sábado, 1 de dezembro de 2012

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a quarta aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).

Na aula de hoje, começaremos a leitura de História da loucura através do comentário de seu primeiro capítulo, “Stultifera navis”, e de algumas questões presentes no segundo capítulo, “O grande internamento”.Este comentário do segundo capítulo será seguido mais de perto na próxima aula através, principalmente, da reconstituição do debate entre Derrida e Foucault a respeito das relações entre cogito e loucura. Neste sentido, as leituras para a próxima aula serão, além do capítulo em questão de História da loucura, “Cogito e história da loucura”, de Jacques Derrida e os textos “Meu corpo, este papel, este fogo” e “Resposta a Derrida”, escritos por Foucault em 1972.
            Até agora, nós vimos algumas coordenadas gerais a respeito da maneira com que Foucault se insere naquilo que poderíamos chamar de tradição da “epistemologia histórica” francesa, esta cujos nomes principais são Bachelard, Canguilhem, Koyré e, de uma maneira muito particular, Politzer. Esta inserção visou evidenciar como, para Foucault, a tarefa filosófica da contemporaneidade era solidária de uma epistemologia. Pois a reflexão filosófica seria fundamentalmente reflexão epistemologia, quer dizer, reflexão historicamente orientada sobre a constituição de objetos do discurso científico. No entanto, esta epistemologia histórica não era resultante apenas da submissão da epistemologia à história das ciências. Havia ainda uma clara articulação que visava inserir tais reflexões sobre a história  das ciências em um quadro mais amplo de história das idéias, dos sistemas filosóficos, religiosos, em suma, de uma história geral das sociedades.

Mas se o pensamento científico não forma uma série independente, mas está ligado a um quadro mais amplo de idéias historicamente determinadas é porque, dirá Foucault, a reflexão epistemológica não deve se perguntar apenas sobre os poderes e direitos de técnicas e proposições científicas que aspiram validade, mas deve esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade e as condições de exercício que se encarnam em técnicas e proposições, assim como se encarnam nas outras formações discursivas que compõem o tecido social. Esta articulação entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padrões de racionalização permitirá a Foucault afirmar que o terreno estava aberto para a transformação da epistemologia em linha de frente da crítica da razão. Bastava um movimento localizado, porém prenhe de conseqüências. Um movimento que consistia em retirar o solo realista sobre o qual a epistemologia se movia (e que assegurava ainda uma direção cumulativa do progresso científico), isto em prol da compreensão do progresso científico como uma sucessão descontínua de discursos, historicamente limitados, sobre o mundo. Tal crença permitia a Foucault afirmar:

A história das ciências não é a história do verdadeiro, da sua lenta epifania, ela não saberia pretender contar a descoberta progressiva de uma verdade sempre inscrita nas coisas ou no intelecto, salvo a imaginar que o saber atual possui enfim tal verdade de maneira tão completa e definitiva que ele pode medir o passado a partir dela[1].

No entanto, uma colocação desta natureza deixa em aberto uma questão maior: pois a história das ciências  não pode negligenciar o problema da relação às expectativas de descrições verdadeiras de estados de coisa. Foucault sabe disto, ele sabe que a referência ao verdadeiro e ao falso é peça fundamental da especificidade do discurso científico. Mas ele insistirá se trata, fundamentalmente de compreender a história das ciências como:

a história dos ´discursos verídicos´, ou seja, dos discursos que se retificam, se corrigem e que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elaboração finalizada pela tarefa do “dizer verdadeiro”[2].

