sábado, 1 de dezembro de 2012

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a segunda aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).
Aula 2
Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

Na aula de hoje, iniciaremos nosso primeiro módulo sobre a formação da experiência intelectual de Michel Foucault. Trata-se aqui de analisar este período que vai da formação intelectual de Foucault até a redação de História da Loucura, em 1961.
Talvez a melhor de analisarmos tal período seja levando em conta a maneira com que o próprio Foucault compreende o ambiente intelectual no interior do qual ele aparecerá. Ou seja, trata-se de levar a sério esta operação de interpretação das linhas de força que geraram um programa filosófico determinado. Operação que exige uma certa reconfiguração a posteriori da história da filosofia, uma certa filtragem constituída para legitimar escolhas e estratégias intelectual. Sendo assim, devemos nos perguntar como Foucault organiza e compreende as linhas de força  que atuaram na configuração de seu programa filosófica.
A resposta a esta pergunta nos é fornecida pelo próprio Foucault:

Sem desconhecer as clivagens que puderam, durante estes últimos anos e desde o final da guerra, opor marxistas e não-marxistas, freudianos e não-freudianos, especialistas de uma disciplina e filósofos, universitários e não-universitários, teóricos e políticos, parece-me que poderíamos encontrar uma outra linha de partilha que atravessa todas estas oposições. Tal linha é aquela que separa uma filosofia da experiência, do sentido, do sujeito e uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito. De um lado, uma filiação que é esta de Merleau-Ponty e Sartre; de outro, esta de Cavaillès, Bachelard, Koyré e Canguilhem. Sem dúvida, esta clivagem vem de longe e poderíamos seguir seus traços através do século XIX: Bergson e Poincaré, Lachelier e Couturat, Maine de Biran e Comte[1].

            Esta afirmação é extremamente importante devido a sua clareza. Foucault compreende as linhas principais de força do pensamento francês desde o iluminismo como o desdobramento de uma clivagem entre “filosofias do sujeito” e “filosofias do conceito”. Clivagem esta que teria alcançado o século XX através da confrontação entre fenomenologia e epistemologia.
            Notemos inicialmente quão contra-intuitiva é esta maneira de pensar, a começar pelo fato da fenomenologia e da epistemologia francesa nunca terem se auto-compreendidos como opostos fundamentais. Apenas para ficar em um caso, basta lembrar aqui das proximidades evidentes entre as perspectivas holísticas de O normal e o patológico, de Canguilhem, e de A estrutura do comportamento, de Merleau-Ponty. O que não poderia ser diferente já que os dois são leitores atentos e influenciados por Kurt Goldstein. Isto sem falar no fato do jovem Foucault de Doença mental e psicologia ter sido influenciado, de maneira decisiva, por um autor que certamente ficaria do lado da filosofia do sujeito: Georges Politzer de Crítica dos fundamentos da psicologia.
Mas não contente com o fato, Foucault insere a fenomenologia em uma linha inusitada composta por Bergson, Lachelier e Maine de Biran, isto enquanto a epistemologia encontra suas raízes no positivismo de Augusto Comte. Feita esta partilha, Foucault poderá afirmar que seu programa filosófico, programa este que vai configurar-se claramente pela primeira vez através da constituição do campo de uma arqueologia do saber, insere-se claramente na segunda linhagem, o que o coloca em frontal oposição com a fenomenologia francesa e suas temáticas. Uma oposição que nos explica, entre outras coisas, a aliança que Foucault fará, nos anos 60, com uma outra corrente que, esta sim, afirmava suas diferenças fundamentais com Sartre e Merleau-Ponty: o estruturalismo.
            No entanto, fica aqui a questão central: como Foucault pretende justificar a centralidade desta clivagem, o que ela pode nos dizer a respeito da maneira com que Foucault procura legitimar suas escolhas? Um texto pode nos guiar nesta discussão: La vie: l´expérience et la science, escrito em 1984 e dedicado à análise da obra de seu antigo orientador Georges Canguilhem. Ficará ainda uma questão a ser abordada, a saber, como esta filiação À tradição epistemológica francesa, irá se articular com uma outra filiação assumida por Foucault, esta que o vincula às expectativas disruptivas da literatura francesa de vanguarda através de nomes como: Georges Bataille, Maurice Blanchot e Raymond Roussel.

