quinta-feira, 5 de março de 2015

hypomnemata 173

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 173, fevereiro de 2015.

Água
            Os humanos, a flora e a fauna, assim como o planeta Terra são compostos preponderantemente de água e dela dependem.
O planeta tem água potável, não potável a ser transformada por engenharias de refinamento (a custo alto, é claro), e poluída pela industrialização moderna (a custo capitalista baixo e social alto).
         Estudos contemporâneos voltados para o desenvolvimento sustentável denunciam o mau uso das águas. Ao mesmo tempo, deslocam para os consumidores a tarefa e a responsabilidade de economizar e moldar suas condutas para o bom uso da água (que resta).
         Indicam que deverá haver esforços a serem dispendidos pelos governos, indústrias e agronegócios para o aproveitamento das águas, suas nascentes, de águas poluídas e mares.
         Envolta no emaranhado das chamadas catástrofes climáticas, a questão da água em breve se transformará em um lucro a mais para o regime da propriedade. Quem tiver renda para obtê-la e financiar novos aquedutos para captar água de rios, chuvas e talvez marinha serão agregados aos proprietários.
         O bom uso recomendável da água pelas práticas da sustentabilidade transfere ao cidadão e à sua prole o dever de compartilhar a boa gestão da água enquanto governos, financistas e industriais bebem suas águas medicinais e minerais de grife. E vão poluindo o quanto podem; afinal, desenvolvimento é preciso.
         Trata-se do regime do esforço de muitos para manter a produção de alimentos, petróleo, indústria, da fome e da sede cada vez mais melhorada na medida do possível sustentável.
         Sustentável a quem? Para quem? A resposta é óbvia: uns lucram e fazem da crise um drama para anunciarem um iminente futuro trágico. A cada pobre, miserável ou obediente cidadão que cumpre as tarefas impostas na redução de seu consumo resta ficar à disposição das justas penalizações por descumprirem as leis.
         Em breve, entre usos e reutilizações de águas podres restarão aos privilegiados os majestosos oásis como os dos inovadores emirados.
         Enquanto isso, militares e diplomatas pensam em como defender (e quem sabe tomar) o ouro azul do futuro.
Lugar comum insustentável.

purificando a água
Durante a crise da água, como vem sendo afamada, expressões do grotesco nos avizinham. A última destas expressões trata sobre o uso das “águas” da Represa Billings, em São Paulo.
O grotesco revela o disforme e o horrível, mas também o cômico e o bufo, como traços modernos da existência humana. Trabalha com as excrecências não com nojo, mas como aquilo que também nos revela mundanos, ou baixos humanos.
Assim, um poeta francês, perspicaz ao falar do mal, mesmo nas flores, em um de seus poemas cita os detritos hostis como um confuso material vomitado por Paris. De outra parte, um pouco mais otimista, outro escritor francês, ao falar dos miseráveis no século XIX, acredita que a sinceridade da imundície é capaz de agradar e repousar a alma.
De um lado ou de outro, uma tragicomédia está para ser traçada com a possibilidade de uso do vômito expelido por São Paulo, através do Rio Pinheiros, cuja descarga acontece na Billings.
Independentemente da capacidade e custos de purificação deste esgoto por meio de tratamentos químicos e físicos, não se pode ignorar o fato da cidade nos devolver aquilo que expelimos por um orifício e que pode nos retornar por outro, exatamente neste sentido inverso.
O governador mandou avisar que a água estará própria para o consumo humano, mas os especialistas ainda debatem e se contradizem sobre a viabilidade de tal empreitada.
Não se sabe ainda ao certo o grau de purificação que o esgoto da Billings pode alcançar para se tornar potável. Mas não se duvida da possibilidade dos administradores públicos venderem barro por água, como já vem sendo notado em milhões de torneiras, em especial, nas periferias da cidade.
Nestas regiões que vivem no constante rodízio, a água quando vem é podre. A maioria de seus habitantes suportam a situação como fatalidade.
Se assim for, provavelmente nossa bílis tratará de identificar as impurezas da Billings e, por função que lhe é característica, retornar em vômito, aquilo que a cidade já havia vomitado.
Este é o ruminar das aglomerações urbanas.

