terça-feira, 17 de abril de 2012

compondo escritos sobre a atenção básica no SUAS

estou postando aqui, cinco escritos em estado bruto, sobre a questão da produção do trabalho da psicologia no campo da atenção básica na política de assistência social... são escritos tessidos na sonoridade do trabalho cotidiano... somente o primeiro deles foi publicado (no Jornal Entrelinhas - Ano XII - N.º 57 - Jan/Fev/Mar 2012) e os demais, ainda sem edição, se imitam entre si, numa ou noutra parte... como vou demorar a passar a tesoura neles, largo aí ao dispor de quem queira ler... acho que servem para pensar uma ou outra coisa (não só no campo da assistência social, mas também da saúde e da educação)... assimassim, é a vida escorrendo do grafite que me habita!

1. PSI: COMPONDO O CRAS

A produção do trabalho da Psicologia no CRAS implica que o trabalhador da área se desdobre em algumas condições que podem se fazer mais, ou menos, intensas, porosas, capilares e rizomáticas[1], a partir de sua caminhada e das experimentações vivenciadas em sua vida; mas é fundamental, para atuar nesse campo, que se tenha a capacidade de tecer uma leitura de mundo que contemple as gentes em seus fazeres, pensares e existires singulares; que olhe os agrupamentos humanos como produção de afetos e de relações singulares, desemolduradas de estereótipos normalizadores; que contemple as comunidades a partir dos seus agenciamentos, movimentos e acontecimentos, muito diferentemente da linearidade e exatidão que nos ensinaram ao longo dos tempos.
É preciso simplicidade, muita simplicidade, para aprender a acolher o saber e a vida do outro, reconhecendo que não dispomos de um olhar consertador de vidas e nem de receitas que digam como fazer para se viver melhor ou de outra forma. Aliás, não há um viver melhor ou pior... há a forma como cada um vive! É preciso simplicidade para aprender a andar no mesmo tranco que os outros, ou às vezes recuar, ou avançar.
É necessário leveza pra poder se desvencilhar das verdades prontas e acabadas, das ortodoxias, dos saberes superiores, das dicotomias e, assim, dar espaço e trânsito para a invenção da vida, do trabalho e das andanças. Quando os moldes normalizam e prendem, devemos ter a capacidade de puxar a cadeira pra trás e abrir espaço para a fluidez da criação. Criar e inventar faz parte da produção de uma estética do existir... estética enquanto capacidade criativa da invenção da vida a partir daquilo que é importante para o sujeito... sem moldes e sem receitas.
Nesses fazeres, não podemos querer andar solitos... não há um fazer solito. Temos que andar no compasso e na cadência dos rumos e rumores vindos das andanças dos nossos colegas de outros campos de saberes. São andanças que ora acontecem mais juntas, ora mais distantes, mas nunca solitas. E nessa toada, não podemos esquecer que além dos pontos de conexão com os colegas de perto, também temos que tecer pontos de nó com as demais políticas públicas, fazendo a rede acontecer através do trabalho vivo, que emerge dos movimentos da vida das pessoas, o que requer que rompamos com as práticas estanques e burocratizadas dos encaminhamentos, produzindo a co-responsabilização e o compartilhamento no trabalho que operamos. É a isso que soe chamar de trabalho interdisciplinar e intersetorial.
Olhando para o lugar geográfico do CRAS podemos pensar um pouco na questão da territorialidade. Nossos fazeres não podem mais se dar nos hierarquizados e centralizados lugares de sempre, ou seja, temos que produzir nosso trabalho onde a vida e os existires estão acontecendo e transitando. Atuar no território é fundamental para provocar movimentos de desacomodação, desterritorialização e reterritorialização de pensares e de fazeres (nossos e dos usuários), ou, simplesmente, para o fortalecimento daquilo que lhes é importante fortalecer e vitalizar. (Veja-se que o território pode ser geográfico ou imaginário... a forma como acontecem os deslocamentos e re-situamentos pode indicar a cartografia dos pensares, dos quereres e dos fazeres... às vezes agenciamos coisas em nosso imaginário, que nos levarão a produzir um outro compasso que nos levará a outras andanças... e isso se dá somente se for provocado, de uma ou de outra forma).
Nisso tudo, há algo que ilustra todos esses aconteceres e que se dá como se fossem várias e infinitas cirandas se cruzando e entrecruzando, produzindo conexões e pontos de interseção, juntando o comum e, ao mesmo tempo, mantendo o diverso e o singular... é nessa toada que podemos ajudar a produzir novos modos de subjetivação, de criação e de invenção da vida… de ver a vida-singularidade, a vida-transversalidade. O trans-verso sempre traz o verso da interseção dos acontecimentos… a invenção, a poesia, a criação, nascem nas estranhas dessa dobra… é lá que a psicologia deve estar.