Nós vimos como isto levava Foucault a transformar a epistemologia em algo como uma “contra-história da ciência”, uma análise dos processos de implementação de critérios discursivos de verdade, de construção de limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vistas o desvelamento da maneira com que padrões históricos de racionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas operações.
No interior do campo de reflexões epistemológicos, vimos ainda como Foucault privilegiara, desde o início, a análise das práticas médicas e clínicas. De fato, a constituição da clínica é o espaço privilegiado para Foucault pensar esta epistemologia crítica que logo ganhará a forma de uma arqueologia. Vários são os livros dedicados ao assunto (Doença mental e psicologia, História da loucura, O nascimento da clínica), assim como vários serão os cursos do Collège de France (O poder psiquiátrico, Os anormais). Devemos então nos perguntar: qual a razão de tal predomínio?
Vimos na aula passada como Foucault procurava mostrar como a discussão sobre decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico são, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Elas se inserem em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica. A distinção entre normal e patológico, entre saúde e doença é o ponto mais claro no qual a razão se coloca como fundamento de processos de administração da vida, como prática de determinação do equilíbrio adequado dos corpos em suas relações a si mesmos e ao meio ambiente que os envolve. No caso da distinção entre saúde e doença mental, vemos ainda como a razão decide, amparando práticas médicas e disciplinares, os limites da partilha entre liberdade e alienação, entre vontade autônoma e vontade heterônoma. Tudo isto nos explica porque Foucault compreender a reflexão sobre a anatomia da clínica como setor privilegiado para a compreensão do impacto e das estratégias dos processos de racionalização.
Dentro deste contexto, a constituição de uma “história da loucura” é procedimento fundamental. De fato, História da loucura é um livro de epistemologia. Trata-se de expor o lento processo de transformação da loucura em “doença mental”, em objeto de um saber psiquiátrico e psicológico produzindo, com isto, as condições de possibilidade para o advento das positividades das ciências clínicas do mental. Processo este que, não por acaso, tem seu momento decisivo com o advento mesmo da modernidade; isto ao menos se aceitarmos esta maneira foucauldiana de definir a modernidade como o que advém no final do século XVIII, ou seja, a partir da constituição de uma episteme que tem na guinada transcendental kantiana, no advento das ciências humanase na constituição do “homem” como duplo empírico-transcendental, seus dispositivos maiores. Veremos o sentido de cada um deles com clama quando for questão do comentário de As palavras e as coisas. De qualquer forma, guardemos o fato de que, para Foucault, tudo se passa como se o advento da modernidade fosse solidário da transformação da loucura em doença mental. O que tal transformação pode significar, eis um dos objetivos maiores do livro.
Uma coisa, no entanto, é certa. O que veremos, em História da loucura, é uma contra-história da ciência. Pois se trata de expor todo o processo histórico de constituição de categorias e de objetos de ciências que aspiram positividade, mas tal processo não será mais a narração das descobertas e experiências bem-sucedidas. Ele será a narração da exclusão como condição para o advento de critérios de normalidade e de normal, ela será a narração da maneira com que julgamentos morais vão se infiltrando, muitas vezes a toque de trombeta, em tratados técnicos e práticas que aspiram validade científica. Uma narração bem descrita por Foucault nos seguintes termos, no prefácio à primeira edição de História da loucura:

Poderíamos fazer uma história dos limites – destes gestos obscuros, necessariamente esquecidos desde que realizados, através dos quais uma cultura rejeita algo que será para ela o Exterior; e, ao longo de sua história, este vazio profundo, este espaço branco graças ao qual ela se isola as designa tanto quanto seus valores. Pois tais valores, ela os recebe e os mantém na continuidade de sua história; mas nesta região a respeito da qual gostaríamos de falar, ela exerce suas escolhas essenciais, ela opera a partilha que lhe fornecerá o rosto de sua positividade; lá se encontra a espessura originária a partir da qual ela se forma[3].

