sexta-feira, 5 de julho de 2013

hypomnemata 157

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 157, junho de 2013.
Em movimento...
            Há uma enorme diferença entre se posicionar como apolítico e anti-político; assim como há diferenças entre ser apartidário e anti-partidário. A política é o fim; a política é um fim. Reino das negociações, dos acordos, da sistematização da violência e efetivação da dominação como condução das condutas. Ignorar a política é entregar-se à condução; não combatê-la é aceitar passivamente o governo.
Não proteste, desfigure!
            Lutar contra os partidos e a lógica das representações é recusar todo léxico reivindicativo, negar toda lamúria dos que se sentem enganados e abandonados pelas autoridades e seus representantes. Quem pede saúde, educação, transporte com o adjetivo de público, confunde o público com estatal, quer Estado. Essas reivindicações clamam por Estado; por isso, cantam o hino e hasteiam bandeira. Até 13 de junho não era disso que se tratava, estava em jogo a forma de se deslocar pela cidade.
            Uma crítica difusa da violência que iguala a violência do Estado e da polícia às ações de depredação dos manifestantes fez tudo virar um saco de gatos por um futuro Brasil melhor.
O resultado, nas ruas e nos estádios, foi demonstrar a vontade de mudança cantando o hino do Brasil e levantando bandeiras. Todos os “brasileiros juntos” por um país melhor, sem corrupção e com melhores condições de vida.
É preciso deixar algo bem claro: quem carrega uma bandeira do Brasil, levanta mais de 500 anos de mortes, massacres, etnocídios e genocídios.
Orgulho de ser brasileiro? Será?
Veja alguns pontos, mais ou menos dispersos, do que pode ser associado a esse nome que dizem ter acordado (na ambiguidade entre levantar-se e buscar um novo acordo):
Brasil colônia: genocídio de centenas de milhares de indígenas, loteamento de terras para os senhores e subserviência à metrópole;
Brasil império: uma independência declarada pelo filho do rei da metrópole, décadas de escravidão, casas grande e senzalas, último país das Américas a abolir a escravidão, ferida aberta de milhares de negros arrancados de suas terras e aqui massacrados;
Brasil república: massacre dos movimentos operários de imigrantes anarquistas, leis de extradição, como a Adolpho Gordo, massacre da grande greve de 1917, ataques com bombas contra escolas racionalistas, criação do campo de concentração de Clevelândia do Norte, criação do código de menores Mello Matos;
Brasil estado novo: DEOPS, Filinto Müller, mais repressão ao movimento anarquista, perseguição de opositores do governo, criação da CLT, a versão brasileira do fascismo trabalhista italiano;
Brasil da ditadura civil-militar: declaração de crianças como questão de segurança nacional, AI-5, milagre econômico, anos de chumbo, tortura e pra frente Brasil...
Cada um que conhece a história que aumente a lista e saiba que a bandeira e o hino representam esse banho de sangue. Na democracia recente, não se esqueçam do Massacre do Carandiru, Massacre da Candelária, Eldorado dos Carajás, os meninos e meninas violentados nos lares das classes altas e baixas, os castigos e controles escolares, os sistematicamente torturados em batidas, vielas, ruas, favelas e delegacias, FEBEM e Fundação Casa, as execuções de maio de 2006, Pinheirinho, Cracolândia e mais um monte de etc. A violência policial não é exclusividade de sua versão militar, é uma prática policial; a truculência contra os manifestantes não foi uma exceção, um erro, é sua prática primeira e inerente.
Para ficar num passado bem recente e de situações semelhantes, muitos que apanharam do Choque nos dias 11 e 13 de junho de 2013 já conheciam, na carne, a truculência policial. Se violência policial te incomoda, lute para aboli-la. Polícia civil, militar e federal é sinônimo de violência.
Ainda assim, tanto a polícia, quanto os pacíficos carregadores de bandeiras do Brasil seguindo as narrações e relatos da mídia, insiste em chamar os ativistas radicais de vândalos, desordeiros, anarquistas e irresponsáveis.
Vândalos?
