páginas admiráveis que ele escreveu em A evolução criadora e em As duas fontes nos mostram uma tal atividade da vida, culminando na planta e no animal, ou então no instinto e na inteligência, ou ainda nas diversas formas de um mesmo instinto. Para Bergson, a diferenciação parece ser o modo do que se realiza, se atualiza ou se faz. Uma virtualidade que se realiza é, ao mesmo tempo, o que se diferencia, isto é, aquilo que dá séries divergentes, linhas de evolução, espécies. “A essência de uma tendência é desenvolver-se  em forma de feixe, criando, tão-só pelo fato do seu crescimento, direções divergentes” [23]. O impulso vital, portanto, será a própria duração à medida que se atualiza, à medida que se diferencia. O impulso vital é a diferença à medida que ela passa ao ato. Desse modo, a diferenciação não vem simplesmente de uma resistência da matéria, mas, mais profundamente, de uma força da qual a duração é em si mesma portadora: a dicotomia é a lei da vida. E a censura que Bergson dirige ao mecanicismo e ao finalismo em biologia, assim como à dialética em filosofia, é que eles, de pontos de vista diferentes, sempre compõem o movimento como uma relação entre termos atuais, em vez de aí verem a realização de um virtual. Mas, se a diferenciação é assim o modo original e irredutível pelo qual uma virtualidade se realiza, e se o impulso vital é a duração que se diferencia, eis que a própria duração é a virtualidade. A evolução criadora traz a Os dados imediatos o aprofundamento assim como o prolongamento necessários. Com efeito, desde Os dados imediatos a duração se apresentava como o virtual ou o [38] subjetivo, porque ela era menos o que não se deixa dividir do que o que muda de natureza ao dividir-se [24]. Compreendemos que o virtual não é um atual, mas não é menos um modo de ser; bem mais, ele é, de certa maneira, o próprio ser: nem a duração, nem a vida, nem o movimento são atuais, mas aquilo em que toda atualidade, toda realidade se distingue e se compreende, tem sua raiz. Realizar-se é sempre o ato de um todo que não se torna inteiramente real ao mesmo tempo, no mesmo lugar, nem na mesma coisa, de  modo que ele produz espécies que diferem por natureza, sendo ele próprio essa diferença de natureza entre as espécies que produz. Bergson dizia constantemente que a duração era a mudança de natureza, de qualidade. “Entre a luz e a obscuridade, entre cores, entre nuanças, a diferença é absoluta. A passagem de uma à outra é também um fenômeno absolutamente real”[25].
Temos, portanto, como que dois extremos, a duração e o impulso vital, o virtual e sua realização. É preciso dizer, ainda, que a duração já é impulso vital, porque é da essência do virtual realizar-se; portanto, é preciso um terceiro aspecto que nos mostre isto, um aspecto de algum modo intermediário em relação aos dois precedentes. É justamente sob este terceiro aspecto que a duração se chama memória. Por todas as suas características, com efeito, a duração é uma memória, porque ela prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distintamente a imagem sempre crescente do passado, seja sobretudo porque ele, pela sua contínua mudança de qualidade, dá testemunho da carga cada vez mais pesada que alguém carrega em suas costas à medida que vai cada vez mais envelhecendo” [26]. Anotemos que a memória é sempre apresentada por Bergson de duas maneiras: memória-lembrança e memória-contração, sendo a segunda a essencial [27]. Por que essas duas figuras, figuras que  vão dar à memória um estatuto filosófico inteiramente novo? A primeira nos remete a uma sobrevivência do passado. Mas, dentre todas as teses de Bergson, talvez seja esta a mais profunda e a menos bem compreendida, a tese segundo a qual [39] o passado sobrevive em si [28].  Porque essa própria sobrevivência é a duração, a duração é em si memória. Bergson nos mostra que a lembrança não é a representação de alguma coisa que foi; o passado é isso em que nós nos colocamos de súbito para nos lembrar [29]. O passado não tem porque sobreviver psicologicamente e nem fisiologicamente em nosso cérebro, pois ele não deixou de ser, parou  apenas de ser útil; ele é, ele sobrevive em si. E esse ser em si do passado é tão-somente a conseqüência imediata de uma boa  proposição do problema: pois se o passado devesse esperar não mais ser, se ele não fosse de imediato e desde já “passado em geral”, jamais poderia ele tornar-se o que é, jamais seria ele este passado. Portanto, o passado é o em si, o inconsciente ou, justamente, como diz Bergson, o virtual  [30]. Mas em que sentido é ele virtual? É aí que devemos encontrar a segunda figura da memória. O passado não se constitui depois de ter sido  presente, ele coexiste consigo como presente. Se refletirmos sobre isto, veremos bem que a dificuldade filosófica da própria noção de passado vem do