Epistemologia histórica e história da razão

            Poderíamos começar aqui lembrando da peculiaridade maior da tradição epistemológica francesa a qual Foucault se vincula. Uma tradição que não compreende a tarefa da epistemologia como fundação de uma teoria do conhecimento baseada na análise das faculdades cognitivas e da estrutura possível da experiência. Antes, nomes como Canguilhem, Bachelard, Cavaillès e Koyré são lembrados por vincularem radicalmente reflexão epistemológica e reconstrução de uma história das ciências. No entanto, esta verdadeira “epistemologia histórica” não era resultante apenas da submissão da epistemologia à história das ciências. Havia ainda uma clara articulação que visava inserir tais reflexões sobre a história  das ciências em um quadro mais amplo de história das idéias, dos sistemas filosóficos, religiosos, em suma, de uma história geral das sociedades. Koyré, por exemplo, afirmará que: “A evolução do pensamento científico, ao menos durante o período por mim estudado, não formava uma série independente, mas estava , ao contrário, fundamentalmente ligado à evolução de idéias transcientíficas, filosóficas, metafísicas, religiosas”. Isto a fim de fornecer, como exemplo, o fato de que: “o pensamento científico e a visão de mundo que ele determina não está apenas presente nos sistemas – tais como os de Descartes e Leibniz – que se apóiam abertamente na ciência, mas também em doutrinas – tais como as doutrinas místicas – aparentemente estranhas a toda preocupação desta natureza. O pensamento, quando ele se formula em sistema, implica uma imagem, ou melhor, uma concepção de mundo e se situa em relação a ela: a mística de Boehme é rigorosamente incompreensível sem referência à nova cosmologia criada por Copérnico”[2].
Se o pensamento científico não forma uma série independente, mas está ligado a um quadro mais amplo de idéias historicamente determinadas é porque, dirá mais tarde Foucault, a reflexão epistemológica não deve se perguntar apenas sobre os poderes e direitos de técnicas e proposições científicas que aspiram validade, mas deve esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade e as condições de exercício que se encarnam em técnicas e proposições, assim como se encarnam nas outras formações discursivas que compõem o tecido social. Tal certeza fornece o sentido de uma afirmação metodológica central de Canguilhem como: “A história das idéias não pode ser necessariamente superposta à história das ciências. Porém, já que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e num meio que não são exclusivamente científicos, a história das ciências não pode negligenciar a história das idéias”[3]. Podemos mesmo dizer que a história das ciências não pode negligenciar a história das idéias porque a história das ciências não seria outra coisa que um setor privilegiado da história dos processos de racionalização de visões partilhadas de mundo.
            Foucault procura defender tal perspectiva lembrando que a gênese desta epistemologia histórica na França deveria ser procurada no positivismo de Augusto Comte. Colocar Comte na origem não era uma decisão gratuita. Na França, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como maneira de retomar a indagação sobre a natureza dos processos de racionalização próprios a modernidade. Indagação que não deixava de articular, no seu interior, uma história geral das sociedades e uma discussão a respeito da positividade das ciências. Daí porque Foucault pode dizer que:

Na França, foi sobretudo a história das ciências que serviu de suporte à questão filosófica sobre o que é a Aufklãrung; de uma certa forma, as críticas de Saint-Simon, o positivismo de Comte e de seus sucessores foi uma maneira de colocar a indagação de Mendelssohn e de Kant [sobre O que é o esclarecimento?] na escala de uma história geral das sociedades[4].
           
