sábado, 13 de julho de 2013

Os perigos do Estatuto do Nascituro


Já aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação e aguardando designação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o Estatuto provocou a indignação de movimentos sociais ligados à defesa dos direitos humanos. Se aprovado, a mulher estuprada que viesse a engravidar seria submetida à tripla humilhação de (1) ter sido agredida sexualmente, (2) ser coagida pelo Estado a carregar no ventre as lembranças de ato tão nefasto, e (3) conviver com o agressor, que seria obrigado a pagar pensão à criança.


Segundo ela, o Projeto de Lei 478/2007 representa um gravíssimo retrocesso na legislação brasileira, visto que "a interrupção da gravidez no caso de estupro ou de risco à saúde da mulher é um direito garantido desde 1940". Além disso, Dulce considera que o Estatuto fere princípios fundamentais da Constituição brasileira, pois "solapa a laicidade do Estado, desconsidera a mulher como portadora de direitos sobre si mesma e atenta contra a liberdade de expressão, criminalizando as pessoas que defendem a legalização do aborto."

As reivindicações daqueles e daquelas que saíram às ruas exigindo mais autonomia de escolha sobre o próprio corpo não podem ser tratadas apenas em um pequeno artigo, pois seria leviano tentar abordar tantos anseios e concepções de liberdade em tão pouco espaço. Deixo isso para outras ocasiões. No entanto, com o exame do Estatuto do Nascituro é diferente: argumentos já presentes no senso comum dão conta de jogá-lo por terra, não pela natureza de suas questões, mas sim pela sordidez de suas respostas. 

A verdadeira motivação desta crítica é que hoje no Brasil algumas leis que versam sobre nossos corpos estão sendo elaboradas por uma bancada de congressistas com a visão deturpada pela fé e a vontade de aparecer na mídia sensacionalista a qualquer custo. Se não nos mantivermos combativos e nos silenciarmos diante de tais absurdos, podemos pagar um preço muito alto. 

O termo nascituro vem do latim e, de acordo com o dicionário Houaiss, significa "aquele que vai nascer". O PL 478/2007 classifica como nascituro qualquer óvulo humano fecundado por um espermatozóide, mesmo que o processo tenha sido realizado in vitro e não tenha sido inseminado. Diversas vezes, "bebê", "ser humano" e "embrião" são igualados ao nascituro, sem qualquer tipo de argumentação que sustente tal afirmação. 

A proibição do aborto em caso de estupro e a "bolsa-estupro"

O Estatuto do Nascituro pretende a proibição do aborto em caso de estupro. Se o PL for aprovado, a mulher estuprada que viesse a engravidar seria submetida à tripla humilhação de (1) ter sido agredida sexualmente, (2) ser coagida pelo Estado a carregar no ventre as lembranças de ato tão nefasto, e (3) conviver com o agressor, que seria obrigado a pagar pensão à criança.

Nesse ponto, nos deparamos com uma questão complexa: muitos podem considerar o nascituro um ser humano que deve ter seus direitos garantidos. Outros podem afirmar que de humano ele nada tem. Mas a questão que realmente importa aqui é: a mulher é detentora de direitos, entre os quais escolher se o fruto de uma agressão sexual que está se desenvolvendo dentro dela deve ou não continuar a ser gerado. Por que um nascituro, uma entidade controversa no que diz respeito a seus direitos, possuiria prevalência de direitos em relação à mulher, cidadã já constituída e que pode escolher? 

O fim da fertilização in vitro e de pesquisas com células tronco


"Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos 'in vitro'''(Art 2°). O Estatuto que prevê a "proteção integral" do nascituro não permitiria mais as inseminações artificiais ou pesquisas com células-tronco embrionárias, e prevê de 1 a 3 anos de prisão a quem "congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de experimentação" (Art. 25). Não que apresente em seu texto qualquer tipo de reflexão filosófica ou científica acerca do que é a vida; pelo contrário, ele se baseia na afirmação tácita de que o óvulo fertilizado in vitro é um "nascituro" e deve gozar de todas as proteções decorrentes desse fato. 

Não há como argumentar contra a proposta do Estatuto pois os próprios autores (Luiz Bassuma e Miguel Martini, à época deputados respectivamente do PT/BA e do PHS/MG) não realizaram no texto do projeto nenhuma que pudesse ser contra-argumentada. Logo, a simples constatação de que não se pode conferir a uma célula concebida in vitro "a garantia da dignidade da pessoa humana, nem a garantia da inviolabilidade da vida, pois, segundo acredito, o pré-embrião não acolhido no seu ninho natural de desenvolvimento, o útero, não se classifica como pessoa", como afirmou a ex-ministra do STF, Ellen Gracie, é suficiente para derrubar as pretensões de proibição pretendidas pelo estatuto.

A proibição do aborto em caso de anencefalia

O artigo 10º pretende que seja "vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro, privando-o da expectativa de algum direito, em razão do sexo, da idade, da etnia, da origem, da deficiência física ou mental ou da probabilidade de sobrevida." Trocando em miúdos, este artigo visa a proibição do aborto dos fetos anencéfalos. 

Não há nenhum tipo de argumentação dentro do Estatuto sobre casos de anencefalia propriamente ditos. Poderíamos aqui argumentar sobre os danos à saúde física e mental que podem decorrer da obrigação de carregar no ventre um feto condenado à morte. Porém, mais uma vez, diante da falta de articulação dos autores, podemos lançar mão de um argumento rasteiro: interromper a gestação de um feto anencéfalo não significa "permitir a prática do aborto. Essa é outra questão, que poderá vir a ser submetida a esta corte em outro momento. Se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos da gestante", como afirmou o ministro do Supremo, Celso de Mello, por ocasião da decisão do STF de que a interrupção da gravidez no caso de anencefalia não poderia nem mesmo ser considerada um aborto.

Atentado contra a liberdade de expressão

Segundo o artigo 28°, "fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática" poderá render de seis meses a um ano de prisão. Manifestantes que participassem de atos como o que ocorreu em São Paulo estariam sujeitos à prisão pelo simples fato de defenderem uma visão de mundo em relação aos direitos das mulheres diferente daquela dos setores mais conservadores da sociedade.

Riscos para a saúde da mulher


Uma legislação sobre o aborto mais severa do que a já existente é um retrocesso para as políticas públicas de saúde da mulher. 

A gestante que tivesse problemas na gravidez poderia ter receio de procurar tratamento por ter causado "culposamente a morte de nascituro", como prevê o artigo 23 do Estatuto. A pena estipulada é de 1 a 3 anos de detenção daquele que tenha assumido condutas de risco que concorressem para a causa do aborto, mesmo sem a intenção de matar o feto. Assim poderia ocorrer com uma gestante dependente química que, por medo de que sua doença fosse criminalizada pelo Estado, não procuraria o serviço de saúde para tratar de seus sintomas.

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