terça-feira, 9 de outubro de 2012

Oficina de bioética


Felix Guattari nos fala da emergência de um paradigma estético, ou, mais largamente, estético e ético-político, que atravessaria todas as regiões do saber e do fazer — isto é, das técnicas e das artes, das ciências, do pensamento e da política — contemporâneos.

Diz ele, em Caosmose: "O paradigma estético processual trabalha com os paradigmas científicos e éticos (...) instaura-se transversalmente à tecnociência porque os [processos de desenvolvimento desta] são, por essência, de ordem criativa e tal criatividade tende a encontrar a do processo artístico (...) tem implicações ético-políticas porque quem fala em criação fala em responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada(...) mas essa escolha ética não mais emana de uma enunciação transcendente, de um código de lei ou de um deus único e todo-poderoso (...) a própria gênese da enunciação encontra-se tomada pelo movimento de criação processual"(1).

O que era da ordem das artes e da experiência estética é assim ampliado e passa a estar presente em todas as outras ordens, a atravessar outros campos de experiência, antes definidamente separados dela. Segundo Guattari, a força do paradigma estético já estaria latente desde o Renascimento, mas tenderia a se tornar dominante agora, em função de uma propriedade nova de transparência ou transversalidade entre as várias camadas de nossa experiência.


Simondon toma
os operadores da Física Quântica como base para
desenhar uma outra ontologia.
Ele mostra como ao longo
da história da filosofia e das ciências ocidentais,
jamais se pensou o processo de individuação — isto é,
a história de como algo se torna algo e sempre se tomou o
indivíduo como já dado

A história deste paradigma como conceito filosófico, metamodelizador de práticas científicas, educativas, terapêuticas, políticas, a partir dos mesmos operadores, é uma história que se deve começar a contar a partir da obra de Gilbert Simondon, biofísico e filósofo, mestre de Gilles Deleuze.

Simondon toma os operadores da Física Quântica como base para desenhar uma outra ontologia(2). Ele mostra como ao longo da história da filosofia e das ciências ocidentais, jamais se pensou o processo de individuação — isto é, a história de como algo se torna algo e sempre se tomou o indivíduo como já dado. Isto acontece tanto na forma aristotélica que se imprime à matéria, a forma, como idéia platônica, que já sai pronta da cabeça do criador — ele chama a concepção aristotélica de tecnológica, como no atomismo, desde Demócrito e Leocipo, em que as coisas, os seres, em geral, não passam de conjuntos de átomos, que se reúnem e se dispersam, mas constituídos por algo já pronto: átomos, 'os que não têm partes', como os indivíduos, os que não se dividem.

Tudo muda com a dimensão quântica do pré-individual. O que se individua sai desse todo ou desse nada, conjunto de todos os potenciais, em transformação veloz e inidentificável, quando dois ou mais potenciais são, por acaso, içados fora do plano pré-individual e uma informação passa a circular de um a outro. Enquanto a informação se faz, e isto tem um ritmo, uma repetição criadora, algo está alí individuando. O que está individuando, no entanto, nunca deixa de ser atravessado pelos fluxos potenciais de onde surgiu, e pode incorporar esses potenciais e mutar, mudar de estrutura ou ser dissolvido, voltar ao caos de onde se originou. A forma mais rica desses sistemas físicos mutantes é a vida, o ser vivo: estruturas continuamente abertas e se replicando. Para pensar o movimento do vivo, ele cria a categoria de metaestabilidade: fala do que está num movimento constante entre o estável - a estrutura - e o instável, a mutação. Mas, Simondon mostra, o modelo da individuação não se encontra só no mundo físico e no vivo, ele também aparece no psiquismo e no coletivo humanos — não há, por sinal, individuação psíquica que não seja imediatamente coletiva. Ele se encontra, também, tanto no ser quanto no conhecer. Não há diferença entre os modos, os movimentos com que a Natureza se cria e os modos como os homens constróem seu conhecimento da Natureza, do Cosmos ou de si-mesmos. Simondon recupera um monismo ontológico como os de Duns Scotus ou Espinosa.

