quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O Capitalismo Atual e a Produção da Subjetividade


por Euclides André Mance 
IFIL, novembro, 1998

Introdução
O objetivo deste texto é apresentar como o sistema capitalista atual, em função da produção de mais valia, necessita produzir subjetividades. A fim de compreendermos conceitualmente este fenômeno teremos de explicitar o que caracterizamos como "subjetividade" e o que entendemos por "capitalismo atual". O instrumental adotado para tanto advém da semiótica política, razão pela qual enfatizaremos as mediações sígnicas peculiares ao giro do capital, à produção das mercadorias, à promoção do consumo e a necessária produção das subjetividades para a realização deste movimento.
Esta exposição está dividida em duas partes. Na primeira enfocamos o tema considerando centralmente a subjetividade. Na segunda parte, centralizamos a reflexão sobre a noção do capitalismo atual. Em ambas, iniciamos a exposição pelas categorias mais abstratas para chegarmos, ao final, à compreensão mais detalhada da realidade concreta. Assim, na primeira parte, apresentamos uma noção abstrata de subjetividade e dos processos semióticos que a produzem. Destacamos que os indivíduos se reconhecem pela mediação semiótica de auto-ícones ou auto-imagens que são por eles mesmos interpretadas, contudo, a partir dos interpretantes da cultura hegemônica em que suas subjetividades se estratificam. Consideramos, a seguir, como a produção de subjetividade pode ocorrer na perspectiva da individualização capitalista ou na perspectiva de uma subjetivação subversiva às diversas semioses hegemônicas modelizadas pelo capital. Encerramos a primeira parte considerando a dimensão utópica inerente às subjetividades e aos movimentos sociais, como ocorre a produção de subjetividade agenciada pelo capitalismo globalizado e apresentamos uma tipologia do consumo alienante, compulsório ou em razão do bem viver.
Na segunda parte centramo-nos na análise do capitalismo atual, considerando suas faces de globalização, planetarização e mundialização. Explicitamos a seguir as novas bases da atual acumulação capitalista (a mais-valia virtual, a ciência como valor econômico e a produção de subjetividade como mediação de reprodução do capital). Por fim consideramos a relação entre os valores de uso e troca virtuais e a produção de subjetividades, como núcleo dessa nova fase de acumulação de capital.
Nas considerações finais, embora não seja este o tema desta exposição, apresentamos algumas perspectivas de possíveis desdobramentos de certos aspectos da presente reflexão com a finalidade de construir alternativas de ação que permitam interferir em alguns dos fenômenos analisados.

1. Sobre a Produção de Subjetividade
Não há nenhum processo físico, biológico ou antropológico que não esteja mediado por signos. Toda cultura, por sua vez, resulta de uma certa estratificação semiótica ordenadora de comportamentos pessoais e coletivos. As subjetividades, igualmente, se constituem a partir de processos antropossemióticos sem os quais nenhum indivíduo poderia reconhecer-se como sujeito ou agir com autonomia.
Se reduzirmos a subjetividade à sua dimensão mais abstrata, chegaremos a matérias e funções organizadas como substâncias e formas sob regimes de signos. Esta compreensão formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1) enfatiza a historicidade inerente a cada subjetividade, considerando o movimento de constituição de identidades e singularidades a partir de múltiplas relações, fluxos e agenciamentos mediados por signos - movimento que se caracteriza como produção de subjetividades.
Se reduzirmos um corpo a seu elemento mais simples chegamos à sua materialidade organizada sob um jogo de funções. Essa funções todas, organicamente, conformam o corpo. Tem-se portanto diversos órgãos e aparelhos que se articulam entre si. Trata-se pois de uma matéria ordenada nesse conjunto de funções. Mas somente isso não estrutura uma subjetividade. Essas matérias e funções são ordenadas a partir de regimes de signos. Em nível de biossemiose, tem-se como signos ordenadores, os códigos genéticos; em nível de zoosemiose tem-se os signos que - sob linguagens sinalizadoras e expressivas - organizam a vida dos grupos de animais possibilitando a sua sobrevivência e reprodução (2). Contudo, se considerarmos o nível da antropossemiose, veremos que inúmeras funções do organismo são de algum modo modelizadas pelos diversos signos das culturas humanas. O modo de comer, de vestir, de se reproduzir, enfim, de realizar todas as atividades necessárias à existência e convivência humanas é semioticamente organizado (3). Assim, quando se fala em subjetividade há que se pensar nesse conjunto de matérias e funções - nesse conjunto das necessidades orgânicas - e por outro lado nas dimensões da cultura - nos diversos códigos socialmente ordenadores - que, de algum modo, modelizam o corpo; neste processo estruturam-se as subjetividades.
Deste modo, todas as substâncias ou identidades referem-se ao que as coisas são segundo cada cultura, segundo cada regime de signos ou, o que dá no mesmo, segundo as diversas semióticas vigentes e hegemônicas em uma comunidade de comunicação, que tanto pode ser uma família, uma tribo, um grupo de amigos, uma gang, uma comunidade religiosa, uma nação, etc. Em cada organismo social destes, processos educativos mediados por semióticas peculiares orientam a individualização ou singularização. Perguntas tais como: quem é, o que é ou o que dever ser - perguntas em torno de questões sobre substância e forma - são questões que somente se respondem considerando-se o plano da cultura, isto é, o plano da linguagem ou das semioses e não somente o plano das matérias e funções. Mais do que isto, tais perguntas recebem respostas distintas a partir das distintas semióticas dos diversos grupos ou organismos sociais, que podem entrelaçar-se como uma rede de significações que se trançam como interpretantes, mas que também podem se excluir em semioses contraditórias com signos que se negam reciprocamente em vigências opositivas. As matérias e funções que compõem e reproduzem a condição objetiva das subjetividades são como uma argila que vai sendo modelada sob as culturas das diversas sociedades em regimes de signos consonantes ou contraditórios com os demais.
Toda cultura possui dois aspectos fundamentais sem o que não há sociedade: uma infra-estrutura econômica e uma infra-estrutura comunicativa, isto é, um modo de produzir e consumir, bem como, um modo de significar, informar e comunicar através de sinais que são articulados em regimes de signos e em linguagens naturais, a partir dos quais a sociedade se organiza e se reproduz (4).
Se biologicamente os seres humanos possuem matérias e funções semelhantes, culturalmente as subjetividades são modeladas sob regimes de signos muito diversos, tanto dos diferentes povos, grupos ou classes sociais, quanto dos diversos momentos históricos e conjunturais nos quais essa semiose vai sendo complexamente transformada. Assim, a sensibilidade das pessoas é modelada - alguns sentimentos se cultivam em uma cultura em um certo momento, mas se negam em outra cultura ou em outro momento do mesmo grupo. O modo de perceber esteticamente o mundo também é modelizado pela cultura: o que se considera belo e feio, saboroso ou não - pois a própria percepção do sabor e da beleza é algo modelizado a partir da cultura; o mesmo ocorre com a percepção das cores - o arco-íris tem sete cores para os falantes da língua portuguesa, mas para alguém que fala inglês o rainbow tem seis cores, pois, no que se refere ao arco-íris, a comunidade de língua inglesa não distingue a cor anilada da cor roxa, ambas compreendidas em uma única faixa, purple (5). Com a dimensão ética também ocorre o mesmo: as noções de justo, injusto, certo e errado estão relacionadas com um conjunto de interpretantes válidos sob uma semiose vigente no seio de uma comunidade em um dado momento histórico. O mesmo se passa com os imaginários, a compreensão de mundo, as esperanças, as utopias. Também no nível das necessidades encontramos essas semioses: a definição do que deve ser satisfeito e de como deve sê-lo; tudo isso é modelizado pela cultura. É muito diferente nascer no Brasil ou em Ruanda, no Japão ou na Suíça
A relação entre a sociedade e indivíduo é, portanto, muito complexa. No processo de sua individuação, as pessoas vão assumindo os jogos de linguagem, os signos e códigos de uma certa cultura, em uma relação simultânea de liberdade e de determinação. Como escreve Paulo Freire, "nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos." (6) Cada indivíduo é determinado pela sociedade em todas as dimensões de sua subjetividade, mas ao mesmo tempo também é livre, no sentido de que pode interferir sobre esses códigos culturais. Assim, família, escola, colegas, amigos, igrejas e, especialmente, as mídias de massa determinam muito a individuação das subjetividades (7). Por outra parte é possível uma intervenção dos sujeitos sobre esses determinantes desde que desenvolvam a capacidade de problematizá-los. Em todas essas esferas ocorre o processo educativo através da formação dos indivíduos em semioses geradoras de interpretantes, de padrões e referências para os diversos conjuntos de comportamentos e ações pessoais ou coletivas.