            No caso de Comte, o problema sobre o que é o esclarecimento é conjugado no interior de uma reflexão sobre processos de evolução e desenvolvimento que visam fundamentar uma teoria do progresso social. Uma teoria feita de “cortes epistemológicos” e de inserção do desenvolvimento da positividade das ciências no interior do projeto ocidental de desenvolvimento universal da razão.
            Esta articulação entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padrões de racionalização permitirá a Foucault afirmar que o terreno estava aberto para a transformação da epistemologia em linha de frente da crítica da razão. Bastava um movimento localizado, porém prenhe de conseqüências. Um movimento que consistia em retirar o solo realista sobre o qual a epistemologia se movia (e que assegurava ainda uma direção cumulativa do progresso científico), isto em prol da compreensão do progresso científico como uma sucessão descontínua de discursos, historicamente limitados, sobre o mundo. Se para o positivismo, a história não era mais do que uma “injeção de duração na exposição dos resultados científicos”[5], já que os critérios de validação de tais resultados estão para além da história, para Foucault, ela era a chave para compreender a constituição mesma dos critérios de validade de enunciados científicos.
De fato, Bachelard com sua noção central de corte epistemológico, assim como Koyré e Canguilhem insistiram no caráter descontínuo da história das ciências. Canguilhem lembra, por exemplo, que Lavoisier assumira a responsabilidade de duas decisões maiores: ter mudado a língua que nossos mestres falavam e não ter dado histórico algum da opinião dos que lhe precederam. Ou seja, trata-se da fundação de um saber que opera na descontinuidade de um acontecimento que exige a reconfiguração da  linguagem e a suspensão do passado. Descontinuidades desta natureza permitem a Foucault afirmar que:

A história das ciências não é a história do verdadeiro, da sua lenta epifania, ela não saberia pretender contar a descoberta progressiva de uma verdade sempre inscrita nas coisas ou no intelecto, salvo a imaginar que o saber atual possui enfim tal verdade de maneira tão completa e definitiva que ele pode medir o passado a partir dela[6].

No entanto, uma colocação desta natureza deixa em aberto uma questão maior: pois a história das ciências  não pode negligenciar o problema da relação às expectativas de descrições verdadeiras de estados de coisa. Foucault sabe disto, ele sabe que a referência ao verdadeiro e ao falso é peça fundamental da especificidade do discurso científico. Mas ele insistirá se trata, fundamentalmente de compreender a história das ciências como:

a história dos ´discursos verídicos´, ou seja, dos discursos que se retificam, se corrigem e que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elaboração finalizada pela tarefa do “dizer verdadeiro”[7].

Este deslizamento, da confrontação com um estado de coisas dotado, ao mesmo tempo, de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica, a uma análise dos discursos que aspiram validade, análise dos modos de um dizer que se põe como dizer da verdade faz toda a diferença e é especificamente foucauldiana. Nem Bachelard, nem Koyré, nem Canguilhem foram tão longe. Canguilhem, por exemplo, também aceitava que o objeto da história das ciências era a “historicidade do discurso científico enquanto que tal historicidade representa a efetivação de um projeto interiormente submetido a normas”[8], ou seja, a história das ciências fala do discurso científico e suas aspirações normativas internas. No entanto, ele não deixava de insistir na distinção entre objeto da história das ciências e objetos da ciência, mesmo que não se trate de um objeto naturalizado. Isto significa que, em certas situações, Canguilhem poderá comparar o objeto da ciência com o objeto da história da ciência., encontrado uma norma que determina a história, ao invés de ser simplesmente determinada por ela.
É tal deslizamento que permite comentadores como Peter Dews afirmar: “na obra de Foucault, a relação entre teoria e experiência é apresentada como uma relação determinada de maneira unidirecional. Foucault, ao menos o Foucault dos anos 60, adota o primado do discursivo sobre o “vivido” que é claramente influenciado de mais pesada pelo estruturalismo”[9]. Como veremos em  outras aulas, tal primado é fundamental para que a transformação foucauldiana da epistemologia em um setor privilegiado da auto-crítica da razão ou (para usar um vocabulário frankfurtiano a respeito do qual o próprio Foucault se sente próximo) em um setor de crítica da racionalidade instrumental possa ser efetivado.
            De qualquer forma, fica claro aqui uma das razões pelas quais Foucault precisa operar uma clivagem na filosofia francesa entre a vertente epistemológica da “filosofia do conceito” e a vertente fenomenológica da “filosofia do sujeito”. A dita filosofia do conceito, com sua noção histórica e alargada de história das ciências, permite a tematização do processo de constituição de estruturas discursivas que determinam a configuração da positividade das ciências e de expectativas gerais de racionalidade. Com isto, ela nos liberaria da ilusão do sujeito como pólo produtor de sentido da experiência.
            Mas antes de discutirmos a pertinência desta estratégia (até porque tal discussão exigiria uma compreensão mais clara sobre o que Foucault compreende sob a categoria de sujeito e subjetividade), vale a pena analisarmos mais demoradamente o movimento que permitiu ao filósofo francês constituir sua noção de epistemologia como análise de estruturas discursivas. Dentre as várias perspectivas possíveis de análise, talvez a melhor seja medirmos a distância que sempre separou  Foucault daquele que é seu interlocutor mais próximo da tradição da epistemologia histórica francesa: Georges Canguilhem. Comparemos então algumas proposições centrais de dois livros: O normal e o patológico, escrito por Canguilhem em 1943, e Doença mental e psicologia, escrito por Foucault em 1954 e re-editado em 1962. Na aula de hoje, gostaria de tecer algumas considerações gerais sobre O normal e o patológico. A aula que vem será dedicada ao comentário da primeira parte de Doença mental e psicologia.