Num capítulo especialmente marcante de Mil Platôs, Deleuze e Guattari continuam esta história na construção do conceito de ritornelo. Mostram como os movimentos, os encontros, as seleções arbitrárias de matérias e ritmos com que a Natureza se faz a si mesma, repetem-se nos modos de territorialização dos pássaros, em muitas espécies de peixes, em todos os mamíferos; repetem-se na ordenação das primeiras formas de socius humanos, dos cantos tribais à especialização do trabalho e profissões, como nos modos e pensamento da arte; referem-se ao pensamento de artistas contemporâneos como Paul Klee, Messiaen ou Stockhausen. Física, Etologia (o estudo dos comportamentos dos animais), Etnologia e Estética trocam livremente suas matérias e operadores. A Arte não começou com os homens. Toda a Natureza, todo o Cosmos é Música. Processos de consolidação, de consistência, sempre à beira de dissoluções catastróficas, da atração por Buracos Negros. O ritornelo, em sua repetição diferencial tem como vetor, como eixo constitutivo, um movimento desterritorializante. Constituir-se súbita e arbitrariamente para sair do caos (ou não consegui-lo e ruir de volta ao caos) repetir sua forma, sua canção mágica, e partir em variações em direção a outros territórios. O único sentido de ter uma forma é poder sair dela. Tema e variações. Temas-variações e Variações-temas.(3)
 


Deleuze e Guattari
continuam esta história na construção do conceito de ritornelo.
Mostram como os movimentos,
os encontros,
as seleções arbitrárias de
matérias e ritmos com que a Natureza se faz a si mesma,
repetem-se nos modos de territorialização dos pássaros, em muitas espécies de peixes, em todos os mamíferos...


Num movimento semelhante, vemos os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela criarem a noção de autopoiese e passarem a tratar o ser vivo como processo cognitivo, ao mesmo tempo em que pensam a cognição como processo criador. Da ameba a Mozart ou Einstein, todo ser vivo é um contínuo processo criador, não de mera adaptação a um meio como pensava o funcionalismo darwinista, mas como simultânea invenção do meio e de si mesmo. Ao encontrar as diferenças no mundo — e o mundo é, por excelência diferença — , os seres vivos criam ao mesmo tempo os modos desse mundo lhes ser dado e a si mesmos, como se "sendo posta a vontade de ver, o olho fosse formado". Pois não são as condições ambientais, ou a "necessidade" que determinam a procura de uma solução como pensa o Cognitivismo, mas criar significa primeiramente o processo de determinar as condições, ou: o primeiro movimento é criar o problema. O ser vivo como autopoiético, cria continuamente a si mesmo e a seu mundo. (4)

Outro filósofo e sociólogo das ciências, Bruno Latour, criou a noção de rede para pensar os coletivos heterogêneos que, na realidade, são os responsáveis e o próprio objeto da produção científica atual.

Incontáveis mediadores operam entre a inteligência do cientista e a natureza, entre o sujeito e o objeto da investigação. Estes mediadores são intrumentos disponíveis, artigos científicos e outros documentos selecionados como pertinentes, competências tecno-científicas, mas também administrativas, dos pesquisadores, recursos financeiros destinados ao projeto por instituições de fomento ou indústrias, interlocutores científicos, parceiros comerciais etc. Todos esses elementos heterogêneos -- reais, coletivos e discursivos -- participam do processo de criação da ciência , como formula Virginia Kastrup, lembrando que, com o conceito de rede, Latour faz uma leitura empírica e pragmática da ciência(5), contra a perspectiva epistemológica que a abstraía de seu fazer efetivo e pensava-a como discurso exclusivamente comprometido com a verdade.

Latour cria a noção de 'híbrido' para falar dos objetos produzidos pelo conhecimento, no nosso trato cotidiano: não são nem os objetos naturais purificados, da ciência; nem objetos resultantes do modo determinado da organização social em que aparecem; nem objetos de linguagem, com sua forma dada pela ordem do discurso. São exatamente e necessariamente o misto destas três abordagens (6).

Kastrup lembra que o modelo das redes de Latour é inspirado na noção de rizoma, de Deleuze e Guattari, e segue o 'método' do pensar rizomático, formulado pelos dois em Mil Platôs. Este método tem como primeiro e segundo princípios os da conexão e da heterogeneidade: não importa qual ponto do rizoma pode ser conectado a não importa qual outro (...) elos semióticos de toda natureza são conectados a modos de codificação muito diversos, elos biológicos, políticos, econômicos etc, colocando em jogo não só regimes de signos diferentes, como também estatutos de estados de coisas.