o estado da água é o roubo pelo Estado
Cantareira pode ser tanto o “osso articulado ao úmero e ao esterno; clavícula” como um “poial para cântaros na cozinha”.
Segundo relatos dispersos, a última definição está relacionada com a terra próxima à cidade de São Paulo. Nos séculos XVII e XVIII, a região foi percorrida por tropeiros que abasteciam os cântaros de água para seguirem adiante rumo a Minas Gerais e Goiás.
Contudo, foi a partir de meados do século XIX, mais precisamente em 1863, que a mata se tornou alvo de interesse, efeito do laudo de engenheiros ingleses, encomendado pelo governo da Província, que indicou o chamado Ribeirão da Pedra Branca como o ideal para a captação de água para o abastecimento de São Paulo.
Uma década depois foi criada a “Companhia Cantareira e Esgotos” (1877) e nos últimos anos do século, sob a argumentação de ampliar o abastecimento e proteger as nascentes, o Estado desapropriou parte da área para a criação da “reserva florestal da Cantareira”.
Se, no século XIX, parte da denominada Serra da Cantareira tornou-se propriedade do Estado, no fim dos anos 1960, durante a ditadura civil-militar, este território foi ampliado com a construção de diversas represas na bacia do Rio Piracicaba, formando o chamado “Sistema Cantareira”.
Em 1968, concomitantemente à criação da Operação Bandeirante (OBAN), que intensificou a perseguição, prisão, tortura e assassinato sistemático conduzido pelo Estado contra homens e mulheres identificados como subversivos, o governador Roberto de Abreu Sodré criou a COMASP (Companhia Metropolitana de Águas de São Paulo) e o chamado “Plano de Desenvolvimento Global dos Recursos Hídricos das Bacias do Alto Tietê e Cubatão”.
Cinco anos depois, por meio da Lei Estadual n.119, assinada por Laudo Natel, a fusão da COMASP com outras sete empresas resultou na criação da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo).
Como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, o Sistema Cantareira fez parte da política levada a cabo pelo governo de Garrastazu Médici, garantindo o banho de parte da população de São Paulo foi garantido à custa do sangue de inúmeros resistentes à ditadura e da morte de inúmeros rios entregues à poluição.
Diante da chamada “crise hídrica”, o que ninguém comentou foi precisamente que a “crise” é a própria história da água transformada em propriedade, desde o século XIX, passando pela ditadura civil-militar, criação do Sistema Cantareira e da concessão à SABESP (renovada, em 2004, durante a democracia) dos chamados serviços públicos de saneamento básico. Em 2013, seu lucro líquido foi de 1,92 bilhões de reais.
Se, no século XIX, a água que corria pelos rios e matas se tornou propriedade do Estado, a partir do século XXI, ela também foi adquirida pela indústria, empresas privadas de saneamento e investidores em agronegócios.
Como expôs o Nu-Sol na flecheira libertária: “o que o governo não se ocupou em divulgar, até agora, é que grande parte do consumo de água (92% em países em desenvolvimento e 90% em países desenvolvidos) é de setores da indústria ou agronegócio (...). Se o racionamento for necessário, você terá que poupar de qualquer maneira. Se você se acostumar a poupar desde já – em nome do bem comum – a chance de revolta numa situação mais crítica, também são quase nulas. Essa é a matemática do (re)banho” (http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira358.pdf).
Entre 2014 e 2015, as campanhas criadas pelo Estado são menos para a garantia da água do que para perpetuar o roubo do curso de certos rios e responsabilizar os chamados consumidores pela possibilidade de falta d’água.
Deste modo, pretende-se estimular cada cidadão a se tornar um chamado “guardião das águas”, apto a monitorar e denunciar o vizinho quanto ao desperdício de água.
Certos anarquistas, como os editores do periódico A vida, em 1914, já alertavam que o roubo de riquezas como as águas, os rios, os mares, a terra, só podia se efetuar pela submissão de quem entregava a própria sobrevivência para se tornar defensor daquele mesmo responsável por sua miséria: o Estado.
O que é produzir?
— É criar uma riqueza.
O que é riqueza?
—É tudo que pode ser útil ao homem.
Então o sol é uma riqueza.
— Sim, como o ar, a água, os peixes, etc.
Mas o sol não é produzido pelo homem.
— Não. Por isso se chama uma riqueza gratuita.
Há outras riquezas gratuitas?
— O ar, a chuva, os rios, os mares.
A terra será uma riqueza gratuita?
— Deveria sê-lo, porque é a matéria natural da produção das riquezas minerais e orgânicas. Mas não é.
Porque não é?
— Porque é possuída por alguns homens em prejuízo da maioria dos homens.
Quem mantém essa propriedade particular?
— O governo, isto é, alguns homens que pretendem dirigir os outros homens.
Qual o meio de que lançam mão para tal fim?
— A lei, e para garantir a lei, o soldado.”

Encarar a chamada crise, portanto, é desvelar que o estado das águas é efeito direto de seu roubo pelo Estado. Não há saídas senão a invenção de outros modos de lidar com a água. Alguns anarquistas experimentam isso, são suas outras histórias até o presente.

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