[1] Busco as noções de intensidade, porosidade, capilaridade e rizoma no pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que nos garantem o estofo e as dobras para compor a leitura e o esquizo-pensar para a atuação das políticas e dos trabalhadores sociais no contemporâneo, desenhando a idéia de tempo e memória, de superfície e atravessamento, de vitalismo e potência, de multiplicação e transversalidade; essa perspectiva é diversa da idéia do pensar e fazer radical clássico, que contempla os sujeitos em suas permanências profundas e constantes, e não em suas descontinuidades que provocam a problematização da existência, produzindo assim, a invenção de um outro modo de existir.

2. NOTAS PARA FAZER UMA TOADA

Dia desses, sentada num banco de três pernas, fumando um palheiro de fumo-em-corda, numa roda de conversa escorada na sombra de um cinamomo, olhava para as histórias das mulheres que me apareciam por detrás da fumaça. Meus pés, rosados e empoeirados, contrastavam com os delas, que já caminharam tanto, que eu nem sei medir a imensidão dos passos que deram. Com elas, fui tecendo pontos de nós de conversas à toa e, nessa toada, tessendo a musicalidade de suas existências (e também da minha, que psicóloga sou, mas antes de sê-lo, bolicheira, além de pescadora, fui e sou... converso à fiado, porque as palavras e as histórias não tem preço, então, melhor tomar nota na caderneta dos agenciamentos, movimentos e acontecimentos da vida que ora uns nos tiram e ora resgatamos!). Se quisermos andar com as gentes, não podemos desacontecer esses atravessamentos.
Bastante esquizo em meu pensamento e no deslizar do meu lápis, nesta breve nota parto disso pra andar um pouco pelas veredas em cujo traçado o SUAS tem tentado fazer um esboço de fissuras que possam ser produzidas nos fazeres e nos pensares no campo da Assistência Social e, para olhar o lugar da psicologia no SUAS - mais especificamente na produção do trabalho nos CRAS - não podemos deixar de visualizar o encontro que a psicologia pode provocar nos processos e nos modos de subjetivação no contemporâneo, entre o pensamento e a vida.
Talvez, por essa via, possamos atuar na devolução que o Estado deve fazer ao sujeito-cidadão, do seu direito ao governo e ao cuidado de si, fazendo alquebrar os ditames capitalísticos e do Estado paternalista que necessita do poder de uns sobre os outros para sustentar os andaimes das verticalidades que se apóiam nas pernas fortes dos pobres, para que apenas alguns sintam a brisa leve que bate no rosto somente daqueles que ocupam a cobertura dessa sociedade que chuta para fora quem não tem pernas para amparar o gordo ócio dominante.
O CRAS e o SUAS não são feitos de modelitos prontos. Os modelos de sistema e de serviços públicos hierarquizados, verticalizados e horizontalizados serviram e ainda servem à uma noção de sociedade desenhada pelo ideário capitalístico, que atua com a serialização de moldes em que as gentes, todas, devem se encaixar e, se não o fizerem, são jogadas à vala da inadequação (a qual -devemos reconhecer- seja o melhor lugar para se viver sem se estar à servir tão voluptuosamente ao sistema que nos rumina); assim, diferentemente das políticas de educação e saúde, que, na revisão de suas trilhas, propuseram a reterritorialização dos seus fazeres sem ter, necessariamente, produzido a problematização e desterritorialização de seu pensares, o SUAS já principia o riscado formal do desenho dos pontos de nós de sua política, partindo de uma visada atualizada da produção do contemporâneo, o que não apaga –sublinhe-se- o histórico assistencialista e clientelista que habita as entranhas de suas dobras.