Contudo, de todos os aparelhos e organismos sociais mediadores da educação ou da cultura, as mídias de massa tem cada vez maior preponderância afirmando padrões estéticos, éticos e políticos. Valendo-se do saber elaborado pelas ciências humanas que esquadrinharam as subjetividades, as mídias de massa exercem poder sobre elas, de modo tal a agenciar certos comportamentos, a determinar certos movimentos sociais, a promover o consumo de certos produtos, etc. Em síntese, elas interferem com seus processos pedagógicos nos níveis mais íntimos da subjetividade, agenciando os comportamentos mais variados (8).
Assim, a sociedade condiciona os indivíduos com seus processos educativos, mas os indivíduos podem modificar a sociedade. Desse modo, não cabe falar de uma ex-istência individual de cada um, como se a subjetividade se reduzisse a uma consciência que, movida pela liberdade, põe-se fora de si (ex) através de suas obras culturais, podendo nelas refletir-se e recuperar-se como consciência livre em seu movimento individual, suprimindo o anterior momento de alienação. A subjetividade, pelo contrário, é relativamente determinada por tudo que a modeliza, a família, a escola e demais equipamentos sociais. Com efeito, a subjetividade é fruto de uma con-sistência - cada pessoa é neste conjunto de semioses que a atravessa e modeliza, que perpassa a sua subjetividade e a produz como ser humano, embora sempre tenha a liberdade situada e relativa de resistir aos fluxos que a produzem e de conferir um sentido singular à sua vida.
1.1 Auto-ícone, Individualização e Singularização
A percepção que o indivíduo tem de si mesmo é primeiramente uma experiência estética, isto é, sensível, uma vez que todo conhecimento inicia-se por tomar-se a si mesmo como fenônemo e não inicialmente como razão. A necessidade insatisfeita leva o indivíduo à busca de uma exterioridade que o satisfaça. A memória da satisfação e da carência registram-se como signos primários da zoosemiose dos comportamentos animais que é modelizada sob as semioses culturais humanas. Desde a consistência modelizadora dessas intensidades vai se constituindo a auto-imagem dos sujeitos. Sem memória, contudo, não haveria estabilidade de alguma representação de si e, consequentemente, ocorreria a impossibilidade de uma identidade do indivíduo.
Sendo assim, a consistência nos leva à geração de um ícone virtual de nós mesmos - uma imagem registrada na própria memória - como objeto imediato, sobre o qual aplicamos interpretantes com os quais queremos possuir a nós mesmos, conhecer-nos (9). As semióticas hegemônicas, contudo, ao propor certos interpretantes como os mais valiosos geram uma tensão utópica de que o sujeito seja diferente do que imagina que é. Ao negar o valor do ícone atual de si mesmo e ao assumir como projeção de si o ícone proposto pela semiose hegemônica de alguma comunidade comunicativa, buscando alcançar os signos que o revestem (por exemplo, determinados tipos de roupas, tênis, acessórios, diplomas, outros objetos, certos comportamentos, etc), o indivíduo constrói outra virtualidade de si mesmo. A regularidade de reações (como interpretantes energéticos frente a objetos dinâmicos do cotidiano já modelizados signicamente por uma articulação interpretante) aparece como interpretante da identidade do ícone virtual de si mesmo (10).
Assim, podemos dizer que o eu possui dois ícones de si mesmo ou duas auto-imagens. Um corresponderia ao que o indivíduo imagina que é e outro ao que deseja ser. Ambos os ícones são virtuais - uma vez que não possuem materialidade objetiva como significantes - que podemos denominar como atual no primeiro caso ou potencial ou utópico no segundo caso (11). Nenhum dos dois corresponde plenamente, contudo, ao eu. Se todo signo representa parcialmente o objeto, o ícone do que o eu imagina que é não representa cabalmente o que ele próprio é; já o ícone que o projeta como seria em outra circunstância, apenas o representa como projeto.
Importa destacar, contudo, que - em geral - tanto os interpretantes do ícone atual quanto do ícone potencial são gerados por semioses hegemônicas desde as quais o indivíduo interage consigo mesmo pela mediação de uma cultura que o situa como um ser em um mundo. Assim, sob as semioses do capital o indivíduo compreende e sente o que é, aplicando sobre o ícone de si mesmo os interpretantes modelizados pelo regime de signos hegemônico na produção de sua subjetividade. Por outra parte, ao projetar um ícone potencial, ele age do mesmo modo, projetando uma identidade avaliada a partir dos interpretantes das semioses hegemônicas.
Na problematização desse processo, algumas questões se colocam. A "complexidade sígnica" (a articulação complexa dos signos) redunda em uma experiência única e complexa de si mesmo ou sempre fragmentada em razão da temporalidade das semioses? A memória não pode integrar em uma unidade - o si mesmo - o conjunto de interpretantes afetivos, energéticos e intelectuais que integram a reposição do ícone atual na temporalidade histórica do indivíduo? O si mesmo não é ele próprio uma síntese complexa como objeto dinâmico, imediato e interpretantes que o põe como sujeito livre, capaz de optar por distintos posicionamentos frente ao mundo objetivo pela mediação de sua representação sígnica do mundo e de si mesmo?
A posição de si como consistência é mais que autoconsciência ou autopoíesis, pois há fluxos sígnicos dos quais não temos consciência e há elementos do eu que não são postos por sua liberdade, como seu envelhecimento, sua doença e sua morte.
A semiose do si mesmo como que engendra o movimento inverso. Ao considerar o ícone atual do si mesmo, todo o conjunto dos interpretantes emerge como um objeto dinâmico que instaura o si mesmo para si mesmo em si mesmo. Esta complexidade do sentir-se energeticamente, afetivamente, perceber-se fenomenicamente, representar-se intelectualmente repõe o eu para si mesmo com sua identidade consistente e mutante.
Assim, não há um eu como objeto dinâmico fora da complexidade sígnica do si mesmo, pois o eu é sempre resultante processual da organização sígnica do caos das interações do sujeito com todos os fluxos. E não há como afirmar o si mesmo senão pela mediação da cultura que, com seus signos e interpretantes, torna possível a con-sistência do indivíduo.
A fisiossemiose organiza os fluxos materiais e energéticos; a biossemiose e a endossemiose reorganizam esses fluxos possibilitando a reprodução de sistemas complexos; a fitosemiose e a zoosemiose especializam códigos externos conectando os processos vitais com os processos complexos externos. A antropossemiose em que emerge o ícone de si mesmo já é um conjunto de modelizações em que sua "matéria" essencial são os próprios signos, antropologicamente ordenadores dos níveis anteriores de semiose (12).