De fato, a afirmação não poderia ser mais clara. A verdadeira história da razão moderna é a história dos seus limites, da constituição do que deve funcionar como seu Exterior absoluto, no qual ela não mais se reconhece, mas que ao mesmo tempo ela criou sob o véu do esquecimento. Assim, a história da loucura será a história de uma “conjuração”, de um ”gesto de razão soberana” através do qual os homem “aprisionam seu vizinho, comunicam-se e se reconhecem através da linguagem sem perdão da não-razão”[4]. Daí porque a relação razão-desrazão seria uma das dimensões de originalidade da cultura ocidental.
Desta forma, Foucault pode afirmar que as condições da doença mental não serão encontradas nem na análise da evolução orgânica, nem na compreensão da história individual, nem na situação existencial do ser humano. Até porque, a doença mental só teria realidade, valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal. As leis psicológicas, base para  a partilha entre o normal e o patológico em saúde mental, são, ao menos segundo Foucault, sempre relativas a situações históricas determinadas.
            Aparentemente, estaríamos com Foucault diante de um certo relativismo historicista que definiria a doença mental a partir da norma positivamente enunciada pela média fornecida pelo social. Ou seja, a doença mental seria definida de maneira negativa como desvio em relação à normal e de maneira virtual como possibilidade do comportamento não sancionada socialmente. Mas Foucault quer complexificar esta relação entre norma e loucura. Ele lembra, por exemplo, que encontramos situações nas quais as doenças são reconhecidas como tais, mas tê-las é, ao mesmo tempo, condição necessária para que certos sujeitos possam assumir certos papéis sociais. Por exemplo, ele cita, em Doença mental e psicologia, certas patologias necessárias para que, em certas sociedades, alguém seja reconhecido como xamã. Esta é uma maneira de mostrar como uma sociedade pode se exprimir positivamente nas doenças mentais manifestadas por seus membros. O que nos deixa como duas questões maiores: “Como nosso cultura conseguiu dar à doença o sentido de desvio e ao doente um estatuto de exclusão? E como, apenas disto, nossa sociedade se exprime nestas formas mórbidas que nas quais ela recusa a reconhecer-se?”[5].
            Responder esta pergunta exigirá um método híbrido derivado de uma epistemologia histórica que compreende a história das ciências como indissociável de uma história das idéias (na qual a filosofia tem um papel decisivo). Daí porque Foucault poderá afirmar:

Fazer a história da loucura significará dizer: fazer um estudo estrutural do conjunto histórico – noções, instituições, medidas jurídicas e policiais, conceitos científicos – que capturam uma loucura cujo estado selvagem nunca pode ser restituído em si mesmo; mas a despeito desta inacessível pureza primitiva, o estudo estrutural deve remontar em direção à decisão que, ao mesmo tempo, liga e separa razão e loucura; ela deve tender a descobrir a troca perpétua, a obscura raiz comum, o afrontamento originário que dá sentido tanto à unidade quanto à oposição do sentido e do insensato[6].

O grau zero da história da loucura

Mas esta história da loucura duas peculiaridades maiores. Primeiro, trata-se de fazer a história da loucura na idade clássica. A noção de classicismo em Foucault é central para a constituição de sua compreensão da modernidade. Grosso modo, o classicismo é este período que, no interior da história da filosofia, iria de Descartes a Kant. A ele e à especificidade de suas estruturas de racionalidade que fornecerá as condições de possibilidade para o advento da modernidade, Foucault dedicará longos capítulos de As palavras e as coisas. No caso do nosso livro, Foucault fornece duas datas que marcariam a história da loucura na idade clássica: a criação do Hospital Geral, na Paris de 1657, com suas exigências reais de internamento de loucos, libertinos e desempregados, e a liberação por Pinel dos loucos acorrentados em Bicêtre, isto na Paris revolucionária de 1794. Ou seja, há fundamentalmente uma experiência de internação e de encarceramento que servirá de marco, já que, como dirá o próprio Foucault: “Procurei sobretudo ver se havia uma relação entre esta nova forma de exclusão e a experiência da loucura em um mundo dominado pela ciência e por uma filosofia racionalista”[7].
Uma experiência de internamento que mudará completamente de sentido com Pinel e com o advento da psiquiatria moderna. É deste internamento que parte Foucault. É dele se trata logo nas primeiras frases de História da loucura:

Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. Nas margens da comunidade, abrem-se grandes plagas que o mal não assombra mais, mas ele as deixou estéreis e, por muito tempo, inabitadas[8].

Foucault se refere aos mais de 19.000 grandes leprosários agora vazios espalhados por toda a Europa. Durante séculos, eles cristalizaram uma experiência de exclusão social e reintegração espiritual que marcará aqueles que posteriormente habitarem tais estruturas vazias. Eles serão inicialmente os afetados de doenças venéreas, aos quais rapidamente se acrescentarão os loucos, dois objetos presentes em um espaço moral de exclusão. Fato inédito até então pois:

Antes que a loucura fosse dominada, por volta da metade de século XVII, antes que fosse ressuscitado, a seu favor, velhos ritos, ela fora vinculada, de maneira obstinada, à todas as experiências maiores da Renascença[9].