O terceiro princípio é o da multiplicidade. Multiplicidade é uma entidade matemática que Bergson primeiro utilizou ao falar do caráter da duração como tempo, cuja matéria é qualitativa. Ele não cresce sem mudar de natureza. Multiplicidade é um número que não é nem uno nem múltiplo. Nem a inteireza do uno, nem a dispersão do múltiplo, ele é um todo aberto. Diz o terceiro princípio do rizoma: uma multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que ele mude de natureza.

O quarto princípio é o da ruptura assignificante: contra os cortes muito significantes que separam as estruturas ou atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido ou quebrado em qualquer lugar, ele retoma seguindo tal ou tal de suas linhas ou seguindo outras linhas (...). Há ruptura no rizoma cada vez que as linhas segmentárias explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma.

Pierre Levy, filósofo e informático, criador de um softwareAs árvores do conhecimento —cuja função é potencializar um projeto democrático em instituições de grande porte, através da completa horizontalidade na troca de informações e organização situacional de coletivos, em rede informatizada(7) , retoma esta linha em seu texto sobre as Tecnologias da inteligência.

Como os rizomas de Deleuze e Guattari, as redes de Latour (...) não respeitam as distinções estabelecidas entre coisas e pessoas, sujeitos pensantes e objetos pensados (...). Tudo que for capaz de produzir uma diferença em uma rede será considerado como um ator (...). Esta concepção do ator nos leva a pensar de forma simétrica os homens e os dispositivos técnicos. As máquinas são feitas por homens, elas contribuem para formar e estruturar o funcionamento das sociedades e as aptidões das pessoas, elas muitas vêzes efetuam um trabalho que poderia ser feito por pessoas (...) (8)

Levy mostra como tanto as máquinas informáticas são dispositivos de inteligência atuando em interface com os humanos ou permitindo redes de subjetividades cuja produção é uma inteligência coletiva, como as próprias instituições sociais — escola, família, hospital, burocracia estatal... — devem ser pensadas como máquinas com funções, memória, efeitos de inteligência determinados, em interface com as subjetividades que as 'habitam'.


Voltando a Guattari, é preciso conhecer o dinamismo de seu sistema de quatro funtores — em Cartografias esquizoanalíticas— , dirigidos tanto para a leitura de acontecimentos culturais e políticos, quanto para a prática clínica. Proposto como um projeto estético/pragmático e não como científico, este sistema é uma das ricas fontes de operadores para o trabalho clínico, como para o político ou o pedagógico, criado nos últimos anos. Seus funtores são (1) os Territórios Existenciais, i.e. comportamentos, modos de ser organizados, práticas técnicas, artísticas, amorosas, políticas, etc ¾ que se ligam aos (2) Universos Incorporais das religiões, ideologias, filosofias, ciências, teorias de qualquer gênero; e os (3) Fluxos — econômicos, técnicos, políticos, libidinais etc — com seu funcionamento maquínico, que se ligam, aos (4) phylum maquínicos, i.e., à memória e à imaginação das máquinas ¾ tanto as máquinas técnicas, quanto as sociais... (9)Os funtores se articulam nas seis direções, ou seja, não há instância determinante e instância determinada; não há infraestrutura e superestrutura, todas as dimensões interagem com efeitos diversos.

A aplicação do paradigma estético e de seus movimentos presentes nos autores citados aponta para a possibilidade de inovações na prática pedagógica. Vou esboçar algumas direções.



Varela discute
a compreensão da
aprendizagem nas várias teorias cognitivas e mostra
que tanto nas cognitivistas
quanto nas conexionistas
(baseadas na neurologia da emergência),
a aquisição de conhecimento
depende de uma representação,
ou é mediada
pela representação

A partir da compreensão de uma integração prévia entre organismo e meio e de um processo independente, criador de novas ordens no organismo - autopoiese - ao mesmo tempo rearticulador disso que se entende por meio, Varela cria a noção de 'enação'. Varela discute a compreensão da aprendizagem nas várias teorias cognitivas e mostra que tanto nas cognitivistas quanto nas conexionistas (baseadas na neurologia da emergência), a aquisição de conhecimento depende de uma representação, ou é mediada pela representação.