Georges Canguilhem : O normal e o patológico

Canguilhem é, sem dúvida, o nome mais eminente da epistemologia das ciências médicas e biológicas do século XX e figura fundamental no desenvolvimento da epistemologia das ciências humanas. Sua experiência intelectual é peculiar e resultante de sua dupla formação: médico e pesquisador em filosofia. Isto o permitiu construir de todas as peças um campo novo de reflexão epistemológica, a saber, a reflexão filosófica sobre a medicina e sobre aquilo que se chama, na França, de “ciências da vida”. A constituição de tal campo de pesquisas foi desdobrada e continuada principalmente pelo mais conhecido de seus alunos, Michel Foucault. Dificilmente poderíamos pensar em livros como O nascimento da clínica sem o impacto gerado por trabalhos como O normal e o patológico.  Há uma linha reta que vai das reflexões de Canguilhem sobre as práticas médicas e as reflexões de Foucault a respeito do advento da psiquiatria e da psicologia.
No entanto, a obra de Canguilhem dialoga, devido a partilha de temáticas, com esta outra tradição de reflexão filosófica, de Merleau-Ponty e Politzer, marcada sobretudo pela fenomenologia e pela perspectiva da relação entre sujeito e sentido, do sujeito como pólo de produção de sentido dos fatos próprios a clínica. Basta lembrar como o programa politzeriano de uma psicologia concreta ainda ressoa, de uma certa forma, nesta afirmação de Canguilhem: “Esperávamos da medicina justamente uma introdução a problemas humanos concretos [ou seja, a problemas cujo sentido exige a atualização de uma perspectiva que leve em conta os modos de interação entre o homem e seu meio, assim como suas disposições teleológicas]”[10].
Neste sentido, a experiência intelectual de Canguilhem se coloca em um ponto privilegiado no interior do qual duas grandes tradições do pensamento francês se encontram. Isto talvez explique a extensão de uma influência bem traçada por Foucault ao afirmar:

Retirem Canguilhem e vocês não compreenderão grande coisa sobre uma série de discussões que ocorreram no marxismo francês, vocês não apreenderão o que há de específico em sociólogos como Bourdieu, Castel, Passeron e que os marca de maneira tão forte no campo da sociologia, você perderão todo um aspecto do trabalho teórico feito pelos psicanalistas e , em especial, pelos lacanianos. Mais: em todo o debate de idéias que precedeu ou seguiu o movimento de 1968, é fácil encontrar o lugar destes que, de perto ou de longe, foram formados por Canguilhem[11].