estar ele de algum modo interposto entre dois presentes: o presente que ele foi e o atual presente em relação a qual ele é agora passado. A falha da psicologia, propondo mal o problema, foi ter retido o segundo presente e, conseqüentemente,  ter buscado o passado a partir de alguma coisa de atual, além de, finalmente, tê-lo mais ou menos posto no cérebro. Mas, de fato, “a memória de modo algum consiste em uma regressão do presente ao passado” [31]. O que Bergson nos mostra é que, se o passado não é passado ao mesmo tempo em que é  presente, ele jamais poderá constituir-se e, menos ainda, ser reconstituído a partir de um presente ulterior. Eis, portanto, em que sentido o passado coexiste consigo como presente: a duração é tão-somente essa própria coexistência, essa coexistência de si consigo. Logo, o passado e o presente devem ser pensados como dois graus extremos coexistindo na duração, graus que se distinguem, um pelo seu estado de distensão, o outro por seu estado de contração. Uma metáfora célebre nos diz que, a cada [40] nível do cone, há todo o nosso passado, mas em graus diferentes: o presente é somente o grau mais contraído do passado. “A mesma vida psíquica seria, portanto, repetida um número indefinido de vezes, em camadas sucessivas da memória, e o mesmo ato do espírito poderia se exercer em muitas alturas diferentes”; “tudo se passa como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nessas milhares de reduções possíveis de nossa vida passada”; tudo é mudança de energia, de tensão, e nada mais [32]. A cada grau há tudo, mas tudo coexiste com tudo, ou seja, com os outros graus. Assim, vemos finalmente o que é virtual: são os próprios graus coexistentes e como tais [33].  Tem-se razão em definir a duração como uma sucessão , mas falha-se em insistir nisso, pois ela só é efetivamente sucessão real por ser coexistência virtual. A propósito da intuição, Bergson escreve: “Somente o método de que falamos permite ultrapassar o idealismo tanto quanto o realismo, afirmar a existência de objetos inferiores e superiores a nós, conquanto sejam em certo sentido interiores a nós, e fazê-los coexistir juntos sem dificuldade” [34]. E se, com efeito, pesquisamos a passagem de Matéria e memória à Evolução criadora, vemos que os graus coexistentes são ao mesmo tempo o que faz da duração algo de virtual e o que, entretanto, faz que a duração se atualize a cada instante, porque eles desenham outros tantos planos e níveis que determinam todas as linhas de diferenciação possíveis. Em resumo, as séries realmente divergentes nascem, na duração, de graus virtuais coexistentes. Entre a inteligência e o instinto, há uma diferença de natureza, porque eles estão nos extremos de duas séries que divergem; mas o que essa diferença de natureza exprime enfim senão dois graus que coexistem na duração, dois graus diferentes de distensão e de contração? É assim que cada coisa, cada ser é o todo, mas o todo que se realiza em tal ou qual grau. Nas primeiras obras de Bergson, a duração pode parecer uma realidade sobretudo psicológica; mas o que é psicológico é somente nossa duração, ou seja, um certo grau bem determinado. “Se, em lugar de [41] pretender analisar a duração (ou seja, no fundo, fazer sua síntese com conceitos), instalamo-nos primeiramente nela por um esforço de intuição, teremos o sentimento de uma certa tensão bem determinada, cuja própria determinação aparece como uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis. Perceberemos então numerosas durações, tantas quanto queiramos, todas muito diferentes umas das outras...” [35]. Eis por que o segredo do bergsonismo está sem dúvida em Matéria e memória; aliás, Bergson nos diz que sua obra consistiu em refletir sobre isto: que tudo não está dado. Que tudo não esteja dado, eis a realidade do tempo. Mas o que significa uma tal realidade? Ao mesmo tempo,  que o dado supõe um movimento que o inventa ou cria, e que esse movimento não deve ser concebido à imagem do dado [36]. O que Bergson critica na idéia de possível  é que esta nos apresenta  um simples decalque do produto, decalque em seguida projetado ou antes retroprojetado sobre o movimento de produção, sobre a invenção [37].  Mas o virtual não é a mesma coisa que o possível: a realidade do tempo é finalmente a afirmação de uma virtualidade que se realiza, e para a qual realizar-se é inventar. Com efeito, se tudo não está dado, resta que o virtual é o todo. Lembremo-nos de que o impulso vital é finito: o todo é o que se realiza em espécies, que não são à sua imagem, como tampouco são elas à imagem umas das outras; ao mesmo tempo, cada uma corresponde a um certo grau do todo, e difere por natureza  das outras, de maneira que o próprio todo apresenta-se, ao mesmo tempo, como a diferença de natureza na realidade e como a coexistência dos graus no espírito.
