terça-feira, 16 de agosto de 2016

hypomnemata 189

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.189, julho de 2016.



Um imenso cemitério
Em Amuleto, Auxilio Lacourte, personagem que o escritor Roberto Bolaño apresentou como a mãe dos poetas latino-americanos, ao caminhar sozinha pela Cidade do México, nota que a Avenida Guerrero “não parece outra coisa que não um cemitério... um cemitério de 2666, um cemitério esquecido sobre uma pálpebra morta ou por nascer”.
Bolaño mudou-se para o México em 1968, momento em que o Estado ocupou violentamente a UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) e assassinou milhares de pessoas no que ficou conhecido como Massacre de Tlatelolco.
Em 1973, retornou ao sul do continente para resistir ao golpe civil-militar no Chile, país em que nasceu. Depois de preso pela Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), assim que escapou, comprou uma passagem de regresso à terra de Lacourte, onde permaneceu até 1977.
A visão de Auxilio, o cemitério, foi retomada por ele precisamente em 2666, romance póstumo inspirado na série de execuções de mulheres em Juarez, norte do México, na década de 1990.
Apesar de conhecer o território que, no início do século XX, durante o proibicionismo, serviu de travessia para substâncias proibidas com destino aos EUA, para escrever o romance, Bolaño contou com a ajuda do jornalista Sergio Rodrigues.
Com a cabeça a prêmio por lançar Ossos no Deserto, livro no qual mostra que o químico árabe identificado pela polícia como o responsável pelas centenas de mortes era nomeado como tal somente para escamotear a relação direta dos assassinatos com autoridades oficiais, Rodrigues forneceu farto material descritivo para Bolaño, com quem trocou correspondências até a morte.
Com 2666, Bolaño, incansável escritor contra as ditaduras civil-militares na América do Sul, exibiu como certas violências não findam com os chamados regimes democráticos.
Pouco mais de uma década após o lançamento, em 2014, a morte de quarenta estudantes de uma Escola Normal Rural de Iguala, exterminados pelas armas de autoridades do Estado ou de agentes do narcotráfico, ou pela aliança de ambos, comprovam que seu diagnóstico foi preciso.
O recente assassinato de Salvador Olmos, o Chava, como era conhecido, o anarquista atropelado sucessivas vezes por uma viatura policial em Huajuapan também comprovam. O libertário foi executado no estado de Oaxaca, terra em que nasceu Ricardo Flores Magón, espaço vital para os acontecimentos conhecidos como Revolução Mexicana.
Os cadáveres de mulheres, estudantes, anarquistas, explicitam cabalmente a continuidade das violências, característica que é do Estado, seja de seus agentes legais ou ilegais.
Pouco antes de morrer, ao ser questionado sobre qual seria sua pátria, Bolaño respondeu que não tinha nenhuma, guardava apenas “alguns instantes, certas ruas, rostos ou cenas, livros que estão dentro de mim e que algum dia certamente esquecerei”.
E assim, o escritor nascido no Chile, depois de se deslocar incessantemente, com 2666, livro sobre o México escrito na Espanha, não nos deixa esquecer que a história da América, a história dessas terras subtraídas de outros povos, é a história da construção de um imenso cemitério clandestino.