Dentre suas obras, O normal e o patológico é sem dúvida a mais ambiciosa e sistemática. Resultado de uma tese defendida em 1943 intitulada Ensaio sobre a alguns problemas relativos ao normal e ao patológico, o livro, em sua versão final, foi acrescido de três artigos escritos vinte anos depois e agrupados sob o título de Novas reflexões referentes ao normal e ao patológico.
Mas do que fala exatamente este livro? Seu título já indica claramente a configuração do objeto de estudos: trata-se de discutir o estatuto das estruturas de definição e de partilha entre fenômenos normais e fenômenos patológicos. Questão central não apenas para a biologia e para a clínica (seja ela médica ou psicológica) mas, fundamentalmente, uma questão central para a filosofia. Pois, por trás das mudanças e redefinições do que está em jogo na partilha entre normal e patológico encontramos um problema vinculado à maneira com que a razão moderna determina a articulação entre vida e conceito, entre ordem e desordem, entre norma e erro. Uma grande parte do trabalho canguilhemeano de historiador das ciências está ligada a tentativa de demonstrar como as decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico são, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Lição que será apreendida por Foucault à redação de seu História da Loucura.
Neste sentido, decisões clínicas, segundo Canguilhem, se inserem em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica. Daí porque ele pode afirmar: “a filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para qual só serve a matéria que lhe for estranha”[12]. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas pelo estado da técnica ou pela configuração natural do dado são, ao contrário, espaços privilegiados nos quais a razão configura, silenciosamente, os campos da experiência possível.
Por outro lado, isto significa que um problema clínico nunca é apenas um problema clínico, até porque, ele só e determinado enquanto problema por partilhar um padrão de racionalidade, historicamente situado, cujas raízes não se esgotam apenas no campo da clínica. Esta e uma das razões que leva Canguilhem a afirmar ser: “um grave problema, ao mesmo tempo biológico e filosófico, saber se é ou não legítimo introduzir a História na Vida”[13]. Esta é a razão também que permite a Canguilhem operar com uma noção ampla de clínica que, embora privilegiando a nosografia somática e a fisiopatologia, não deixa de abrir questões e permitir extensões em direção à nosografia psíquica e á psicopatologia.  Esta indistinção de Canguilhem entre somático e psíquico é fundamental e marca, como veremos claramente na aula que vem, um ponto de distinção entre ele e Foucault. Ponto não negligenciável, já que o que está em jogo é, na verdade, aceitar ou não uma separação estrita entre os domínios da natureza e da cultura, separação entre o que é da ordem da circulação social do discurso e o que não é totalmente redutível a tal circulação. Como vocês podem imaginar, Foucault irá, desde o início, assumir uma separação estrita entre natureza e cultura prenhe de conseqüências.
Voltando a Canguilhem, podemos dizer que sua posição a respeito do problema próprio à distinção entre normal e patológico nos permite lançar luz sobre a estrutura peculiar de seu livro. Dividido em duas grandes partes, o livro inicia passando em revista diferentes versões de uma mesma tese então hegemônica no século XIX, “uma espécie de dogma cientificamente garantido”, dirá Canguilhem, a respeito da distinção entre normal e patológico. Augusto Comte, Claude Bernard e René Leriche teriam em comum uma maneira de compreender a diferença entre normal e patológico como uma diferença quantitativa que diria respeito a funções e órgãos isolados, como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo, apenas variações quantitativas, déficits ou excessos. Como lembra Canguilhem, semanticamente, o patológico é designado a partir do normal,  daí porque ela será descrita como distúrbio, transtorno, déficit ou excesso que acontece no nível de funções e órgãos. Assim: “a doença não é pensada como uma experiência vivida, engendrando transtornos e desordens, mas como uma  experimentação aumentando as leis do normal”[14]. Quer dizer, a doença nada mais é do que um sub-valor derivado do normal. É a definição do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da clínica.  Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um campo mensurável acessível à observação. Tal campo privilegiado é,a partir de Claude Bernard, a fisiologia que aparece assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos postulados de uma anatomia patológica: “As técnicas de intervenção terapêutica só podem ser secundárias em relação à ciência fisiológica, isto na medida em que o patológico só tem realidade provisória por declinação do normal”[15]. O que nos deixa como uma questão maior: o que deve acontecer ao corpo para que a fisiologia possa aparecer como campo de determinação da normatividade da vida, campo de identificação daquilo que deve valer para a clínica como norma? Questão que será retomada por Foucault, em O nascimento da clínica, ao lembrar que:

o que é modificado com o advento da medicina anatomo-clínica não é a simples superfície de contato entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido; é a disposição mais geral do saber que determina as posições recíprocas e o jogo mútuo deste que deve conhecer e o que há a conhecer[16].

Em um capítulo do Nascimento da Clínica, intitulado “Abram alguns cadáveres”, Michel Foucault reconstitui a trajetória que permitiu à fisiologia e à anatomia patológica aparecerem como fundamento da clínica. Tal posição da fisiologia só foi possível a partir do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um “espaço ao mesmo tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questão de ordem, de sucessão, de coincidência e de isomorfismo”[17]. Transformação do corpo em um espaço abstrato que era resultado da aplicação de um “princípio geral de decifração” do espaço corporal semelhante ao princípio geral de constituição do espaço homogêneo e geométrico da física moderna. Tal princípio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituição do espaço corporal, pela  redução do corpo a um campo de tecidos orgânicos:

A partir dos tecidos, a natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles são os elementos dos órgãos, mas o atravessam, os aproximam e, para além deles, constituem os vastos sistemas nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haverá tantos sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotável dos órgãos se dissolve e, de uma vez, se simplifica[18].

Tal redução do volume orgânico a um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal aparece como condição para o aparecimento de uma fisiologia que pode se submeter a um padrão de objetividade fundado em dispositivos de mensuração, de redução quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo. Mais importante, ele demonstra como uma certa forma de conceber a distinção entre normal e patológico está claramente ancorada na reconstrução da experiência do corpo, constituição de uma tecnologia de normatização do corpo a partir de uma estrutura valorativa que guia a racionalidade clínica. Toda uma clínica poderá se orientar a partir daí baseando-se nos postulados de uma anatomia patológica, ou seja, uma anatomia fascinada pela procura da lesão de órgãos e tecidos como causa explicativa para o desvio da conduta.
Isto nos deixa com um problema maior: se a noção clássica de partilha entre normal e patológico é resultado de uma norma que tem a função de valor, então é possível pensar um outro modo de partilha entre normal e patológico?
De fato, já no primeiro capítulo, intitulado “Introdução ao problema”, Canguilhem lembra que há uma outra perspectiva de análise das distinções entre normal e patológico que insiste na distinção qualitativa, e não meramente quantitativa, entre os dois. Tal perspectiva teria, ao menos, duas versões. Uma deveria ser chamada de teoria ontológica devido ao fato de encarar a doença como o resultado da presença do que tem realidade ontológica distinta do corpo são. A teoria microbiana das doenças contagiosas (Pasteur) seria um caso paradigmático aqui por fornecer, através do micróbio, uma “representação ontológica do mal” positivamente localizada, segundo Canguilhem. Já a outra deveria ser chamada de teoria dinamista ou funcional e encontra na medicina grega seu exemplo fundador. Contrariamente a uma noção de doença determinada a partir da possibilidade de localização, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo relacional: “A natureza (physis) tanto no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem. Está em todo o homem e é toda dele”[19]. A doença aparece assim como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: “não há um único fenômeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo são”[20]. Quando classificamos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que os tornam patológicos é a relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que tal estratégia de vincular o normal a partir de uma relação normativa de ajustamento ao meio implica em afirmar que não há fato algum que seja normal ou patológico em si. Eles são normal e patológico no interior de uma relação entre organismo e meio ambiente. De fato, a clínica procura, através de noções anatômicas, fisiológicas ou neuronais, determinar a realidade da doença, mas esta realidade, a clínica só a percebe através da consciência de decréscimo da potência e das possibilidades de relação com o meio, consciência esta veiculada primeiramente pelo sujeito que sofre. Tais colocações serão fundamentais para Foucault poder pensar, em História da loucura, a própria noção de doença mental como figura dependente de um certo modo de ordenamento do meio ambiente social.