Sendo o si mesmo organização e memória, liberdade e projeção, ícone atual e utópico, ele não pode haver senão como consistência e justamente, por isso, toda subjetividade é produto e o capitalismo pode tornar-se o sistema modelizante principal capaz de reorganizar as semioses antropológicas, projetar ícones potenciais para a realização humana, gerar interpretantes sobre os ícones atuais por cuja mediação os indivíduos se reconhecem, operando na posição do si mesmo pelo próprio eu, e operar na sua posição de classe, orientado sua liberdade para a reprodução do capital.
Essa individuação que, assim, ocorre culturalmente, pode-se dar de dois modos, como analisa Félix Guattari (13). Na perspectiva da individualização, os indivíduos são agenciados capitalisticamente, em meio à massa, a destacarem-se socialmente, individualizando-se ao assumir as referências de poder e prestígio social modelizadas sob as semioses do Capitalismo Mundial Integrado, buscando competir e vencer, ser melhor sob o quadro de valores estabelecido pelas semioses culturais hegemônicas. Por outro lado, na perspectiva da singularização ou subjetivação, a individuação ocorre com o sujeito dando vazão aos fluxos de desejo e paixão, buscando a realização de sua singularidade na relação solidária e criativa com o outro - relação não fetichizada pelas mediações da cultura hegemônica -, outro esse que é desejado em sua liberdade e diferença, rompendo-se, assim, com todos os códigos éticos, estéticos e políticos, entre outros, que impeçam o sujeito de realizar suas potencialidades, de expandir sua criatividade. Assim, por exemplo, para individualizar-se como homem, conforme uma certa semiose cultural hegemônica, é necessário que a subjetividade se estratifique sob uma identidade machista. Por outro lado, sob o movimento de singularização, a busca da relação com o outro fará o sujeito romper não apenas com a cultura machista, mas com todas as outras semioses dominantes que negam qualquer outro em sua diferença e liberdade, como a discriminação por raças, credo, orientação sexual, etc. Possibilita-se assim que todos realizem as suas singularidades e potencialidades na promoção da liberdade recíproca (14).
Tanto uma quanto outra perspectiva são alimentadas por processos educativos amplos realizados nos diversos organismos sociais. Nesse complexo processo de produção de subjetividade, inúmeras utopias pessoais e coletivas são agenciadas e realimentadas. Cada pessoa tem sua utopia individual, movida por desejos e necessidades, formulada ao âmbito de sua circunstância: cada pessoa busca realizar o que ainda não é, tomando como identidade seu ícone potencial ou utópico. A sociedade, contudo, orienta as utopias pessoais para certas realizações. Nesse sentido, o capitalismo é um grande formulador de utopias; conforme a ideologia por ele disseminada, cada pessoa nunca deve estar satisfeita com o que é ou tem e deve buscar sempre mais, estar à frente dos demais, ser o maior e o melhor, isto é, possuir em maior quantidade e em melhor qualidade que os demais.
1.2 Subjetividade e Utopias
Existem, contudo, diversas formas e tipos de utopias (15). Elas podem ser singularizadoras, subjetivadoras, quando são movidas pelo desejo do outro em sua liberdade, movidas para a relação pessoa-pessoa, face-a-face, na justiça e liberdade - como afirma Enrique Dussel, quando considera a proximidade do face-a-face em sua dimensão utópica ou escatológica, como sentido último da existência humana (16). Mas elas também podem ser alienantes, quando movidas por desejos manipulados sob a lógica do capital, do machismo, do autoritarismo e demais semióticas em que a outra pessoa é subsumida como um objeto a mais no mundo do indivíduo, que dela se vale como um meio para alcançar outros objetivos particulares.
As utopias também tanto podem ser pessoais quanto grupais. Vários indivíduos podem compartilhar uma única utopia que os articula em seu agir coletivo, tratando-se, assim de utopias grupais, como as que se manifestam em certos movimentos ou segmentos sociais. Assim, por exemplo, nos movimentos que lutam por moradia, faz parte da utopia pessoal de cada um dos participantes o desejo de possuir um terreno para morar. Mas quando esses indivíduos se organizam, dando origem a um movimento social, a posse da terra - pela qual lutam - passa a ser parte de uma utopia grupal. Por fim, as utopias também podem ser gerais, amplamente coletivas de toda uma sociedade ou povo; temos então os projetos políticos como utopias mobilizadoras de grandes segmentos sociais (17).
Em geral as pessoas não se dão conta dos desejos mais íntimos que alimentam suas utopias pessoais e que estão latentes em suas ações, orientando adesões sociais e políticas, embora tais desejos se manifestem de várias formas nas condutas do cotidiano.
Toda utopia se constitui pela mediação de antropossemioses que agenciam devires subjetivos e projeções temporais de suas realizações. Nesse movimento antropossemiótico, os imaginários são co-elaborados destacando-se um certo conjunto de signos como elementos recorrentes à compreensão que a pessoa tem de si mesma e do mundo em que está inserida, valendo-se dos interpretantes que são hegemônicos no seio das comunidades de comunicação em que participa. Todas as pessoas, assim, possuem imaginários peculiares, cujos signos se articulam das maneiras mais diversas em razão da diversidade de semioses que as atravessam constituindo-as como pessoas. Em meio a esse conjunto de cognições, sentidos e afetos, pela interação com as diversas realidades, as pessoas vão construindo sua personalidade, sendo determinadas por aspectos econômicos, políticos e culturais os mais diversos. Cada ser humano articula, desse modo, seus desejos, sonhos, esperanças e projetos sob uma utopia pessoal. A utopia de cada um é justamente aquilo que cada qual quer realizar em sua vida particular, um norte da existência pessoal, estando na base de projeção de seu auto-ícone potencial. A utopia pessoal está sempre marcada pelo processo de individualização ou subjetivação, sendo formulada com elementos peculiares ao imaginário pessoal e social, sob cujos signos encontram-se disposições afetivas modelizadas ou não sob os códigos do capital que, como sistema semiótico modelizante principal, modeliza as diversas linguagens em uma sociedade capitalista. Toda utopia emerge, pois, como uma certa negação da realidade presente, efetiva, e se volta para a sua transformação, a fim de realizar os desejos utópicos - mesmo no caso das utopias alienadas, em que, agenciado pelo capital, o indivíduo busca ter o que não tem e ser o que não é.
Ora, sendo a dimensão utópica uma característica própria a todas as subjetividades humanas, os sistemas hegemônicos de poder - com a finalidade de preservar a realização de seus próprios objetivos - organizam mediações educativas que se especializam em manipulá-la, atuando no âmbito mais íntimo da vida privada, estabelecendo interpretantes hegemônicos para os auto-ícones atual e utópico. As semioses educativas modelizadas pelo capitalismo em sua atual fase de globalização, por exemplo, são provedoras de ilusões e fantasias, alimentando a construção de utopias alienadas e alienantes pelos indivíduos. Apresentando o neoliberalismo como um projeto de sociedade que permite a todos ascender socialmente segundo seus méritos, qualidades e empenhos, propõe-se um conjunto de reformas e políticas que, de fato, geram uma exclusão cada vez maior de amplos segmentos sociais. Poder, luxo, fama e riquezas são elementos que fazem parte, em alguma medida, das utopias veladas da grande massa social, cujos arquétipos se identificam com personagens fictícios e vitoriosos apresentados pela mídia como modelos de realização pessoal. Tais utopias compõem anseios, desejos e aspirações que mobilizam a práxis pessoal a fim de realizar os objetivos últimos formulados utopicamente - mesmo que seja ganhando nas loterias. Como não se pode impedir que os indivíduos construam utopias e reprimi-las não significa destrui-las, as semióticas do capital, em sua função educativa, modelizam as subjetividades de modo que desejos, aspirações e anseios, sejam orientados a práticas que permaneçam dentro dos códigos e limites estabelecidos hegemonicamente.