Mas o que significa este vínculo entre a loucura e as experiências maiores da Renascença? Foucault inicia lembrando do que significava aquilo que a literatura chamará de “nau dos insensatos”: estes barcos que navegavam a esmo trazendo uma tripulação de loucos deixados à sua própria sorte. A nau é a figuração desta situação limiar do louco: “prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das rotas”. De fato, o mar, símbolo da ausência de território, da abertura à contingência, e o louco, “o passageiro por excelência, o prisioneiro da passagem”, estavam ligados durante muito tempo no imaginário do homem europeu. No entanto, esta figuração ganha uma força suplementar na Renascença.
Foucault vai então construir um argumento segundo o qual a loucura aparecera na Renascença como espaço e modo de manifestação da verdade. O louco é, muitas vezes, aquele que ocupa a cena do teatro para denunciar a insensatez do mundo. Em outras situações, ele é aquele que está completamente cego pelas suas certezas; como se experiência da loucura fosse intimamente ligada a uma sátira moral. Aos olhos de Focault, isto indicaria uma configuração do saber no qual a loucura não apareceria como aquilo que se coloca na exterioridade da racionalidade, mas como um fato interno à própria razão. Analisando textos literários, filosóficos e morais da Idade Média e da Renascença nos quais é questão da loucura, Foucault conclui que, em todos os casos: “A loucura é um momento duro, mas essencial no trabalho da razão”[10]. Pois “a verdade da loucura está no fato dela ser interior à razão, dela ser uma figura da razão, algo como uma força e uma necessidade momentânea que a razão utiliza para melhor se assegurar de si mesma”[11]
Este momento da loucura no interior de uma razão que procura melhor se assegurar de si mesma está indissociável de uma experiência da finitude da existência diante da morte. Foucault apóia-se nas conseqüências da grande experiência social da proximidade da morte devido à proliferação da peste e de outras epidemias, isto a fim de lembrar que: “Da descoberta desta necessidade que fatalmente reduzia o homem a  nada [a morte], passa-se a contemplação que despreza este nada que é a existência humana [uma existência cujas exigências ordinárias são necessariamente loucura]”[12]. Ou seja, tanto na loucura quanto na morte, é sempre do nada da existência que é questão. Neste sentido, a sabedoria consiste em denunciar a universalidade da loucura, ou seja, a presença incessante da loucura em operação todas as vezes que o homem  desvia-se da certeza de que eles não são nada mais do que mortos a espera de sepultura. Dentre outros, é de Montaigne e de Erasmo de Roterdã que fala Foucault.
Tal proximidade da loucura à razão leva Foucault a falar da experiência da Renascença como uma consciência trágica da loucura. Tragédia significa aqui a impossibilidade da razão operar sem reconhecer que as fronteiras com seu outro estão
 Consciência que seria responsável, entre outras coisas, pela não-exclusão do louco através da internação: “Antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de erro ou ilusão (....) As prescrições dadas pelos médicos eram de preferência a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade”[13]. Retenhamos firmemente esta articulação entre erro, ilusão e loucura, pois ela será importante mais a frente.

A dissolução de um mundo e a consciência trágica da loucura

Mas esta temática da loucura como momento interno à própria razão só pode aparecer como sintoma de um mundo em decomposição. Foucault lembra que a própria noção de racionalidade até a renascença estava fundamentalmente vinculada a uma certa noção de mimesis, de semelhança, de analogia e de simpatia: “Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel decisivo no saber da cultura ocidental”[14]. Procurar o sentido era, fundamentalmente, expor as relações de semelhança. A própria relação da linguagem ao mundo era pensada sob a forma da analogia, e não sob a forma da representação. Mas esta episteme fundada na crença da potência cognitiva da mimesis, crença capaz de ordenar um simbolismo fechado sobre o mundo e suas figuras se dissolverá. Com o esgotamento de uma episteme, são as operações elementares de sentido que perdem seu fundamento. Daí este mundo no qual: Tantas significações diversas inserem-se sob a superfície da imagem que ela não apresenta mais do que uma face enigmática”[15]. Neste sentido, a loucura é figura da experiência histórica do esgotamento de uma figura do saber. Este mundo em decomposição, como Foucault lembrará em páginas maiores de As palavras e as coisas, é o mundo de Dom Quixote, um mundo no qual o indivíduo vaga sem rumo pois os fenômenos já não respondem mais a suas expectativas de racionalidade, todas fundadas na força da semelhança:

Dom Quixote é  a primeira das obras modernas porque vemos aí a razão cruel das identidades e das diferenças zombar incessantemente dos signos e das similitudes, porque a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas para entrar nesta soberania solitária de onde ela só reaparecerá, em seu ser abrupto, como literatura; porque a semelhança entra em uma idade que é para ela a idade da desrazão e da imaginação[16].

