quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Práticas clínicas no território


por Analice de Lima Palombini
As práticas clínicas, em sua diversidade e especificidades, devem sempre ser pensadas no contexto de um território, concebido como um espaço político de diferenças, desigualdades, conflitos e crenças singulares. O território não pode ser reduzido à casa onde se vive ou aos lugares frequentados pelo cidadão. O território não apenas circunda ou circunscreve o espaço privado, ele é o espaço vivo e mutante que atravessa, dinamiza e complexifica as relações existentes entre público e privado. No entanto, muitas vezes, os serviços de atenção psicossocial estão superlotados, a equipe está cansada e acaba se limitando às práticas regulares dentro do serviço. Outras vezes, a saída do serviço se dá apenas em casos de forte necessidade, como em visitas domiciliares e acompanhamento em caso de emergências. Nem sempre há uma relação orgânica e integrada com a estratégia de saúde da família e demais recursos do território. Como clinicar tecendo redes que propiciem a busca ativa de novas oportunidades de vida, do convívio e trocas com a cultura, seus impasses e saída possíveis? Como pensar neste contexto as relações entre a ciência e a cultura e seus processos de controle social, e suas relações com a política pública? Como construir estratégias que possibilitem a ampliação do cuidado no território, com os usuários e familiares? Que espaços temos criado para aumentar nosso conhecimento, práticas clínicas e sócio-culturais no território de referência? Há estímulo para se conhecer os recursos sócio-educacionais e a vida comunitária e cultural da população no território, e para a participação dos usuários e familiares neles? Há incentivo para ações e eventos comuns com as organizações comunitárias e movimentos sociais da área? As equipes conhecem e valorizam os recursos voluntários existentes no território? A equipe realiza alguma forma de acompanhamento terapêutico ou de suporte na vida diária? Promove grupos de ajuda e suporte mútuos na comunidade? Existem ações matriciais e/ou integradas com as equipes de saúde da família?
PRÁTICAS CLÍNICAS NO TERRITÓRIO
Conforme as diretrizes que orientam o sistema único de saúde (SUS) e a política nacional de saúde mental, a noção de território compreende não apenas uma área geográfica delimitada, mas as pessoas, instituições, redes e cenários em que se dá a vida comunitária. Território é lugar de vida, de caráter processual, produtor de relações que podem ser tanto identitárias como de diferença, onde têm lugar o conflito e sua negociação.
No livro O declínio do homem público, Richard Sennett propõe a seguinte definição de cidade: “assentamento humano onde está dada a possibilidade de encontro com o estranho”. Podemos aplicá-la à idéia de território que tem a heterogeneidade como sua marca: um território vivo é aquele que permite o encontro com o outro, com o que difere de mim, cumprindo, assim, uma função de alteridade que faz com que eu me torne diferente do que era.
Com efeito, a subjetividade se faz na relação ao outro, articulando singular e coletivo, indivíduo e sociedade, dentro e fora. É nesse entremeio que a clínica opera, como abertura à produção de novos sentidos e modos de conexão com o mundo, implicando transformações subjetivas. 
É próprio à clínica, portanto, que sua prática se dê no território, que ela busque multiplicar possibilidades de vida, provocando o alargamento dos modos de habitar o território para que a diferença possa nele ter lugar.
Uma tal concepção de clínica – a que se chamou de “clínica ampliada” –, se, por um lado, pode encontrar sustentação teórica em um autor seminal como Freud, que propõe o psíquico como esse ponto de articulação entre o singular e o coletivo, por outro é resultado do processo social e político implicado na consolidação do Sistema Único de Saúde em nosso país, determinante de transformações no modo de exercício da clínica. Ana Cristina Figueiredo (2009) aponta-nos três tempos dessa transformação:
- nos anos setenta, a passagem da clínica dos consultórios privados para os ambulatórios públicos, desprivatizando a clínica;
- nos anos noventa, o deslocamento dos ambulatórios públicos para os centros de atenção psicossocial (Caps), fazendo da clínica uma prática local, multiprofissional e interdisciplinar;
- na atualidade, a abertura dos Caps ao trabalho em rede, onde a clínica, ao mesmo tempo em que se estende ao território, também cede lugar a outras práticas, com as quais a responsabilidade pelo cuidado do usuário deixa de ser de um serviço, para ser compartilhada por diferentes atores do território.
A composição dessa rede é móbil, mutante. Ela acompanha os percursos próprios a cada usuário e as amarras singulares que vão se produzindo entre ele e as pessoas, gestos, objetos, lugares, serviços, organizações, que compõem o território onde vive. As práticas clínicas no território adquirem, assim, a característica da itinerância, indo ao encontro do usuário onde este estiver, acompanhando-o em seus percursos, buscando formas e espaços de expressão e conexão com o mundo.
Rubem Lemke, em sua dissertação de mestrado, ao abordar o tema da itinerância no contexto das políticas atuais de Saúde Mental e de Atenção Básica, destaca três modalidades clínicas de cuidado no SUS que se fazem nas andanças pelo território: a dos acompanhantes terapêuticos, dos redutores de dano e dos agentes comunitários. 