Vemos, portanto, que as utopias tanto podem ser singularizantes, elementos de subjetivação, como também podem ser conservadoras, gestadas em processos de individualização, embora sempre emerjam da negação da realidade imediata e cotidiana das pessoas que as elaboram e componham elementos que possuem significações peculiares a cada um pela vinculação que mantém com o conjunto de signos articulados que conforma o seu imaginário. Sob a perspectiva de ampliação dos horizontes dos exercícios de liberdade, a educação possibilita uma reflexão sobre a práxis individual e coletiva, permitindo compreender tanto o momento prático, efetivador, da práxis social, quanto, especialmente, o momento utópico a ela articulado e os agenciamentos que atuam em sua mobilização.
Como a subjetividade humana é esta unidade de consciência e inconsciência, de razão e afetos, de imaginações e paixões, necessidades, desejos e medos, não é fácil compreender o que motiva as ações particulares e coletivas, bem como o que as agencia. Frente a este desafio, a educação como condição do exercício da liberdade desenvolve-se como uma semiose dialética que gera novos interpretantes sobre realidades e condutas - recuperando os conhecimentos historicamente elaborados e gerando experiências estéticas - que permitam ampliar o exercício de autonomia pessoal, ao mesmo tempo que reafirma elementos éticos voltados à expansão da liberdade do indivíduo e da coletividade, permitindo assim uma problematização da práxis em sentido amplo.
Sob esta perspectiva, amplia-se a compreensão da práxis que além de considerar a articulação dialética entre prática e teoria - que se desdobra em momentos cognoscitivo, teleológico e efetivador - entende-se que, na conduta de cada pessoa, estão presentes elementos da sua utopia particular e das semioses sociais, envolvendo aspectos inconscientes e conscientes, desejos, imaginários e razões, objetivos a serem alcançados e estratégias de como efetivá-los. A reflexão sobre a utopia pessoal torna-se, desse modo, condição para compreender-se tanto a práxis individual quanto coletiva. Ao considerar-se a dimensão afetiva - especialmente desejante, temerosa e necessitante - que move as pessoas ao agir, destaca-se que inúmeros jogos de poder (sedução, persuasão, privação, coação, agressão, etc) mediados pelas mais diversas semioses atuam nos processos de subjetivação ou individualização. A educação como mediação do exercício da liberdade eticamente orientada promove processo pedagógicos geradores de interpretantes necessários a elaboração, pelo próprio educando, de referências tanto para a crítica de suas utopias, quanto para a singularização de novas disposições utópicas desde as quais seu auto-ícone potencial se constitui como referência para seu livre devir. Como a subjetivação é a contraface dos processos de socialização, a práxis individual e a práxis social possuem interfaces a serem conceituadas tendo em vista melhor situar o exercício sempre limitado da autonomia privada e pública com a finalidade última de expandir o exercício das liberdades.
1.2 A Produção de Subjetividade do Capitalismo Globalizado
O capitalismo, pela ação de suas empresas e seus agentes, modeliza as utopias pessoais sob a sua lógica de dominação e lucro, gerando signos que operam como interpretantes dos ícones atual e potencial de grande parte dos indivíduos. Ele atua no inconsciente e move o desejo, a angústia e o medo das pessoas; altera a sensibilidade que é modelada sob a lógica do capital, ficando o desejo de alteridade modelizado em função do consumo de produtos e da posse de objetos, resultando em relações coisificadas - o desejo de ter um namorado é desviado para o desodorante, o desejo da família feliz é desviado para a margarina, o desejo de ter um grupo de amigos é desviado para a posse do tênis, entre outros exemplos. Ele também modeliza esteticamente a subjetividade: cria padrões de belo e feio, o que confere status ou não: que roupa se deve vestir, que objetos o indivíduo deve portar para ser reconhecido como importante pelo grupo em que participa, etc. Ele também modeliza a dimensão ética: mutila a sensibilidade das pessoas frente ao sofrimento alheio, frente à morte, desumanizando-as; altera as noções de justo e injusto, responsabilizando cada pessoa por sua exclusão escondendo-lhe as causas estruturais deste processo. Assim, se alguém fica desempregado é porque não estudou o suficiente para trabalhar com as tecnologias mais complexas, sendo responsabilizado pela seu próprio insucesso; se estuda e consegue emprego, o conseguiu porque estudou; se estuda e não consegue o emprego é porque não estudou o bastante. Essa ideologia, contudo, oculta o fato de que mesmo se todos estudassem o bastante, não haveria emprego para todos, pois não é a qualificação do trabalhador o que faz surgir postos de trabalho. O capitalismo também produz imaginários, gerando certas compreensões ideológicas de mundo, esperanças impossíveis de cumprir-se, utopias alienadas, compreensões fragmentadas e virtuais do real, etc. O capitalismo modeliza também as necessidades humanas, transformando-as em possibilidade de alguns acumularem mais capital, criando novas necessidades sociais.
Portanto, o sistema capitalista, além de ser um sistema econômico e político, é o sistema semiótico modelizante principal. Ele produz e reproduz conjuntos articulados de signos a partir dos quais tudo pode ser transcodificado. Ele transforma qualquer coisa em valor de troca, até mesmo a afetividade e desgraças humanas - para vender produtos ou ampliar índices de audiência de telejornais -, sendo capaz, inclusive, de modelizar todas as linhas de fuga ou de subversão, colocando tudo a serviço de sua reprodução (18) - como a recaptura da imagem de Che Guevara para a venda de detergentes. A eficiência ou não desse último procedimento - sobrecodificar os signos de protesto e recuperá-los em sua espira dominante - depende da capacidade dos atores sociais, que geraram os signos que foram modelizados, propagar socialmente um certo conjunto de interpretantes capazes de ressignificar aqueles sinais, mantendo sua operatividade subversiva frente à semiose hegemônica em que foram transcodificados. Desse modo, por exemplo, se por um lado as mídias no Brasil são capazes de transformar Chico Mendes - ecologista e líder político brasileiro, que foi assassinado por latifundiários - em defensor de borboletas e passarinhos, esvaziando o signo político das causas que o levaram a ser dirigente do Partido dos Trabalhadores no Acre e lutar pela aliança dos povos da floresta e pelo socialismo democrático, por outro lado, entre os movimentos sociais, entretanto, a imagem de Chico Mendes continua sendo interpretada desde sua posição de classe como elemento agenciador de movimentos moleculares de subversão.
As modelizações semióticas capitalísticas são possíveis porque a interação humana com os signos é simultaneamente estética e cognitiva, envolvendo afetos, perceptos, representações e conceitos, mediados por interpretantes. O capitalismo, pois, gera signos e agencia interpretantes; sabe capturar desejos e revoltas, sabe canalizar intensidades subjetivas. Em muitos casos, essas semioses levam os indivíduos a tomarem o imaginário como real, o virtual como objetivo (19).
O capitalismo como sistema político pode assumir várias configurações, cada uma das quais terá um jogo de semioses peculiares. Pode ser liberal, fascista ou social-democrata. Contudo, cada modelo destes engendra seus signos, seus imaginários, seus códigos, sendo que todos eles estão centrados no acúmulo de capital em detrimento da realização universal da liberdade e da dignidade humana de cada pessoa, pois o valor de troca passa a ser a mediação geral de equivalência entre todos os entes por ele modelizados. O capitalismo neoliberal, de sua parte, possui uma ideologia peculiar que o justifica; ele agencia utopias coletivas alienadas que jamais se realizarão, como a utopia do livre mercado, por exemplo, ou ainda a satisfação de todos os consumidores em razão da competição entre os produtores e comerciantes (20). O que se nota, entretanto, é que quanto mais se desregulamenta o mercado, pior fica a situação dos excluídos (21). A semiose neoliberal mobiliza desejos e anseios das pessoas levando-as a terem comportamentos políticos favoráveis aos interesses dos grupos economicamente dominantes - seja ecoando mensagens, através das mídias, em favor das reformas estruturais conforme os parâmetros do Consenso de Washington, seja apoiando politicamente grupos e partidos com elas comprometidos. Em síntese, essa atual configuração de capitalismo neoliberal engendra regimes globalitários. Produzindo subjetividades, essa forma de capitalismo não apenas se implanta como modelo econômico, mas como semiose hegemônica, que agencia e hegemoniza amplos segmentos sociais em defesa de projetos que excluem a maioria, embora essa maioria pense que esses projetos vão atender os seus interesses.