No entanto, no caso de Canguilhem, afirmar que normal e patológico são categorias pensáveis apenas no interior da relação entre organismo e meio ambiente implica, entre outras coisa, em assumir que a doença é a produção de novas normas de ajustamento entre o organismo e o meio ambiente; normas estas que, embora sejam vivenciadas como restrição do mundo e da capacidade de atuação do indivíduo biológico, podem, muitas vezes, ser o embrião do desenvolvimento de novos comportamentos. O que aparece como anormal é, em vários casos, o prenúncio de uma nova potência de normatividade em relação à vida. Canguilhem se serve constantemente de exemplos de anomalias a fim de defender tal hipótese. seres vivos que se afastam do tipo específico são, muitas vezes, inventores a caminho de novas formas. A vida, mesmo no animal, não é mera capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela é tentativa, atividade baseada na capacidade de afrontar riscos e triunfar[21], daí porque ela tolera monstruosidades. É isto que levará Canguilhem a afirmar: “Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicos. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores às normas anteriores, serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade”[22]. Não é difícil encontrar nestas reflexões de Canguilhem uma certa posição nietzscheana que procura erigir a criação de valores em vontade de afirmação da vida. Daí esta definição surpreendente de Canguilhem: a saúde não é o ajustamento completo entre organismo e meio ambiente; ela é a conservação de uma margem de transcendência e de infidelidade do organismo em relação ao meio. Margem que permite ao organismo não sucumbir à primeira modificação do meio. Um organismo completamente adaptado e fixo é doente por não ter uma margem que lhe permita suportar as mudanças e infidelidades do meio. A doença aparece assim como fidelidade a uma norma única. Daí esta definição: “uma vida sã, uma vida confiante na sua existência, nos seus valores, é uma vida em flexão, uma vida flexível (...) Viver é organizar o meio a partir de um centro de referência que não pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua significação original”[23].
Não se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somática e causalidade psíquica, entre organogênese e psicogênese. A posição de Canguilhem é mais radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biológico quando vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de mensuração e quantificação? Esta vida não seria apenas o exemplo de uma razão que se transformou em princípio de dominação e controle da vida? Por outro lado, e este é um ponto absolutamente importante, Canguilhem assenta sua concepção de saúde em uma “filosofia da natureza”, em um vitalismo que será absolutamente estranho a Foucault. No entanto, tal vitalismo lhe fornece o critério e o fundamento de uma crítica da razão médica. Foucault, por sua vez, será obrigado a encontrar um critério para além de todo fundamento. O que não será tarefa fácil.



[1] FOUCAULT, La vie: l´expérience et la science in Dits et écrits II, p. 1583
[2] KOYRÉ, Etudes d´histoire de la pensée scientifique, pp 12-13
[3] CANGUILHEM, O normal e o patológico,, p. 25
[4] FOUCAULT, La vie; L´expérience et la science, p., 1585
[5] CANGUILHEM, Etudes d´histoire de la pensée scientifique, p. 12
[6] FOUCAULT, idem, p. 1588
[7] idem, p. 1588
[8] CANGUILHEM, Etudes de histoires et de philosophie des sciences, p. 17
[9] DEWS, Foucault and the french tradition of historical epistemology, p. 42
[10] CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 16
[11] FOUCAULT, La vie: l´expérience et la science in Dits et écrits II, p. 1983
[12] CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 15
[13] idem, p. 13
[14] LE BLANC, Conguilhem et les normes, p. 34
[15] idem, p. 42
[16] FOUCAULT, La naissance de la clinique, p. 139
[17] FOUCAULT, La naissance de la clínique, p. 128
[18] idem, p. 129
[19] CANGUILHEM, idem, p. 20
[20] CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
[21] CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 215
[22] CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 113
[23] CANGUILHEM, La connaissance de la vie, p. 188

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