Este é o mundo, ainda segundo Foucault, de Jeronimus Bosch com suas figuras híbridas que não se submetem mais a princípio algum de semelhança, seu desregramento que exprime o fim de um mundo. Veremos no próximo módulo como compreender quais as linhas de força em operação nesta ruptura de episteme e a desqualificação da mimesis. Por enquanto, lembremos apenas que, não será por acaso que a doença mental, em especial a psicose, será vista séculos mais tarde como um pensamento alienado nas malhas da analogia e das identificações imaginárias. E a própria história da modernidade será, entre outras coisas, a história da desqualificação da força analógica da imagem. Pensar por imagens será, já desde Descartes, uma forma degradada de pensar.
            Mas no interior da experiência renascentista da loucura, Foucault identifica duas linhas maiores de força: uma por ele designada de “experiência cósmica (ou trágica) da loucura”, outra recebendo o nome de “experiência crítica da loucura”. A existência desta duplicidade será fundamental para a explicação posterior do modo com que a loucura aparecerá, na Idade Clássica, como objeto privilegiado de exclusão:

De um lado, haverá uma nau dos insensatos, plena de rostos perdidos, que pouco a pouco imergem na noite do mundo, dentre paisagens que falam da estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do final dos tempos. Do outro lado, haverá uma nau dos insensatos que forma para os sábios a Odisséia exemplar e didática dos defeitos humanos. De um lado: Bosch, Brueghel, Thierry Bouts, Dürer e todo o silêncio das imagens (...) Do outro, com Brant, com Erasmo, com toda a tradição humanista, a loucura é absorvida no universo do discurso[17].

            Ou seja, a dita experiência crítica da loucura será marcada pela denunciação irônica da universalidade da loucura no mundo. Ela é a astúcia de uma razão que denuncia a estreiteza do saber, a cegueira do vício, mas que só pode pensar a loucura ou como uma forma relativa à razão ou como uma das formas mesmas da razão. No primeiro caso, a loucura é apenas a desmesura da sabedoria em relação à razão dos homens.  Neste sentido, lembra Foucault:

Em relação á Sabedoria [divina] a razão do homem era apenas loucura, em relação a razão estreita dos homens, a Razão divina é tomada no movimento essencial da Loucura. Medida a partir de uma grande escala, tudo é apenas loucura, medido a partir de uma pequena escala, o próprio Todo é loucura[18].