1.3 Produção de Subjetividade e Ações de Consumo
A atual disputa por mercados, que está na base da liberalização do comércio e da organização dos blocos econômicos, visa permitir a ampliação do consumo dos produtos elaborados pelas mega-empresas capitalistas. O consumo, como tal, é uma exigência para a reprodução de cada ser vivo em particular. Sem consumo a vida do ser se esgota e o ser vivo morre. No caso da vida humana, entretanto, o consumo não apenas visa satisfazer necessidades naturais, biológicas, como também necessidade culturais que são produzidas pelo próprio modo de viver das sociedades. Mais que isso, o consumo também se realiza para satisfazer desejos, aplacar medos, preencher ansiedades, sentir-se especial, etc, podendo ser modelizado pelos movimentos de produção de subjetividade capitalistas que constrói utopias em torno do consumo.
Poderíamos destacar rapidamente três práticas distintas de consumo: o consumo alienante, o consumo compulsório e o consumo como mediação do bem viver. Nas Considerações Finais deste estudo, faremos referência ao consumo solidário, como uma prática de consumo que visa propagar o bem viver para todos, promovendo as liberdades públicas e privadas eticamente orientadas.
O consumo alienante, que já consideramos anteriormente, é praticado massivamente na atual sociedade capitalista por uma significativa parcela da população. Muitas pessoas buscam nas mercadorias mais do que simples qualidades objetivas. Agenciados pelas peças publicitárias, merchandisings e modismos, muitas pessoas passam a conferir aos produtos certas qualidades virtuais que acabam determinando sua aquisição e consumo. Desejos, anseios, angústias. medos e necessidades serão modelizados de tal modo que o consumo de certos produtos de certas marcas passa a ser considerado como a melhor opção para alcançar a felicidade, a realização humana, a concretização dos desejos mais íntimos, superar obstáculos, vencer na vida, ser bem sucedido, ter uma bela namorada ou namorado, garantir o conforto e a paz da família, conquistar o sucesso profissional, ser reconhecido pelos amigos, conquistar prestígio, etc. Embora conscientemente todos digam, em geral, que tais produtos não têm tanto poder assim, por outra parte, graças às semioses desenvolvidas com o recurso das mídias, estes aspectos todos ficam vinculados como interpretantes semióticos desses objetos sígnicos, sendo em grande medida determinantes da aquisição desses produtos, uma vez que produtos similares - tanto nas qualidades objetivas de uso e, às vezes, até mais baratos - são preteridos em razão de não serem os signos da moda ou não agenciarem certos interpretantes no imaginário social. Carentes de uma formação educativa que lhes permita a apreciação crítica das publicidades e semioses que os atingem e estando desprovidos de um conjunto de outras informações relevantes para a sua tomada de decisão, estes consumidores são facilmente enredados no consumismo alienante que permite o giro do capital e a concentração cada vez maior de riqueza sob o poder de grupos cada vez menores. Afinal, quanto mais poderoso o grupo econômico que tem propriedade sobre aquelas marcas, tanto mais poderá investir em publicidade e tanto mais hegemonizará o mercado.
Outra significativa parcela da sociedade, entretanto, pratica o consumo compulsório. Trata-se dos pobres e excluídos, subempregados, desempregados e populações de rua que não dispõem de recursos para consumir os produtos de grife ou as marcas famosas e caras. Premidos pela necessidade, buscam maximizar o poder de consumo dos poucos recursos que têm. Nos casos mais dramáticos, reviram as latas de lixo nos centros urbanos em busca de restos de comida ou pedem algum lanche às pessoas que entram em bares e restaurantes, até que sejam dali expulsos. Nesta situação limite pouco se pode escolher. Já os trabalhadores pobres "esticam o salário" buscando comprar o que é essencial e mais barato, primando mais pela quantidade de produtos adquiridos pela mesma quantia de dinheiro do que pela sua qualidade propriamente dita. Mesmo estes, contudo, sempre compram um ou outro produto que em seu imaginário - produzido pelas semioses publicitárias - satisfaça algum desejo, isto é, que se consuma realmente por prazer e não apenas para satisfazer a fome. No estrato um pouco mais elevado os consumidores passam sempre a jogar com os critérios de quantidade e qualidade considerando sempre a mesma quantia de recursos que podem dispor para realizar suas compras. Assim, por exemplo, predefinindo até quanto gastarão em sua compra mensal de mantimentos passam a escolher os produtos que comprarão, visando adquirir uma quantidade suficiente para satisfazer as suas necessidades e que seja da melhor qualidade dentro de suas possibilidades. Aqui também ocorre que alguns itens de qualidade inferior podem ser selecionados justamente para sobrar mais recursos para comprar outros itens de qualidade mais superior. Todos, entretanto, tem como ideal de consumo praticar o consumismo proposto pelas mídias. Se tivessem recursos para tanto comprariam os produtos identificados com o consumo de elite e fariam questão de exibir roupas de grife e de costureiros famosos, jóias, relógios, cartões, automóveis, etc, para destacarem-se socialmente como importantes e especiais.
O consumo como mediação do bem viver é uma outra modalidade de consumo. Menos importa aqui as aparências e imaginários produzidos pelas mídias do que a satisfação das necessidades pessoais, a preservação da saúde e do bem estar e o refinamento dos prazeres possibilitados pelo consumo. As necessidades pessoais variam conforme a singularidade de cada um. O que pode ser necessidade para um, não o será para outro. Dispor de tintas e telas para pinturas ou de um tênis especial para praticar corridas em trilhas nos bosques podem ser necessidades para duas pessoas que encontram prazer e satisfação pessoal em pintar ou em praticar tais corridas, mas serem praticamente inúteis para outros que não têm interesse nenhum nessas atividades.
As pessoas que consideram o consumo como mediação do bem viver não seguem as ondas consumistas, não se deixando levar pelas publicidades e seus engodos. Muitos alimentos anunciados sedutoramente nas mídias possuem tantos corantes, acidulantes e aromatizantes "químicos" que melhor seria para a saúde pública que as pessoas consumissem uma fruta qualquer do que ingeri-los. Muitos sabões em pó que "lavam mais branco" contém branqueadores que são, de fato, substâncias químicas que ficam impregnadas nas roupas fazendo-as refletir mais luz, gerando a impressão que estão mais brancas. Tais branqueadores, entretanto, são um veneno letal aos ecossistemas poluindo rios e mares. As pastas de dentes que "deixam os dentes mais brancos" em geral contém abrasivos que prejudicam a camada de esmalte natural dos dentes. Outros produtos semi-prontos "práticos para quem não tem tempo a perder" se ingeridos continuadamente podem causar canceres de diversos tipos. Sem falar de desodorantes cujo gás utilizado como spray contribui para destruir a camada de ozônio, ou dos chicletes que provocam cáries e gastrites pois aumentam a produção de sucos gástricos que danificam a mucosa do estômago, etc. A lista poderia ser bem mais longa, sendo preciso incluir aí produtos de péssima qualidade nos gêneros de filmes, novelas, desenhos, videogames e outros que são consumidos nos momentos de lazer, que em razão de sua péssima qualidade embrutecem as sensibilidades, anestesiam as subjetividades frente à violência e à opressão e acabam, em graus variados, alterando comportamentos daqueles que ficam expostos a esses bombardeios semiológicos de baixo nível.