Talvez. Este nome designa saqueadores que apavoravam o poderoso Império Romano. Os que assim são chamados entre os atuais manifestantes de rua atacam:
a) vitrines de agências bancárias: uma bobagem diante da violência e do roubo que os bancos praticam cotidianamente; o que é um vidro quebrado, diante do que é um banco?;
b) postos policiais: não há comparação, em termos de violência, diante da violência de existir polícia; querem acabar com a violência?, comecem abolindo a polícia;
c) prédios da prefeitura e assembleias: ora, o Estado e suas instituições, por definição, são a concretização do monopólio da violência. Logo, não há competição em relação aos manifestantes.
Fora isso, há os infiltrados. E que fique claro que infiltrado é P2, polícia disfarçada que insufla atos para justificar a violência policial. E tanto faz se esse P2 é da polícia de Estado, da polícia organizada, ilegalmente, nas prisões e periferias de São Paulo ou pau mandado dos magnatas do transporte. Se há uma resposta à violência organizada quando se ataca os alvos acima descritos, quando se ataca outros lugares, cabe ficar atento.
Anarquistas? Alguns são declaradamente. Vejamos...
Proudhon, o homem dos paradoxos e instaurador da anarquia, anotou na década de 1840:
“a propriedade e a realeza estão em demolição desde o começo do mundo; assim como homem procura a justiça na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia.
Anarquia, ausência de mestre, de soberano, tal é a forma de governo do qual nos aproximamos todos os dias e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos”.
Os eventos das últimas semanas deixam claro que a propriedade e o Estado são os que detonam a violência e a desordem. A lei é criadora do crime. A propriedade, o princípio do roubo. O Estado, a violência sistematizada. Se a maioria dos manifestantes fossem mesmo anarquistas, a violência estaria com os dias contados. Acontece que a maioria clama por moralidade, vingança, ressente-se como um amante enganado. Essa violência, somada ao clamor por ordem e pelo Estado, pode tomar outras proporções.
É preciso ampliar a revolta!
Revolta é impulso de vida. O escravo, quando liberto, busca dar forma a sua liberdade e diz não aos que querem governá-lo. Na luta se faz homem livre.
Provocar o ingovernável.
O governo produz disputas e guerras.
O trabalho, a paixão, o prazer, o tesão de cada um, busca, em associação, produzir vida, inventar liberdades, resistir aos poderes. Não busca a segurança, mas o perigo como potência, reconhecendo a finitude da vida e sua beleza.
A vida como batalha diária que não busca o extermínio, mas o exercício de sua potência como revolução permanente, em combate ao poder onde ele estiver, seja em qual forma se apresente.
Nesse momento é preciso estar atento às formas de nossa liberdade, não esquecer que no século XX a maioria sempre esteve ao lado dos tiranos e dos dominadores; que o nacionalismo ampliou e regrou o racismo de Estado; que ditaduras foram instituídas para “salvar” as democracias.
A liberdade não é um valor, é uma prática!
Ampliar as possibilidades, animar as multiplicidades, multiplicar as descentralidades e combater na luta os moralismos e os anúncios de salvação.
Uma coisa é certa: ninguém sai vivo daqui.
Violento é o Estado; arruaceiro é o governo e seus agentes oficiais e extra-oficiais.
Quem defende a bandeira e canta o hino, saúda mais de 500 anos de assujeitamentos e extermínios.
Que a insatisfação se transforme em revolta;
Que a mudança aponte para ampliação da série liberdade.
Que os jovens que iniciaram essas ondas de insatisfação no começo desse século XXI encontrem uma forma de se desvencilhar dos fantasmas políticos do século XIX e das normalidades genocidas do século XX.
Por um mundo sem violência!
Leia-se: sem polícia, sem Estado, sem propriedade, sem deuses, mestres e amos!