A produção de outros fazeres possíveis nas políticas públicas se dá a partir de uma visada que contemple o mundo e as gentes do mundo na condição de diferença, de devir, de singularidade, de acontecimento e de nomadismo. O fazer e o pensar no contemporâneo passa por esse atravessamento, produzindo as macro e micropolíticas nos processos de trabalho.
Para dar um alinhavo, quero dizer que para pensar o contemporâneo, o mundo hoje, a nossa atualidade, é necessário ter um olhar oblíquo, é necessário ter um olhar esquizo, porque o mundo e as coisas do mundo se extraviaram em desterritorializações e reterritorializações... felizmente, no encontro com as singularidades das gentes, se extraviaram... o nomadismo (des)ordena o que ordenado estava... a normalização perde o vigor prostrada diante a força, o vitalismo e potência da diferença, provocando nas gentes com que trabalhamos, basicamente três coisas que de há muito o SUS já propõe, seja a invenção da vida enquanto vitalismo ético-estético-política... ético, porque implica n a invenção da vida a partir daquilo que de nós fizeram... estético, porque implica na ruptura com a dicotomia que nos ensinou os certos e os errados, os bons e os maus, e outros quetais, para que possamos produzir essa coisa bonita da invenção e da criação a partir da valorização do pensar e do fazer autônomo e protagonista... e político, porque requer que olhemos e estejamos implicamos no conjunto, solidariamente, respeitando os fazeres-pensares autônomos e protagonistas de todas as gentes (usuários, trabalhadores e gestores)... para atuarmos no território, não basta estarmos dentro do riscado geográfico, temos que produzir intersecções com o riscado das vidas... assim, o CRAS pode ser um espaço de produção coletiva de compartilhamento da alegria, da vida, das potências, dos vitalismos, da musicalidade, da intensidade, da transversalidade, da intersetorialidade, do trabalho em rede, do conhecimento, do pensamento da diferença, da problematização das coisas do mundo, das noções e práticas de poder, de ética, de estética e, para isso, temos que sair de nossos abancamentos nas cadeiras estofadas compradas ao menor preço nas licitações públicas e nos assentarmos nos bancos feitos dos saberes das gentes... andamos e aprendemos tanto, para entendermos que as gentes sabem pensar, conversar e viver... às vezes necessitam do nosso saber para ajudar a definir o galho a ser cortado para melhorar a sombra que refresca suas vidas... no mais, é importante saber dos movimentos que faz o sol em torno da árvore... se o galho não for preciso em nenhum das voltas do sol, podemos cortá-lo... do contrário, devemos estaqueá-lo e tratar de suas feridas, para que na mudança das estações, na queda das folhas velhas e na brotação das novas, possamos fortalecê-las. Num SUAS feito para quem dele necessitar, não há quem possa escapar... nele, somos todos atores do seu pensar e do seu fazer! A desterritorialização e a reterritorialização de nossos fazeres implica, necessariamente, nesses mesmos desdobramentos em nossos pensares; sem isso, veremos o mar cobrir a praia somente porque o vento lhe deslocou a água... passado o vento, a água volta a recuar e a areia a secar.