2. Capitalismo Atual
2.1 Globalização, Planetarização e Mundialização.
A revolução cibernética das tecnologias de informação e comunicação - associando computadores à fibra ótica, ao laser, etc -, não tem contribuído somente na modificação da economia mundial. Elas também tem provocado modificações culturais, alterando hábitos, comportamentos e valores no mundo todo. Alguns cientistas sociais compreendem esse processo sob três conceitos: globalização, mundialização e planetarização.
A globalização envolve elementos de produção e comercialização, relacionando-se à economia e às finanças. Sob este aspecto consideram-se as mudanças do processo produtivo resultantes da aplicação de métodos, meios e recursos que ultrapassam os limites nacionais. Na base desse processo estão grandes corporações interagindo nos grandes mercados em movimentos de "fusão" ou "fissão" - conforme figura retomada por Aluísio Pimenta - , uma vez que ocorrem lances em que várias empresas se fundem em uma só ou uma grande empresa se divide em várias unidades. (22) O tripé bancário dos fundos de pensão, fundos mútuos e seguradoras alavanca esses movimentos empresariais de globalização, como destaca René Dreifuss (23).
A planetarização, por sua vez, é caracterizada pela influência política de nações sobre outras nações. O desenvolvimento tecnológico e de processamento de informação ampliaram as influências políticas internacionais, gerando um poder de alcance planetário, atingindo Estados e sociedades, nas quais novas formas de controle ultrapassam fronteiras com diversificadas formas de influência entre países e comunidades. As pressões internacionais contra os testes nucleares franceses, indianos e paquistaneses, realizados recentemente, são um exemplo disso. Conforme Dreifuss,
"...a planetarização trata, por um lado, de vínculos expressos na trama de organizações transnacionais e de instituições (parlamentos e conselhos) supranacionais, que fazem parte do novo tecido 'político' e de gestão, e dá outro significado à noção de pertencer, resignificando a multiplicidade de inserções sociais e nacionais. Além disso, ela sublinha a qualidade dos vínculos políticos, culturais e sociais que atravessam estados-nações e permeiam sociedades nacionais diversas, enquanto modelam, irradiam e imprimem profundas mudanças perceptivas e de comportamento transocietárias. Essas mudanças afetam a formulação e os métodos de ação dos governos e dos grupos politicamente organizados, além de incidir no funcionamento das estruturas sociais e institucionais vigentes. São explicitadas como cortes e redesenhos nas relações de poder internas... dos países, e como reformulação das relações internacionais." (24)
Sob o aspecto das produções de subjetividade, importa salientar de modo amplo o significado da mundialização nesta nova etapa do capitalismo globalizado. Caracterizam a mundialização a facilidade para viagens de um país a outro, a comunicação por rádio, TV e satélite que nos permitem ter acesso direto a inúmeros outros países, culturas e costumes. Curiosamente, na era da mundialização é mais fácil, rápido e barato entrarmos em contato com alguém no Japão, do outro lado do globo terrestre mas conectado à Internet, do que com um parente que reside a algumas centenas de quilômetros numa cidadezinha no interior do estado em que moramos e que somente dispõe de um posto telefônico. Na visão positiva que Aluísio Pimenta tem da mundialização, "a facilidade de comunicação quebra barreiras culturais e leva a um comportamento em que sentimos o mundo mais de perto. Hoje, é possível estudarmos, mediante a educação a distância, na universidade de Londres, da Venezuela, de Portugal ou da Espanha e termos contato com milhões de pessoas que não conhecemos e com as quais compartilhamos conhecimentos, ansiedades e esperanças. Essas novas fronteiras nos possibilitam intercambiar processos culturais, enriquecendo nossa identidade como comunidade ou nação, dentro do contexto de uma 'aldeia global'." (25)
René Dreifuss, contudo, apresenta uma análise menos positiva do fenômeno da mundialização. Destaca o autor que
"a mundialização lida com mentalidades, hábitos e padrões; com estilos de comportamento, usos e costumes e com modos de vida, criando denominadores comuns nas preferências de consumo das mais diversas índoles. A mundialização compreende a generalização e uniformização de produtos, instrumentos, informação e meios à disposição de importantes parcelas da população mundial...(...) neste sentido, a mundialização lida com a massificação e homogeinização cultural, evidente no consumo de hamburgers, pizzas, sorvetes, iogurtes, refrigerantes, cigarros, jeans, tênis, cartões, etc. Da China à Dinamarca, da Finlândia ao Peru, são os mesmos produtos, das mesmas marcas e modelos iguais. Mas a mundialização também incorpora as particularidades - locais, regionais, nacionais, étnicas, religiosas, de grupos sociais e culturais - subsumidas na dinâmica mundial do consumo de uma heterogênea terra. A mundialização é, portanto, do âmbito societário, embora no seu desdobramento condicione a economia e a política. Refere-se a valores e referências, a produtos e métodos desejados e passíveis de utilização, nos mais diversos países, sem ater-se à sua origem nacional ou cultural (na maioria dos casos, simplesmente desconhecendo-a), e transbordando ou atravessando culturas e estilos existenciais e vivenciais." (26)
Este processo de mundialização opera com diferentes intensidades nos diferentes países, impulsionada por uma ação empresarial que transborda os limites do Estado em suas políticas de cultura, quebrando padrões de consumo, visões de mundo, referências explicativas e balizas de conduta nas sociedades locais, substituindo-os por outros, ou modelizando-os sob novas semioses. Assim, estilos de comportamento social são transferidos ou transplantados com o recurso não apenas das diversas mídias (tevês, rádios, vídeos, computadores, telefones, fax, jornais, revistas, cinemas, etc) mas, também, com o concurso da indústria do turismo e de viagens que responde atualmente por 10,9% do PIB global (27). Os grandes meios de comunicação planetários (tevês a cabo, revistas de circulação mundial, websites, etc) suprimem barreiras e disseminam novas tendências de consumo, posições políticas e orientações de conduta. Macrossistemas comunicativos permitem a difusão imediata de informações por todo o mundo, capazes de promover audiências massivas a assuntos irrelevantes ou de promover crises econômicas em determinados países em razão de informações desfavoráveis divulgadas sobre suas economias por agências internacionais de notícias, que ecoam comentários de analistas que, direta ou indiretamente, também atuam como agentes de mercado.
Entre todos esses veículos, a internet gerou a possibilidade de surgimento de comunidades de alcance mundial em que os indivíduos não apenas são receptores de mensagens, mas emissores de uma quantidade imensa de informação, ensejando o surgimento de novas organizações coletivas e virtuais que extrapolam os espaços e os ciclos de tempo físicos. As comunidades virtuais se organizam em torno de uma diversa gama de temas e propósitos que vão da defesa de direitos humanos, do debate sobre questões políticas, ecológicas e científicas, à articulação de redes internacionais de pedofilia, narcotráfico, etc.
Nesta múltipla teia de influências, algumas cidades e regiões, em especial as grandes megalópoles do Norte, mantêm ascendência sobre outras regiões ou países em razão não apenas de sua capacidade de selecionar, organizar e veicular informação, difundindo suas percepções, critérios e análises, mas porque, concentrando e articulando funções financeiras, industriais, científicas, tecnológicas, culturais e políticas, que mantém fortes vínculos com as instituições educativas, acabam fornecendo quadros e dirigentes para diversas empresas e nações, laureando doutores e mestres que atuam nos mais diversos países. Formados sob certos princípios nestes "Centros de Excelência", reproduzem-nos por toda a parte irradiando uma certa compreensão de mundo e de processos sociais, uma certa compreensão civilizatória, difundindo certos procedimentos específicos e particulares nas mais diversas áreas de atuação científicas, técnicas e profissionais como se fossem necessários e universais. Essas cidades configuram-se como pólos-motores que "desenham uma realidade geoeconômica diferente, gerando uma nova 'divisão transnacional da produção' determinada pela gestação de uma verdadeira 'divisão internacional do conhecimento' adquirido, acumulado e aplicado" (28).