Resumidamente, essas três modalidades podem ser assim descritas: o acompanhamento terapêutico (AT) propõe uma clínica sem muros, que se faz no espaço aberto da cidade, acompanhando cotidianos de vida de forma a estabelecer laços entre o sujeito acompanhado e o território por ele habitado, utilizando o inesperado das ruas como matéria para as suas intervenções; a redução de danos (RD) promove ações de cuidado junto às pessoas que usam drogas e que habitualmente têm dificuldade de acesso aos serviços de saúde, com o objetivo de minimizar as conseqüências adversas do uso ou abuso de drogas; o agente comunitário (AC) promove a integração entre a equipe de saúde e a população de uma área definida, mantendo contato estreito com as famílias dessa área, desenvolvendo ações educativas e de vigilância sanitária.
Pautados pelos princípios da desinstitucionalização (reforma psiquiátrica) e da integralidade (reforma sanitária), acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes comunitários de saúde situam-se, igualmente, como atores de experiências que arriscam abandonar os ambientes protegidos e partem em direção ao território de vida daquelas pessoas a quem se dirigem os seus cuidados, acompanhando essas pessoas em seus territórios existenciais. Apesar das suas especificidades e dos diferentes saberes envolvidos em cada uma dessas práticas, acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes comunitários têm a aprender um com o outro, podendo compartilhar ferramentas conceituais e estratégias clínicas diversas. Mais além disso, as funções encarnadas por cada um desses atores – ATs. RDs, ACS – não são sua prerrogativa exclusiva. Acompanhamento Terapêutico, Redução de Danos e Atenção Comunitária expressam, antes que especialismos, cargos ou profissões, um modo do cuidado, modo de conceber a clínica que atravessa, ou pode atravessar, as práticas de qualquer um dos trabalhadores envolvidos com o cuidado no território.
Aberta aos acontecimentos que advêm no espaço cotidiano das trocas sociais, a clínica se apresenta como “senhora da passagem”, como a nomeia Eduardo Passos, clínica no limiar entre “o público e o privado, entre a interioridade e a exterioridade do setting terapêutico, entre nós e a cidade, entre a clínica e as redes sociais”. Isso, porém, exige o diálogo permanente com outros setores, como educação, cultura, habitação... colocando em causa a política como indissociavelmente ligada à clínica. A clínica feita no território encontra, assim, na política, a sua zona fronteiriça, implicando a passagem das práticas clínicas a um exercício inventivo de cidadania.
Porém, se cidadania e singularidade são valores assumidos e veiculados pela reforma brasileira, não necessariamente estão constituídos como valores em torno dos quais se ordenam os espaços sociais em que se processa a sua implantação, o que remete menos a contradições internas à proposta dos serviços de atenção psicossocial do que a tensões históricas no processo de constituição do tecido social brasileiro, conforme assinala Carvalho (2001).Assim, as propostas de democratização do espaço de atendimento e de
promoção de sujeitos cidadãos entrelaçam-se a um quadro complexo de configuração de valores hegemônicos junto à população, relacionados aos processos de modernização (globalização) do país e às formas contemporâneas de existência (ibidem). As dificuldades não se restringem ao campo da reforma psiquiátrica; elas incidem no cerne mesmo da proposta do Sistema Único de Saúde e do ideário das políticas sociais em que a reforma se enraíza. A defesa da saúde como direito do cidadão e dever do estado, assegurada pela constituição de 1988, é, desde a origem, continuamente ameaçada pela ideia de estado mínimo e pela ótica do lucro, que concebe a saúde como mercadoria, valor de troca. É nesse contexto que se trava a disputa pela manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos em detrimento da criação de serviços de fato substitutivos. A precarização do trabalho, por sua vez, agravada pela ausência de mecanismos de proteção social, conduz às situações de vulnerabilidade, marcadas pelo empobrecimento, a ruptura dos laços, as atividades ilegais, o individualismo e a violência − são esses os desafios maiores que se interpõem à prática clínica no território, envolvendo mediação social para o estabelecimento de laços produtivos entre seus usuários e as comunidades locais. Em destaque, aqui, a polarização entre uma perspectiva que concebe a cidade como pólis − poder de produção de relações, conflitos e negociação − e a perspectiva hoje dominante, que a vê como mercado − onde o espaço público é privatizado, tornado uniforme, impondo, à diferença, a anulação, o silêncio e a violência. Nesse sentido, o caminho que a reforma psiquiátrica brasileira vem percorrendo é, por princípio, um caminho de resistência (Barros, 2003), sendo crucial que possa nele persistir.
Referências bibliográficas
BARROS, Regina Benevides. Reforma psiquiátrica brasileira: resistências e capturas em tempos neoliberais. In: CONSELHO Federal de Psicologia (Org.). Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.196-206.
CARVALHO, E.N. A reforma, as formas e outras formas: as construções sociais da pessoa e perturbação em um serviço de saúde mental. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Disponível em .
FIGUEIREDO, A.C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano. Palestra proferida na Jornada do Instituto APPOA; Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre, 2009.
LEMKE, R.A. A itinerância e suas implicações na construção de um ethos do cuidado. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
PASSOS, E. A clínica, o método e as experiências de passagem. Conferência de abertura do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I Congresso Brasileiro de AT “Singularidade, Multiplicidades e Ações de Cidadania”. São Paulo, 7, 8 e 9 de setembro de 2006. Não publicado.
SENNETT, R. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Trabalho originalmente publicado em 1978.
Analice de Lima Palombini
Junho 2010

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