sábado, 22 de março de 2014

Machismo, a opressão primeira

Foi base para propriedade privada e capitalismo. Deu forma à Igreja. Antecede as classes sociais. Modela as instituições. Mas pode ser destruído…
Por Marília Moschovick
O machismo é uma ideia.
A ideia machista baseia-se numa classificação do mundo em objetos, comportamentos, trejeitos, desejos e ideias “masculinos” e “femininos”. O que torna essas coisas masculinas ou femininas não é, ao contrário do que se diz por aí, estarem ligadas a grupos de “homens” ou “mulheres”, respectivamente. Uma coisa não é feminina porque é feita por mulheres, nem masculina porque é feita por homens. A relação vem na mão inversa: uma coisa é feita por mulheres porque é feminina e “mulher” é uma identidade que se baseia num equilíbrio não muito exato, nem muito rígido entre essa “feminilidade” e “masculinidade” (entre outras coisinhas mais). O mesmo no caso dos homens. Uma mulher pode ser vista como “menos mulher” quando faz algo não-feminino ou “mais masculino”, e um homem pode ser visto como “menos masculino” quando faz algo não-masculino ou “mais feminino”. Uma coisa classificada como “feminina” ou “masculina”, porém, não passa a ser classificada de outra maneira quando alguém do gênero “oposto” a pratica. A ideia machista é, essencialmente, que nesse jogo de masculinidades e feminilidades, não importa o contexto, uma relação de poder rege sempre a hierarquização das coisas: a primazia da masculinidade sobre a feminilidade. A masculinidade mais “errada” sempre estará mais certa do que a feminilidade mais “certa”.
O machismo é também uma história. Longa.
Não se constroem padrões como esse da noite para o dia. O machismo não é invenção moderna. Acompanha as culturas das quais somos herdeiros há milênios. Pode ser encontrado em ainda outras mais. Em praticamente todos os tempos históricos. O machismo não nasceu com o capitalismo: o capitalismo é que foi forjado sobre um pensamento machista. O machismo não nasceu com a Igreja: a Igreja é que tomou os contornos dele. O machismo não nasceu com a propriedade privada no pré-feudalismo europeu: esse último é que se baseou nele. O machismo não tem origem, nacionalidade. Não depende do racismo nem de classes sociais para existir. O machismo está aí — porque só passamos a enxergá-lo há pouco mais de um século, contra milênios de sua existência anterior. Porque lutamos umas poucas pessoas contra ele, enquanto as estruturas mais elementares da nossa sociedade (Estado, religião, família, conhecimento, educação, escola, ciência, filosofia, indústria, classes, racismo) já nasceram modeladíssimas por ele. O machismo é a hegemonia, descritinha, sem tirar nem por.
Por isso, o machismo é sempre um sistema.
Lutar contra ele não é fácil. É preciso subverter toda uma lógica. É preciso desorganizar as bases mais sólidas sobre as quais o mundo inteiro hoje se apóia. Mover placas tectônicas, com o peso da terra, das pessoas, construções que sobre elas se fizeram. É preciso bagunçar a história, abandonar certezas, se dispor ao erro. Combater o machismo não é para amadores. Enquanto cada um e cada uma de nós se construiu e se constrói cotidianamente como sujeito, como pessoa, ele está lá. Nas visões que nos são ofertadas e das quais bebemos para elaborar novidades (nenhuma criação parte do zero, é fato). Nas definições que as palavras nos impõem, nos limites da linguagem, na necessidade de comunicação: lá vem ele, de novo. Quando nos olhamos no espelho. Tão arraigado que parece natural. Parece vir das entranhas, parece estar no DNA. E sempre que assim parecer, não se engane. É mentira. Terremotos existem.
O machismo pode ser destruído.

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