depois dos R$ 0,20
1.     Os analistas críticos alertam para a guinada conservadora;
2.     O movimento mostrou aos analistas o declínio da representação pelos partidos políticos e seus arrebatamentos neoliberais diante das luzes televisivas, assemelhando anarquistas e fascistas;
3.     O movimento mostrou o efeito totalizante da política petista de governo com suas variadas e híbridas coalizões para consolidar-se na sombra do perfil de Lula repaginado;
4.     O movimento foi capitaneado pelo MPL (Movimento Passe Livre) em torno da redução da tarifa do transporte público que é propriedade de empresários; o próprio MPL se recusou pautar o passe livre para estudantes, como meio para exigir, posteriormente, a gratuidade dos transportes;
5.     O MPL pensa em longo prazo, por agenda e metas: são jovens com cabeça institucional dirigida para avanços, ação mediadora, consolidações e, quem sabe, poder aproximar-se de um novo partido mais coerente com a comunicação computo-informacional e à confortável convocação eletrônica à participação;
6.     Os analistas preferem ver as manifestações e os protestos recentes no planeta adentro relacionados a 68; eles pensam por semelhanças;
7.     Os reacionários se apresentam e cantam pelas ruas, avenidas, estradas e estádios o hino nacional: querem garantias de segurança para sua ascensão social;
8.     Os miseráveis saqueiam; eles não querem políticas públicas, mas bens de consumo;
9.     No início todos foram taxados de vândalos; depois a mídia e os analistas rapidamente definiram como vândalos a minoria numérica no movimento: culparam os saqueadores e depredadores dos espaços públicos (incluindo as fachadas de bancos);
10. Os analistas não se dedicaram a caracterizar os vândalos e dentro desta categoria estavam, sem dúvida, os conservadores e fascistas procedentes das variadas classessociais;
11. O movimento, capitaneado pela palavra de ordem e pressões do MPL, demorou a avizinhar-se do subúrbio e quando lá chegou foi pelo seu lado vândalo, doidão por bens de consumo; agora, inicia-se uma tentativa de movimentação nas periferias;
12. Os políticos assistiram, mantiveram a retórica democrática e o primordial: apelaram para a defesa da sociedade pela segurança policial;
13. A polícia exercitou-se continuamente e, por fim, assistiu e acompanhou a marcha de protestos derivados como faz regularmente há mais de uma década; entrou em ação para enfrentar os vândalos: quando o alvo mudou, os seus exercícios se refizeram e a juventude ordeira feliz cantou mais uma vez o hino e demonstrou mais do que sua simpatia pela polícia, brindou-a com aplausos;
14. No final, resta certo susto pela presença dos fascistas, de grupos paramilitares, de delatores e infiltrados sempre alertas para faturarem com a possível fratura na democracia e proporem um golpe de Estado;
15. Os políticos embolorados mal pronunciaram notas oficiais; não estavam no movimento, mas representados por seus militantes embandeirados, que no final acabaram expulsos pelos reacionários exigindo uma só bandeira, a da ordem e progresso;
16. Os analistas insistem em crise da representação, indicam variáveis psicológicas pertinentes, estimulam a “hora da luta” por reformas, creem em uma guinada que não seja conservadora; os analistas não sabem pensar o movimento sem lideranças;
17. No movimento prevaleceu a luta genérica contra a corrupção; ele foi incapaz de estabelecer a relação entre corrupção e Estado, a necessidade de corrupção para que o capital cresça e se fortaleça, a relação entre capital, políticos e partidos, a crise de representação dos trabalhadores, que durante o tempo todo apenas pegaram trens, metrô e ônibus para seguirem obedientes ao trabalho;
18. O movimento não chegou aos lugares de trabalho; refez o itinerário empreendedor dos empregos, viveu confortavelmente os protestos pela internet e as convocações aos disponíveis a comparecer às marchas; o movimento em suas várias facções não fez da internet meio para atrair os trabalhadores obedientes que frequentam hospitais e escolas públicas e são massacrados diariamente pela polícia: pretendeu falar por eles e empreender a si mesmo;