Assim, se considerarmos o processo de produção de subjetividades, descrito anteriormente, percebemos que a globalização captura em sua espira a mundialização e a planetarização. Mentalidades, hábitos, estilos de comportamento, usos e costumes são semioticamente modelizados com a finalidade de reproduzir os ciclos do capital sob as mediações publicitárias ou sob atividades produtivas.
Esta captura possibilitada pelos atuais desenvolvimentos tecnológicos introduz um vetor totalitário não mais em escala nacional, mas sim global, podendo ser denominado como globalitário - nas palavras de Paul Virílio, autor de "Cybermundo - a Política do Pior". Como a mundialização e a planetarização são capturadas sob a lógica globalitária, a digitalização dos mecanismos culturais em larga escala, modelizados sob as semióticas do capital, tende a transformar as infovias em mecanismos de um novo tipo de tirania.
Não se trata de um imperialismo colonial, nem de um imperialismo político de estilo nazista ou fascista que levaram à Segunda Guerra Mundial. Como escreve Fernando de Barros e Silva, "ao contrário do totalitarismo cujo sucesso se devia à repressão a toda forma de oposição ou liberdade de expressão, os 'regimes globalitários' incentivam ao máximo a parafernália democrática (eleições regulares, imprensa livre, instituições saudáveis, etc.), ao mesmo tempo em que a transformam num ritual vazio, sem qualquer efeito sobre o curso do mundo." (29)
O jornal francês Le Monde Diplomatique, afirmou que os regimes globalitários são um outro tipo de totalitarismo e que eles "repousam sobre o dogma da globalização e do pensamento único e não admitem nenhuma outra política econômica, subordinam os direitos sociais do cidadão à razão competitiva, e abandonam aos mercados financeiros a direção total das atividades da sociedade dominada." (30)
Cumpre salientar que as semioses do mundo global, em particular dos regimes globalitários, são simulacros que não ressaltam duas propriedades peculiares a todo signo, que já haviam sido destacadas por Charles Sanders Peirce: que o signo sempre representa parcialmente o seu objeto e que o pode representar falsamente (31). A realidade significada é sempre maior que seu representamem e não existe semiose capaz de esgotar os interpretantes que um signo pode suscitar.
Por outro lado, as infovias podem se tornar espaço valioso para movimentos de subjetivação, para a articulação das lutas sociais por exercícios de liberdade mais amplos. As redes digitais permitiram, por exemplo, a projeção de muitos grupos contestadores dos mais variados matizes, entre os quais se encontram: os que propugnam o fim do militarismo e a extinção progressiva do trabalho; os que combatem certos mecanismos publicitários de produção de subjetividade; os que combatem o fosso cada vez maior entre ricos e pobres, bem como as políticas de restruturação empresarial que geram desemprego; os que defendem as causas das minorias; os hackers que defendem uma outra política de acesso à informação e a socialização de conhecimentos que permanecem nas mãos de grandes empresas e órgãos políticos, o que impede o real exercício da ampliação da liberdade dos cidadãos que fica, assim, tolhida em benefício do acúmulo de capital das empresas e da reprodução de hegemonias políticas, entre muitos outros.
2.2 Capitalismo Globalizado - As Bases da Atual Acumulação Capitalista.
Ao analisar o capitalismo no século XIX, Karl Marx já o considerava em sua dimensão de globalidade. Contemporaneamente, entretanto, assistimos a ocorrência de fenômenos econômicos, políticos e sociais inusitados que nos levam a considerar que o capitalismo globalizado entrou em uma nova etapa que requer novas categorias para ser compreendido adequadamente. A fim de considerar as alterações por ele operadas na produção de subjetividade em razão de novas formas de acúmulo de valor, explicitaremos a noção de mais-valia virtual, a ciência como valor econômico e a produção de subjetividade como condição da reprodução do capital, destacando a conversibilidade dos signos em capitais.
2.2.1 A Mais-Valia virtual
Na primeira metade de nosso século, assistiu-se a emergência do capitalismo monopolista. Didaticamente escreve Laurence Harris que "com a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, o método dominante de produção também se modifica: a produção da mais-valia absoluta dá lugar à extração da mais-valia relativa, que se torna a mola propulsora da acumulação quando a maquinaria domina o processo de trabalho , caracterizando-se aquilo que Marx chamou de submissão ou sujeição real do trabalho ao capital. E, com a produção mecanizada do capital monopolista, a produção se torna ainda mais altamente socializada que na etapa anterior: o trabalho produtivo chega a tomar a forma de trabalhador coletivo, uma força de trabalho integrada toma o lugar dos trabalhadores artesanais individualizados." (32).
Atualmente, a partir do último quarto do século, tanto a revolução tecnológica em curso (que envolve a robótica, a informática a biotecnologia, a tecnologia dos materiais e a sofisticação dos aparelhos orientadores da opinião pública e agenciadores de comportamentos) quanto a organização dos mega-conglomerados e dos mega-mercados, bem como o super-desenvolvimento dos capitais especulativos e dos signos como mercadorias (de softwares a logomarcas ou códigos genéticos sob copyright) imprimiram uma série de novas determinações ao capitalismo. Nesta passagem do capitalismo monopolista a uma nova fase do capitalismo globalizado também se verifica uma modificação no método dominante de produção e surgimento de uma nova forma de extração de mais-valia.
A forma de exploração do trabalho sob o capitalismo recebeu classicamente o nome de extração de mais-valia, extração do valor a mais que resulta da diferença entre o valor do produto final e o valor do capital consumido no processo produtivo (33). Como somente o trabalho produz valor, esse excedente é um valor produzido pelos trabalhadores; contudo, ele é apropriado pelo capitalista, que detém o controle do capital empregado no processo produtivo. O cálculo, em geral, da taxa de mais-valia resulta da equação que tem por dividendo o montante deste excedente produzido e por divisor o capital dispendido no pagamento do trabalho.
Na atual economia observa-se que as várias formas modernas de extração de mais-valia (absoluta, relativa) podem coexistir com a extração de mais-valia virtual. A acumulação de mais-valia virtual é possível a) graças à reprodução virtual de produtos finais intangíveis ou ao pagamento pelo direito de uso signos que se convertem em mercadorias, como softwares, por exemplo, que são conhecimentos criativamente digitalizados em linguagens binárias de programação, ou outras informações ordenadas significativamente pelo trabalho intelectual humano, passíveis de direitos autorais, como patentes sobre códigos genéticos alterados por engenharia genética, por exemplo; b) graças à venda de mercadorias com preços elevados frente aos produtos similares, em razão de que sobre elas estejam aplicados determinados signos que operam socialmente como interpretantes valiosos por certa parte do mercado consumidor, que paga mais para desfrutar de tal propriedade sígnica vinculada ao objeto, por exemplo -, c) ou pela aplicação performativa de signos sobre outros signos que possuem caráter econômico de representação de valor - sejam aqueles signos provenientes de atos que, juridicamente, tem valor legal (elevação de taxas de juros pelo Banco Central ou elevação de coeficiente de aproveitamento construtivo em áreas de uma cidade em razão de mudanças sígnicas em seu Plano Diretor Urbano, por exemplo) ou provenientes da elevação do preços de ações, por exemplo, em razão da credibilidade dos agentes econômicos sobre o seu desempenho no mercado.