México urgente
Desde o início de 2014, as ações repressivas do Estado mexicano contra os anarquistas, em proporção nacional, e contra as experiências autônomas no sul do país (especialmente os estados de Oaxaca, Chiapas e Guerrero), recrudesceram.
Dois anos antes, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) voltou a governar o executivo do Estado. O PRI é integrante da Internacional Socialista e foi criado em 1929 para alçar oportunistas da Revolução Mexicana ao governo do Estado. É o mesmo partido que, em outubro de 1968, às vésperas dos Jogos Olímpicos do México, assassinou 300 estudantes na capital em nome da segurança e da paz dos jogos.
Para os anarquistas como Ricardo Flores Magón e Praxédis Guerrero, já nas primeiras décadas do século XX e durante a Revolução Mexicana, o problema central não era somente a ditadura de Porfírio Diaz, contra a qual se levantaram. Em qualquer governo há violências, perseguições e supressão da liberdade.
No dia 30 de janeiro de 2014, forças paramilitares atacaram a Base de Apoio Zapatista, em Chiapas, com o intuito de apropriarem-se das terras governadas pelas comunidades autônomas.
A sequência de ações repressivas levadas a cabo durante o ano atingiu outras proporções em setembro, durante uma operação policial que interceptou um ônibus de estudantes da Escola Normal Rural “Raúl Isidro Burgos”, em Ayotzinapa, Guerrero.
O ônibus seguia rumo à cidade de Iguala onde ocorreriam manifestações contra a prefeitura. Nesta região, protestos e ações contra a prefeitura e o narcotráfico incidem regularmente desde o final de maio de 2013, quando militantes camponeses desapareceram após uma manifestação duramente reprimida pela polícia, para serem encontrados, três dias depois, em uma vala comum.
A operação em Ayotzinapa aconteceu no dia 26 de setembro de 2014. Seis estudantes foram mortos durante o confronto com a polícia. Outros vinte foram feridos e encaminhados para atendimento médico e alguns conseguiram escapar. Foram detidos 43 pela polícia e, desde então, desapareceram.
Segundo uma investigação promovida pela Procuradoria do México, eles foram entregues aos Guerreros Unidos, um dos cartéis do narcotráfico que governa a região. Alguns desses estudantes teriam morrido asfixiados no trajeto, enquanto a maioria foi queimada e seus corpos desovados em um lixão no município de Cocula.
Apesar de o Estado mexicano ter culpado o prefeito, sua primeira dama e o chefe da polícia local pelo massacre, houve uma estranha coincidência: no dia 21 de setembro, a “Regeneración Radio”, tocada por estudantes anarquistas, foi invadida por seguranças do campus da Universidade Autônoma do México, na Cidade do México.
A cooperação entre a reitoria e o Estado em operações repressivas decorre desde a delação de um estudante anarquista, preso por “ataque à paz pública”, quando se dirigia a uma manifestação, em outubro de 2013.
Mesmo assim, as violências do Estado, do narcotráfico e de latifundiários não arrefeceram as práticas e a luta dos autonomistas e, entre 11 e 12 de novembro, a sede do PRI e o Congresso de Guerrero, em Chialpancingo, foram incendiados.
Dias antes, a porta do Palácio presidencial, na capital do país, foi incendiada e os arredores do aeroporto de Acapulco bloqueados, durante mais protestos.
Em meados de junho deste ano, as ações repressivas foram intensificadas. A comunidade indígena de Nochixtlán e a Coordenadoria Nacional de Trabalhadores da Educação foram atacadas pela polícia, que prendeu dezenas de pessoas, deixando outras dezenas feridas, e alguns mortos.
A prática repressiva resultou em mais manifestações por todo o país, com respaldo internacional, bloqueios e interrupção da circulação de bens e pessoas na região de Oaxaca, eventos anarquistas e formação de novas associações e espaços autônomos e libertários. México, urgente!

La impaciencia del momento actual
hunde en nuestros nervios su acicate de fuego.
Nuestros deseos se adelantan ansiosamente
al desenvolvimiento de los hechos.
La lucha tiene momentos de espectación,
que sofocan como el abrazo de un crótalo.
Queremos nuevamente descargar el brazo
sobre nuestro viejo enemigo
y nos vemos forzados a esperar
que nuestras armas adquieran el temple necesario
para que su choque sea terrible, aniquilador, tremendo.
Impacientes”. Praxédis Guerrero. Punto Rojo, 16 de setembro de 1909.