19. O movimento foi a representação dos passivos; satisfez-se em ser representação de jovens insatisfeitos exigindo a redução dos R$ 0,20; neste ponto o MPL venceu. Até quando?;
20. As cidades ficaram surpresas e reviradas apesar dos congestionamentos de tráfego permanecer os mesmos; o MPL venceu também o marasmo; mas será que sua forte presença modificaria o previsível itinerário das marchas e protestos que desfilam com autorização dos governantes e acertos com a polícia?;
21. Muitos outros militantes de movimentos estiveram presentes e não podem ser dissolvidos no conjunto ou identificados como a minoria de vândalos; no movimento havia os mais radicais e libertários, os partidários, os apartidários democratas e os antipartidários, compreendendo o leque que vai dos fascistas aos anarquistas, com a diferença que não se assemelham em nada;
22. A democracia faz emergir suas próprias incapacidades políticas, seus direitos assimétricos, a representação ficcional, os pequenos partidos, a sonolência dos grandes partidos, os negócios de governos, a corrupção mais ou menos transparente, enfim, escancara sua incapacidade de responder à liberdade senão pela segurança liberal e capitalista;
23. A democracia é o regime que propicia formas de liberdade anarquistas;
24. Mas o cidadão quer segurança para si e contra os outros e por isso ainda é incapaz de questionar a pertinência da polícia; se não houvesse polícia haveria a minoria de vândalos? Em nome da segurança se exige polícia e suas desejadas ações futuras;
25. Os desfiles pelo centro das cidades talvez se combinem ou comecem a ceder lugar aos movimentos fortes e ativos procedentes dos subúrbios para onde são destinados os restos dos transportes, saúde, educação, lazer e que os mantêm obedientes às exigências do trabalho e conformados no amor à periferia;
26. O que virá dependerá dos jovens física e mentalmente dispostos ao novo e não à restauração da lamúria com reformas imediatas; é “hora da luta” sim, sabendo, de antemão, contra o que e quem lutar;
27. Ninguém precisa de líder ou representante!;
28. O transporte público continua a mesma merda com o barateamento de R$ 0,20; idem à educação, à saúde, e ao modo de vida triste;
29. Cuidado com os infiltrados: eles são policiais e cidadãos-polícia, fascistas e francos atiradores, milícias paramilitares e encapuzados instigadores, enrolados em bandeira nacional rasgando e queimando bandeiras de outros partidos, metendo pauladas e porradas em libertários; eles querem te governar;
30. Eles excitam a paz pelo confronto inesperado: como sempre a sua paz existirá pelo extermínio dos outros e atuam em sintonia com interesses empresariais e desegurança pública; são agentes do empreendimento em monitoramentos;
31. Durante os dias comuns os analistas críticos se esforçam para matar 68; mas quando aparece o insuportável eles recorrem com a fidalguia acadêmica a 68 como a origem de tudo que houve ou há de novidade; até mesmo quando não há nada de 68 em um movimento como este que eclodiu em várias cidades brasileiras, coincidentemente com a Copa das Confederações;
32. Toda vez que a paz foi declarada abriu-se um novo confronto!;
  1. Os empresários intocados assistem pelos seus deslumbrantes equipamentos eletrônicos o estado das coisas.

E segue a vida...
 E não há coisa melhor do que ser brasileiro!
Brasileiros que vivem na opulência, desfrutando de tudo quanto é belo e indispensável à vida, e brasileiros que passam uma vida de cão, morando em choupanas infectas, sem muitas vezes um pão para dar ao filhinho estremecido que lho pede banhado em lágrimas.
Brasileiros, senhores? Brasileiros, escravos? Uns morrendo de fome, outros de indigestão.
E não há coisa melhor do que ser brasileiro!
Estás doente? Aqui tens a Santa Casa. És mendigo? Ali tens o asilo. Dormes na rua? Tens, além, aquela outra infâmia que é o Albergue Noturno. És ladrão? Assassino? Vadio? Sem que sejas responsável pelo seu crime? Lá está a cadeia, onde vão perverte-te ainda mais.
E não há coisa melhor do que ser brasileiro!
Conclui-se então que não há coisa pior do que ser burro!
“Maluquices”. Um Grupo de Alienados. In Guerra Sociale, São Paulo, ano II, nº 32, 1º setembro 1916.

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