3. CRAS: trabalho vivo

No deslizar do meu lápis, ando um pouco pelas veredas em cujo traçado o SUAS tem tentado fazer um esboço de fissuras que possam ser produzidas nos fazeres e nos pensares no campo da Assistência Social e, para olhar o lugar da psicologia nessas andanças - mais especificamente na produção do trabalho nos CRAS - não podemos deixar de visualizar o encontro que o seu acontecer pode provocar nos processos e nos modos de subjetivação no contemporâneo, entre o pensamento e a vida. Talvez, por essa via, possamos atuar na devolução que o Estado deve fazer ao sujeito-cidadão, do seu direito ao governo e ao cuidado de si.
O CRAS e o SUAS não são feitos de modelitos prontos. O SUAS já principia o riscado formal do desenho dos pontos de nós de sua política, partindo de uma visada atualizada da produção do contemporâneo, o que não apaga –sublinhe-se- o histórico assistencialista e clientelista que habita as entranhas de suas dobras.
O fazer e o pensar no contemporâneo passam por esse atravessamento, produzindo as macro e micropolíticas nos processos de trabalho. Cabe aqui, dizer que para pensar o contemporâneo, o mundo hoje, a nossa atualidade, é necessário ter um olhar oblíquo, é necessário ter um olhar esquizo, porque o mundo e as coisas do mundo se extraviaram em desterritorializações e reterritorializações... felizmente, no encontro com as singularidades das gentes, se extraviaram... o nomadismo (des)ordena o que ordenado estava... a normalização perde o vigor prostrada diante a força, o vitalismo e potência da diferença... provocando nas gentes com que trabalhamos, basicamente três coisas que de há muito o SUS já propõe, seja a invenção da vida enquanto vitalismo ético-estético-política... ético, porque implica na invenção da vida a partir daquilo que de nós fizeram... estético, porque implica na ruptura com a dicotomia que nos ensinou os certos e os errados, os bons e os maus, para que possamos produzir essa coisa bonita da invenção e da criação a partir da valorização do pensar e do fazer autônomo e protagonista... e político, porque requer que olhemos e estejamos implicamos no conjunto, solidariamente, respeitando os fazeres-pensares autônomos e protagonistas de todas as gentes (usuários, trabalhadores e gestores)... para atuarmos no território, não basta estarmos dentro do riscado geográfico, temos que produzir intersecções com o riscado das vidas... assim, o CRAS pode ser um espaço de produção coletiva de compartilhamento da alegria, da vida, das potências, dos vitalismos, da musicalidade, da intensidade, da transversalidade, da intersetorialidade, do trabalho em rede, do conhecimento, do pensamento da diferença, da problematização das coisas do mundo, das noções e práticas de poder, de ética, de estética e, para isso, temos que sair de nossos cômodos abancamentos e nos assentarmos nos bancos feitos dos saberes das gentes.
No fazer prático, a psicologia pode funcionar como disparador de rupturas e de produção de novos modos de subjetivação, partindo das possibilidades dos sujeitos para o desenho e efetivação daquilo que é importante para suas vidas, seja no campo das relações humanas, dos afetos, das vivências individuais ou coletivas, ou do trabalho e da sustentabilidade econômica. E não podemos fazer isso sozinhos, mas sim, nos entrecruzamentos entre os diferentes campos e saberes, no trabalho nos grupos, nas ruas, nas casas; na desacomodação das estagnações e na produção de possíveis; na invenção cotidiana e na valorização da criação como elemento vitalizador; no acontecimento do trabalho vivo, que não é formal, burocratizado e raso. O trabalho vivo acompanha a vida da comunidade acontecendo, em suas rasuras, fissuras, charcos e necessidades; está no pulsar dos movimentos; para fazer ponto de nó nessa teia e nessa rede, também temos que pulsar junto e acontecendo na mesma cadência.
Andamos e aprendemos tanto, para entendermos que as gentes sabem pensar, conversar e viver... às vezes necessitam do nosso saber para ajudar a definir o galho a ser cortado para melhorar a sombra que refresca suas vidas... no mais, é importante saber dos movimentos que faz o sol em torno da árvore... num SUAS feito para quem dele necessitar, não há quem possa escapar... nele, somos todos atores do seu pensar e do seu fazer!