Já enquanto forma relativa à razão, a loucura apenas aparece como momento interno ao trabalho da razão, como ponto opaco no qual a razão se arrisca todas as vezes que procura construir sua obra. Ela é uma força interna, uma figura que a razão deve atravessar para melhor se assegurar de si mesma: “Não há um grande espírito sem uma mistura de loucura”, dirá Charron. Mas nos dois casos a loucura nunca representa uma dissolução da perspectiva da razão, ela é apenas o momento necessário para que tal perspectiva seja assentada em solo seguro. Neste sentido, Foucault lembrará que é através dos desdobramentos da consciência crítica da loucura que poderá se constituir algo como esta experiência clássica marcada pelo internamento e pela exclusão Uma experiência que pressupõe uma loucura dominada pelo discurso racional e localizada como fato regional. Uma dominação pelo discurso racional que não cessará de aumentar e de cavar um fosso, isto até que entre loucura e razão não passe nada mais do que uma exterioridade indiferente entre opostos.
Mas Foucault insistirá também que a Renascença conheceu uma “consciência trágica da loucura” que será esquecida e só se revelará bem mais tarde através das obras de um Nerval, Hõlderlin, Nietzsche, Artaud, Roussel. Isto a ponto de Foucault afirmar: “Sob a consciência crítica da loucura e de suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma surda consciência trágica nunca cessou de velar”[19]. Mas o que pode significar exatamente tal consciência trágica? E, problema maior, qual palavra pode descrevê-la?
Antes de tentar responder tais questões, estejamos atentos ao lugar que tal consciência trágica ocupa no método foucauldiano. Já sabemos que a História da loucura é uma contra-história do discurso científico que objetiva a loucura através da noção de “doença mental”. Sabemos como Focault irá tentar expor o lento movimento de constituição de uma racionalidade clínica a partir da sua relação solidária com o advento de estruturas de racionalidade no período clássico e moderno. Mas Foucault precisa operar esta crítica aos saberes positivos sem economizar a discussão a respeito do fundamento capaz de orientar a crítica. Vimos, em Doença mental e psicologia, como o fundamento da crítica da psicologia aparecia através da defesa de uma analítica do Dasein enquanto perspectiva privilegiada de compreensão da história individual, como solo a priori para o advento de uma história possível. Aqui, esta função será ocupada por uma experiência de proximidade imanente e essencial entre razão e loucura que Foucault procura tematizar através da noção de “tragédia”. Veremos, mais a frente, como serão principalmente Bataille, Blanchot e Klossovski aqueles a fornecer à Foucault a forma capaz de apreender tal tragédia através da temática da transgressão ao discurso da razão e de uma experiência do “ser do limite” (embora ainda não saibamos o que pode significar isto, transgressão?). Ou seja, um recurso a experiências disruptivas do “pós-surrealismo”.
De qualquer forma, já no prefácio à primeira edição de História da loucura, Foucault, valendo-se de Nietzsche, confronta a “dialética da história” fundada na dinâmica conflitual entre a razão e seu Outro às “estruturas imóveis do trágico”, ou seja, espaço de uma “implicação confusa” de pólos que ainda não são exatamente opostos sem serem totalmente indiferenciados:

Domínio no qual o homem de loucura e o homem de razão, separando-se, não são ainda separados e, em uma linguagem muito originária, muito frustra, bem mais matinal que a linguagem da ciência, sustentam o diálogo sua ruptura que testemunha, de uma maneira fugidia, que eles ainda se falam[20].

Mas que linguagem é esta na qual os separados não são opostos nem indiferentes uns aos outros? Uma “raiz calcinada do sentido”, para usar um termo do próprio Foucault, própria a uma linguagem onde a contradição não é submetida a uma dialética. Foucault fala, às vezes, de uma linguagem capaz de interrogar: “uma origem sem positividade e uma abertura que ignora as paciências do conceito”[21]. Mas isto implica uma linguagem que seja uma “linguagem da ausência de obra”, ou seja, linguagem da destruição da noção de obra: “uma palavra que se dobra sobre si mesma, dizendo outra coisa para além do que ela diz, outra coisa a respeito da qual ela é, ao mesmo tempo, o único código possível”[22]. Veremos mais a frente como esta linguagem dupla, que é, ao mesmo tempo, anulação do código partilhado e duplicação do código vem da reflexão sobre a potência da estética modernista. Que ela nos leve a este solo no qual razão e loucura não se confrontam mais sob o signo da exclusão, um solo que exige uma reconfiguração nas próprias operações da razão, eis um caminho o que Foucault ainda precisará nos indicar.  Mas, por enquanto, vale a pena tentar compreender como esta ruptura entre razão e loucura se deu.



[1] FOUCAULT, idem, p. 1588
[2] idem, p. 1588
[3] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 189
[4] idem, p. 187
[5] FOUCAULT, Maladie mentale, p. 75
[6] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 194
[7] idem, p. 196
[8] FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 15
[9] FOUCAULT, idem, p. 21
[10] FOUCAULT, História de la folie, p. 55
[11] FOUCAULT, idem, p. 56
[12] idem, p. 31
[13] FOUCAULT, Michel; Microfísica do poder, 120
[14] FOUCAULT, Les mots et les choses, p.; 32
[15] FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 35
[16] FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 63
[17] FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 46
[18] idem, p. 52
[19] FOUCAULT, idem, p. 47
[20] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 188
[21] idem, p. 267
[22] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 445
buscado em: cooperação.sem.mando

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