Na enação, ao contrário, aproveitando esse sistema de acoplamento metaestável organismo-meio, há aprendizagem sem representação. Há uma espécie de emergência de novas habilidades, de novos operadores, sem a necessidade de se representá-los (10). É muito fácil perceber esse processo no aprendizado de habilidades físicas, nos esportes, na dança ou no aprendizado de instrumentos musicais. As práticas de conjunto, com estudantes de níveis variados, por exemplo, costumam acelerar surpreendentemente a aprendizagem dos mais novos, saltando estágios considerados analiticamente sucessivos. Mas o mesmo se dará na aprendizagem de habilidades intelectuais, de construção conceitual e teórica, como experimentamos nos grupos de pesquisa que há pouco começamos a formar em nossas universidades, integrando participantes dos vários níveis de formação - alunos da graduação, mestrandos, doutorandos e seus orientadores, mestres e doutores.

A estratégia esquizoanalítica de Guattari, montada sobre os seus quatro funtores, aponta para a expectativa de movimentos emergentes de produção de conhecimento sem nenhuma ordem pre-definida, a partir da atuação em vários campos simultâneos, práticos e teóricos, de organização de grupos de interesse, de agenciamentos entre a escola e outras instâncias sociais produtivas, de serviços, de ação política ou criadora, artística, técnica etc. É evidente que isto implica mudança radical da forma-escola, de seu modo de instituição, tendo como primeiro aspecto a desmontagem das fronteiras que promovem sua segregação em relação às outras instâncias sociais.

A escola, hoje, é uma espécie de prolongamento patológico da instância familial, em que as professoras são 'tias' e onde se reproduzem tantos os índices etológicos da família (a competição mortal entre os irmãos, a seleção moral dos 'bem comportados' e dos 'rebeldes', os 'que não vão dar certo' e os 'perturbados' e 'perturbadores') tantos os modos de 'fatalizar' o ritual de passagem para a idade adulta e de reproduzir as posições sociais de classe.

Assim como Guattari critica a psicanálise pela sua fixação patológica no pequeno teatro familiar e propõe, no lugar do inconsciente familial, um inconsciente maquínico produtivo, onde estão presentes todas as instâncias sociais, culturais, ecológicas, etológicas, e maquínicas que intervêm na produção de subjetividade, a Escola deve ser espaço de agenciamento de todas estas instâncias. A questão é que os agenciamentos se fazem de modo arbitrário.

Pierre Levy propõe que as redes de computador interativas criam o suporte para novos movimentos de criação/produção de conhecimento, tornando possível o surgimento de 'inteligências coletivas', isto é, modos em que se curto-circuita a separação entre produção e distribuição de conhecimento. As duas são simultâneas. Levy fala da sinergia que move estas 'inteligências coletivas', em trabalhos em equipe, quando a proposição de um se prolonga na do outro, dos outros, em tempo real — mensagens que se ampliam/reformam/crescem/ transformam no ato da troca. O que significa isso para o ambiente escolar?

Todos esses meios, e novos operadores para a prática educativa, têm um caráter ético e político determinado; implicam mudanças na vida escolar, na formação dos professores, nos processos de administração da educação; e dependem portanto de uma mudança de mentalidade muito mais ampla, de uma verdadeira revolução ético-política que não se realiza, certamente, de forma independente, apenas no sistema educacional ou no ambiente escolar.

(1) Guattari, Felix. Caosmose, um novo paradigma estético. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro, 34 letras, 1992, 136-137.
(2) Simondon, Gilbert. L’individu et sa génèse physico-biologique. Paris, 1964.
(3) Deleuze, Gilles e Guattari, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol.4, “Do Ritornelo”, São Paulo, 34 letras, 1997.
(4) Maturana, Humberto R. e Varela, Francisco J. Autopoiesis and cognition. The realization of the living. D. Reidel, The Netherlands, 1980; A árvore do conhecimento. As bases biológicas do entendimento humano, Editorial Psy, Campinas, 1995.
(5) Kastrup, Virginia. A invemção de si e do mundo - uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Tese de Doutorado / Psicologia Clínica / PUC-SP, 1997.
(6) Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. Trad. de Carlos Irineu da Costa. Editora 34, Rio de Janeiro, 1994.
(7)Ver. Levy, Pierre e Authier, Michel. As Árvores de Conhecimentos. Trad. de Monica Seincman. São Paulo, Escuta, 1995.
(8) Levy, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. Trad. Carlos Irineu da Costa. Ed. 34, Rio de Janeiro,1993, p.137.
(9) Guattari, Felix. Cartographies Schizoanalytiques. Paris, Galilée, 1989.
(10) Varela, Francisco.
Conocer. Gedisa Ed., Barcelona, 1992
buscado em: cooperação.sem.mando

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