4. PSICO-CRAS NO CONTEMPORÂNEO

A promoção da vida e a produção de singularidades, em vez de normalidades, implica na problematização de muitas questões que fazem parte da história das comunidades e das gentes. O sistema e o ideário capitalístico são os principais elementos que fazem mover o dínamo da perpetuação da desigualdade na produção e acesso aos bens básicos necessários à conservação e sustentabilidade da vida orgânica. São essas condições que fazem com que a imensa maioria da população esteja submetida a patinar na borra das sobras que a sociedade de mercado e de consumo lhes destina, fazendo-nos ainda, reféns do assujeitamento operado por diferentes instrumentos e ferramentas de redoma e nublamento do olhar, o que produz, para além de tudo, uma visada de que o mesmo sistema que enleva quem a ele serve, concede –quando desalinhados de seus ditãmes- as políticas públicas como um favor e não um direito.
Vivemos guiados por esse sistema econômico que nos dessingulariza e que nos torna atravessadores de existências que velam pela cultuação aos ícones do mercado e do consumo - nisso não somos o que podemos ser e, sim, o que podemos ter -; num sistema social em que inclusão significa estar inserido nos padrões de consumo e, estar excluído, é estar fora disso; num sistema político que nos educa para a sujeição, combatendo as práticas de autonomia e liberdade; num tempo em que o ideário neoliberal já descobriu que pode produzir sua própria força e usa isso para nos condenar à nossa própria liberdade; num mundo em que o trabalho é condição-dada de dignidade, ao mesmo tempo em que nos rouba/ nos leva todo o nosso tempo e nos deixa cansados, exauridos, sem tempo para o ócio e para o lazer. É esse mesmo trabalho que deveria nos trazer dignidade, que explora toda a nossa energia, sem garantir sustentabilidade humana. Assim vivemos!
            Romper com essas condições e produzir uma atuação protagonista, assim como outros modos e outras possibilidades de vida é uma tarefa que raramente as pessoas conseguem delinear e pintar por seu próprio punho, necessitando, muitas vezes, que sejam auxiliadas na definição do traçado para então ir apondo a sua própria pintura. Convém sublinhar que a ruptura de que se fala talvez esteja desenhada por nosso olhar emoldurado que só sabe pensar a vida conforme ao ideário dominante, visto que a vida enquanto acontecimento se reinventa permanente, conforme às necessidades, desejos e quereres das gentes.
Assim, nos vemos a inventar um tempo de intensos movimentos em todos os campos das políticas sociais, visto que experienciamos rupturas radicais com as formas clássicas de operá-las. Há algo que nos incita a anarquizar os desenhos fechados, a transgredir aquilo que em nossas vivências, em nossas existências e em nossas práticas nos aprisiona, sendo que nesse movimento de problematização de nossas práticas, devemos tomar o cuidado para não normalizá-las novamente, para não nos assujeitarmos a outros quereres e outros pensares, aniquilando-os, paralisando-os, totalitarizando-os sem termos produzido movimentos; não se trata, também, de definirmos o que e quais seriam as condições ideais que os usuários deveriam perseguir e alcançar em suas vidas, mas sim, de viabilizar que cada um possa reconhecer o seu desejo e as condições que sejam importantes para si e para suas vidas, não para se tornarem melhores para produzir para o capital, mas sim, para produzir pra viver.
            A formulação e o desenvolvimento do fazer preconizado para a área de assistência social, implica em conhecermos o retrato da comunidade com que trabalhamos, lendo e reconhecendo seus condicionantes históricos, assim como, as singularidades que constituem sua porosidade, suas capilaridades, seus vitalismos e potências.
Isto posto, o trabalho da psicologia deve ultrapassar e romper com a prática de atuação guiada pela emergência das demandas cotidianas, dos encaminhamentos e da reafirmação de identidades. Devemos provocar o desassujeitamento e a produção de co-responsabilização, contemplando a tecitura das singularidades da vida das gentes, dos agrupamentos humanos e das comunidades, cartografando e ajudando a cartografar os elementos e os vitalismos para a invenção e reinvenção ou potencialização das vidas e dos existires, assim como, do rumo, do percurso e da consolidação de nosso trabalho enquanto trabalho-vivo e não burocratizado... essa tem sido nossa tarefa!