A produção da paz
Da mesma maneira que todo preso é um preso político, não há política sem uso virtual e efetivo de violências, execuções e extermínios.
A ficção jurídica criada para justificar o Estado moderno produziu um discurso capaz de fazer crer que a impossibilidade de supressão da violência nas relações de existências pretende nos levar a confiar seu exercício a um ente centralizado e legitimado em nome da defesa da sociedade.
Assim, o Estado, de posse do monopólio dessa violência, se consolida como o pacificador moderno.
Quem quer a paz, deve estar preparado para a guerra.
A história efetiva expõe que as violências que encontram no Estado sua forma acabada e reconhecida se distribuem de maneira assimétrica e hieratizada para produção de obediência, dentro ou fora do que se reconhece como instituições componentes do aparelho estatal.
A violência, ou a ameaça dela, mesmo não sendo efetivamente monopolizada pelo Estado é a prática por excelência do pensamento de Estado e de quem pensa a partir do Estado. Em outras palavras: quem promete paz está, de fato, reivindicando o monopólio da violência.
O programa governamental que criou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro foi a mais recente promessa de paz no campo do que se chama de segurança pública, cidadã e o que o valha, ou seja, segurança.
Um programa que em seu conjunto promove a pacificação combinando assistência, proximidades, comunitarismo, responsabilidades, qualidade de vida, empreendedorismo social, ações de reprogramação urbana, tecnologias sociais e computo-informacionais de monitoramento, pesquisa social, de marketing, de agências internacionais e acadêmicas. E, muita polícia repressiva militarizada e ações de policiamento do Exército e da Força Nacional de Segurança Pública.
As UPPs realizam no campo de um único programa os compartilhamentos de governança que envolve prefeitura, governo do estado, governo federal, ONGs, Institutos, Fundações, universidades, líderes comunitários, Exército, destacamentos especais e batalhões de operações especiais das polícias militar e civil, agência da ONU e do BID, mas sobretudo, a própria comunidade da favela que se torna, a um só tempo, agente, alvo e produtora do programa que é variado em sua ação, mas amalgamado pela produção de paz e segurança.
É sabido que essa governança compartilhada não funciona sem o trânsito dos ilegalismos, de maneira que milícias e comandos sempre participam (ou guerreiam por) suas ações e negociações.
Tudo isso em meio ao sonho do Brasil grande, embalado por sediar megaeventos, entrando como protagonista-sede da agenda global: Rio+20 e Cúpula dos Povos, Jornada Mundial da Juventude, Copa das Confederações, Copa do Mundo e uma Olimpíada para fechar o ciclo.
Mas entre a governança global e a gestão dos ilegalismos, também não tardaria para que corpos surgissem ou sumissem e cadáveres começassem a feder.
O primeiro corpo a chamar a atenção, por desaparecer dentro de uma UPP, foi o de Amarildo, em 2013; logo após, um vídeo flagra meninos sendo executados em uma viatura da PMERJ; outro vídeo de 2014 mostra o corpo de Cláudia Silva Ferreira sendo arrastado por mais de 300 metros também por um viatura da PMERJ; e a estas, que vieram à tona na grande mídia, seguiram notícias de meninos de 10 e 12 anos, com Patrick Ferreira de Queiroz, de 12 anos, assassinado no Méier, em janeiro de 2015, sendo alvos de certeiras balas perdidas.
Diante disso, não demorou muito para que se começasse a falar em crise e falência do programa. Porém, como a prisão, na crise e no proferido fracasso outras positividades de poder se anunciam.
Em quase dez anos, a pacificação naturalizou o uso das Forças Armadas para intervenção e gestão da segurança pública, espargindo para outros estados, como está ocorrendo agora em Natal, no Rio Grande do Norte; as ONGs, Institutos e Fundações já fazem parte da rotina das favelas e ganham destaques que vão da formação de atletas profissionais às histórias de superação pelo empreendedorismo; enfim, fracassada ou reformada a pacificação cumpriu sua missão e, agora, a crítica exercitará seu papel renovador para virtuais novos e repaginados programas.
Enquanto a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro administra a alegada crise das UPPs, outros corpos aparecem na Baixada Fluminense, corpos de pré-candidatos a vereador e/ou prefeito com mortes atribuídas à ação das milícias.
Estaria a crise e os “fatos novos” preparando a propagação do programa, ou uma nova composição de forças anuncia um fortalecimento das milícias como resultado de quase uma década de UPP?
Seja como for, a produção de incontáveis cadáveres mostra como age o Estado em sua missão de pacificador: ele é o introdutor de violências contínuas e fio condutor dos variados gestores, locais e globais, dos confrontos que não param de produzir assujeitamentos, monitoramentos e sangue: um interminável rio de sangue que corre em meio a tudo isso transbordando as margens das práticas de governo das condutas.

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