Se o passado coexiste consigo como presente, se o presente é o grau mais contraído do passado coexistente, eis que esse mesmo presente, por ser  o ponto preciso onde o passado se lança em direção ao futuro, se define como aquilo que muda de natureza, o sempre novo, a eternidade de vida [38]. Compreende-se que um tema lírico percorra toda a obra de Bergson: um verdadeiro canto em louvor ao novo, ao imprevisível, à invenção, à liberdade. Não há aí uma renúncia da filosofia, [42] mas uma tentativa profunda e original para descobrir o domínio próprio da filosofia, para atingir a própria coisa para além da ordem do possível, das causas e dos fins. Finalidade, causalidade, possibilidade estão sempre em relação com a coisa uma vez pronta, e supõem sempre que “tudo” esteja dado. Quando Bergson critica essas noções, quando nos fala em indeterminação, ele não nos está convidando a abandonar as razões, mas a alcançarmos a verdadeira razão da coisa em vias de se fazer, a razão filosófica, que não é determinação, mas diferença. Encontramos todo o movimento do pensamento bergsoniano concentrado em Matéria e Memória sob a tríplice forma da diferença de natureza, dos graus coexistentes da diferença, da diferenciação. Bergson nos mostra inicialmente que há uma diferença de natureza entre o passado e o presente, entre a lembrança e a percepção, entre a duração e a matéria: os psicólogos e os filósofos falharam ao partir, em todos os casos, de um misto mal analisado. Em seguida, ele nos mostra que ainda não basta falar em uma diferença de natureza entre a matéria e a duração, entre o presente e o passado, uma vez que toda a questão é justamente saber  o que é uma diferença de natureza: ele mostra que a própria duração é essa diferença, que ela é a natureza da diferença, de modo que ela compreende a matéria como seu mais baixo grau, seu grau mais distendido, como um passado infinitamente dilatado, e compreende a si mesma ao se contrair como um presente extremamente comprimido, retesado . Enfim, ele nos mostra que, se os graus coexistem na duração, a duração é a cada instante o que se diferencia, seja porque se diferencia em passado e em presente ou, se se prefere, seja porque o presente se desdobra em duas direções, uma em direção ao passado, outra em direção ao futuro. A esses três tempos correspondem, no conjunto da obra, as noções de duração, de memória e de impulso vital. O projeto que se encontra em Bergson, o de alcançar as coisas, rompendo com as filosofias críticas, não é absolutamente novo, mesmo na França, uma vez que ele define uma concepção geral da filosofia e sob vários de seus aspectos participa do empirismo inglês. Mas o método é profundamente novo, assim como os três conceitos essenciais que lhe dão seu sentido.
Tradução de
Lia Guarino NRT



DL In Maurice Merleau-Ponty, éd., Les philosophes célèbres, Paris, Editions d’Art Lucien Mazenod, 1956, p. 292-299. No ano seguinte, Deleuze editará uma coletânea de textos escolhidos de Bergson sob o título Mémoire et vie, Paris, PUF, 1957. (Em notas, algumas referências foram tornadas precisas. A paginação remete à edição corrente de cada obra de Bergson publicada pelas Presses Universitaires de France, coleção “Quadrige”).
[1]La pensée et le mouvant II.
[2]Matière et Mémoire, I, 74
[3]L’Evolution Créatrice, III.
[4]PM, II.
[5]PM, VI.
[6]MM, III.
[7]EC, III.
[8]PM, VI
[9]PM, VIII.
[10]EC, IV.
[11]EC, II.
[12]MM, III.
[13]PM, VI, p.196-197.
[14]PM, IX, p. 259-260.
[15]PM, II.
[16]PM, V; MM, IV.
[17]Essai sur les Données Immédiates de la Conscience, I.
[18]EC, II.
[19]MM, I.
[20] EC, III.
[21] MM, IV; PM, VI.
[22]Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, III; L’Energie spirituelle, I.
[23]EC, II, p. 100.
[24]DI, II.
[25]MM, IV, p. 219.
[26]PM, VI, p. 201
[27]MM, I.
[28]MM, III.
[29]ES, V.
[30]MM, III.
[31]MM, IV, p. 269.
[32]MM, II, p. 115 e III, p. 188.
[33]MM, III.
[34]PM, VI, p. 206-207
[35] PM, VI, p. 208.
[36]EC, IV.
[37]PM, III.
[38]PM, VI.
NRT [Tradução originalmente publicada como anexo em Gilles Deleuze, Bergsonismo, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, SP, Ed. 34, 1999, pp. 95-123].
cooperação.sem.mando

Nenhum comentário:

Postar um comentário