5. Na cadência da vida

Somos, de uma forma geral, reféns históricos de uma concepção e prática voltada para a cronificação do assistencialismo e do assujeitamento dos usuários a um sistema centralizador e verticalizado da política de assistência social. Os movimentos produzidos a partir da Constituição Cidadã, de 1988, no campo da política de assistência social – já antes da regulamentação e implantação do SUAS – vem se constituindo num importante espaço de promoção e desenvolvimento social, combinando a operacionalização de ações de enfrentamento e promoção, com ações pontuais de atenção à população que vive em condições de vulnerabilidade humana, social, política e econômica.
A forma como isso se desenvolveu - seus modos de fazer- determina suas itinerâncias, que são decorrentes de fatores políticos, técnicos e humanos, e não apenas legais ou formais. Um determinado modo nunca é operado de forma independente de outro. O fazer e a produção de nosso trabalho implicam na provocação ao desassujeitamento das gentes, como produção de resistência à normalização. Tomamos a psicologia como possibilidade de provocá-las à autonomia sobre seus existires, quereres, fazeres e desejos. Não a autonomia preconizada pelo neoliberalismo, mas a autonomia enquanto prática de liberdade, de escolha e de cuidado de si. É uma provocação que não se refere a definir quem possa determinar o que, na vida da pessoa, mas sim, de nos liberarmos enquanto trabalhadores, do governo das vidas das gentes e, assim, gerar, também, o encontro das mesmas com isso que lhes pertence, ou seja, a própria vida. Se (des)normalizar, produzir formas singulares de existenciar a vida, mexe com os lugares dos gestores, dos trabalhadores, dos usuários e com a comunidade, desregulando o que está regulado e pactuado na forma clássica de fazer assistência social.
Longe de propor condições idealizadas de transformação do que vimos fazendo, devemos, antes de mais nada, problematizar o próprio cerne de nosso propósito de trabalho, ou seja, ao mesmo tempo em que nos propomos ao arrastão das velhas formas de disciplinamento, controle e normalização, que conduzia-induzia à dadas formas de produção de subjetivação e de subjetividades normalizadas.
A proteção básica em assistência social implica na produção das condições desenhadas acima, pois para fazê-la acontecer, não basta instalar uma unidade de trabalho no ventre da comunidade que dela necessita. Nessa toada, como podemos pensar a atuação da psicologia nos CRAS, nos provocando a rabiscar outros desenhos para nossas práticas? Como se faz isso? Primeiro, desterritorializando nossos pensares e nossos fazeres, ou seja, contextualizando nosso conhecimento técnico nas cartografias que tecemos em nosso trabalho; segundo, contextualizando o conhecimento das gentes da comunidade como a força fundamental para a potenciação de suas vidas; isso juntado, resulta na reterritorialização de nossa atuação. Talvez, sendo rizomáticos e não apenas nucleares, produzindo capilaridades e não centralidades. Às vezes ritornelos. Às vezes leve brisa. Mas sempre movimento e não engessamento, disciplinamento, controle, normalização, verticalização ou horizontalidade. Esse talvez possa ser o nosso pensar e o nosso fazer, que se dá no fazer fazendo, enquanto ponto de interseção resultante da junção dos diferentes acontecimentos e agenciamentos que se transversalizam no cotidiano das vidas e das comunidades.
No fazer prático, a psicologia pode funcionar como disparador de rupturas e de produção de novos modos de subjetivação, partindo das possibilidades dos sujeitos para o desenho e efetivação daquilo que é importante para suas vidas, seja no campo das relações humanas, dos afetos, das vivências individuais ou coletivas, ou do trabalho e da sustentabilidade econômica. E não podemos fazer isso sozinhos, mas sim, nos entrecruzamentos entre os diferentes campos e saberes, no trabalho nos grupos, nas ruas, nas casas; na desacomodação das estagnações e na produção de possíveis; na invenção cotidiana e na valorização da criação como elemento vitalizador; no acontecimento do trabalho vivo, que não é formal, burocratizado e raso. O trabalho vivo acompanha a vida da comunidade acontecendo, em suas rasuras, fissuras, charcos e necessidades; está no pulsar dos movimentos; para fazer ponto de nó nessa teia e nessa rede, também temos que pulsar junto e acontecendo na mesma cadência.


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