Em cada um desses casos, a mais-valia virtual se produz por mediações distintas, seja em movimentos de produção de bens intangíveis seja em movimentos de produção de subjetividade, como analisaremos em detalhe posteriormente. Cabe antecipar contudo - para esclarecer o caráter virtual desta mais-valia - que, como o processo produtivo se conclui no consumo final do produto, no caso da indústria de software, por exemplo, o montante do excedente produzido está diretamente ligado à quantidade de cópias reproduzidas e vendidas, o que depende diretamente, por sua vez, do valor de uso do produto comparado a outros. A reprodução das cópias não requer o trabalho vivo que foi necessário para produzir o software pela primeira vez. Contudo, todo o montante acumulado com sua reprodução somente é possível graças ao trabalho vivo que o fez surgir como um bem intangível que possui valor de uso e de troca, embora a troca não implique na alienação do bem por parte de quem detém o direito de cópia sobre ele. E mesmo que todas as cópias e a matriz original deste software fossem fisicamente destruídas, o software - enquanto bem intangível - ainda seria propriedade legal daquele que tem sobre ele o direito de cópia. Por fim, qualquer pessoa que reintroduzisse em um computador - através de digitação ou de digitalização - todas as linha de código deste software (que fora fisicamente extinto) gerando novamente uma cópia em linguagem binária que pudesse operar nesta máquina, deveria pagar direito de cópia àquele que detém o copyright. Deste modo, a fonte de toda a mais-valia extraída com a reprodução deste bem depende é o trabalho vivo que o fez surgir como bem intangível. Não se trata pois de uma mais valia absoluta ou relativa, que dependem de trabalho vivo comandado na produção de uma nova unidade do produto, mas de uma mais valia virtual que depende deste trabalho vivo uma única vez para fazer surgir o produto (34). Assim, ainda de modo embrionário percebe-se que a produção da mais-valia relativa vai sendo dialeticamente superada em fenômenos de geração de mais-valia virtual.
Importa destacar que o volume do capital acumulado pelas diversas mediações desse mecanismo de extração de mais-valia virtual cresce a cada ano e que ele resulta, em sua base, da exploração do trabalho intelectual humano. Apenas como exemplo, analisemos o fato de que o Windows 95 vendeu 45,8 milhões de cópias até dezembro de 1996, cujos usuários foram registrados pela Microsoft. O produto comercializado é o programa, que resultou do trabalho intelectual de uma grande equipe que o produziu, uma única vez, como um valor de uso. Não há necessidade do mesmo volume de tempo e de trabalho intelectual para reproduzir uma segunda cópia. Qualquer pessoa, clicando um mouse, pode fazer novas cópias daquele programa. Assim, toda a mais-valia arrecadada com as 45,8 milhões de reproduções do programa se deve ao trabalho originário de sua produção. Virtualmente, entretanto, esta mais-valia pode continuar se avolumando enquanto outro produto com similar valor de uso não se sobrepuser a este, que continuará, assim, sendo multiplicado e comercializado. Concretamente, a reprodução do programa em um novo disquete também supõe algum trabalho que possibilita comercializar, sob esse formato, aquele software. Sobre esse trabalho também pode ocorrer exploração. Contudo, com o aprimoramento das infovias, a tendência é que este trabalho de reproduzir o programa se resuma à atividade exercida pelo próprio usuário ao fazer um download do arquivo que deseja adquirir, após ter realizado um pagamento digital pela cópia, como já vem ocorrendo atualmente a partir de muitos websites.
A extração de mais valia virtual se torna a mola propulsora da acumulação quando o trabalho científico se transforma na principal fonte de valor econômico, produzindo informações que, como bens intangíveis, são propriedade privada do capital. Em especial essa extração de mais valia virtual ocorre, entre outros casos: a) quando essas informações podem se converter em produtos que regulam o funcionamento de máquinas, como softwares ou produtos que orientam fluxos eletrônicos, magnéticos e fóticos em computadores, vídeos, cd-players, etc., reproduzindo representações sígnicas audiovisuais; ou b) quando essas informações, como códigos genéticos alterados, regulam o desenvolvimento de organismos vivos, vegetais ou animais, como bactérias utilizadas em processos industriais, plantas e animais biotecnologicamente alterados para fins de alimentação de outras cadeias, de ampliação de insumos industriais, etc.
No caso dos bens intangíveis digitais, isto é organizado em bytes - como softwares, registros de sons e imagens - a sua reprodução, graças à informática e à robótica, não depende mais de trabalho produtivo imediato, uma vez que ele é replicado pela própria ação do consumidor, possibilitando que o simples acionamento de um software produza milhões de cópias de si mesmo.
Um significativo exemplo dessa reprodução operada pelo consumidor ocorreu no final de agosto de 1996, na disputa entre Microsoft e Netscape que produzem browsers necessários à navegação na Internet. A Netscape que contava na época com algumas centenas de empregados diretos e US$ 81 milhões em vendas, é proprietária do Netscape Navigator - o programa mais utilizado para navegação na rede. A Microsoft temendo o crescimento da concorrente - que pretende produzir um sistema que possa substituir o Windows possibilitando a captura de informações na Internet, em redes corporativas e até em computadores pessoais conectados remotamente - iniciou em dezembro de 1995 a produção de um potente browser que seduzisse os usuários da Internet a abandonarem o Netscape Navigator. Em agosto de 96 a Microsoft lançou a terceira versão de seu browser o Explorer 3.0, e o distribuiu gratuitamente através da rede. Somente na primeira semana um milhão de usuários - espalhados por todo planeta, mas conectados à rede - copiaram o programa, isto é, fizeram o seu download. Traduzindo isso em uma linguagem industrial, foram produzidas um milhão de ferramentas com valor de uso e troca gratuitamente, que foram distribuídas através do planeta inteiro, com o simples clicar de um mouse. Ao mesmo tempo em que o produto da Microsoft era distribuído de graça - aos milhões - pela rede, as ações da Netscape, empresa concorrente, caíram à metade do valor que possuíam em dezembro de 1995, ao passo que as ações da Microsoft batiam recordes. Duas semanas depois do lançamento do novo produto, Jim Clark - o fundador da Netscape - anunciou o lançamento próximo de um novo software, que poderá estar em tudo o que tenha um monitor e uma placa modem - possibilitando utilizar a Internet como uma espécie de TV e revolucionar a estrutura dos computadores que funcionarão conectados à rede e sem possuir, não necessariamente, um disco rígido, além de possibilitar video-games on line e aparelhos celulares para navegar no Web. A iniciativa simbólica de mostrar força impediu uma queda maior das ações. Por fim, após uma batalha judicial histórica, o Windows 98 integrou o sistema windows com o browser Internet Explorer da Microsoft para navegação na internet, atingindo antes que os concorrentes o objetivo de fundir o browser e o sistema operacional em um único software, cujas réplicas - que praticamente não demandam custos com novo trabalho produtivo - serão comercializadas ampliando o lucro virtual da empresa e mantendo o seu padrão de linguagem como padrão universal.
Ao distribuir seus produtos de graça pela rede, a Microsoft provocou a queda de acumulação de mais-valia virtual dos concorrentes que não tiveram um maior número de réplicas de seus produtos vendidos, como também uma queda da mais-valia virtual obtida com venda de seu próprio browser, mas ganhou capital virtual pela elevação de suas ações no mercado e, o mais importante, manteve o seu padrão de linguagem como referência para a sintaxe universal, introduzindo inclusive alterações na linguagem Java, criando a situação que certos objetos produzidos nesta linguagem pudessem ser visualizados com o Internet Explorer, mas não com o Netscape Navigator, produto da principal rival na disputa pela supremacia na Internet. Respondendo ao processo judicial sobre esta alteração da linguagem Java, a Microsoft afirmou que se o Java é uma linguagem, então é possível criar-se novos termos para novos usos e que se isso não fosse permitido ela não seria mais uma linguagem, mas um sistema acabado e limitado, o que impediria o desenvolvimento tecnológico na área de softwares. Assim, ao distribuir gratuitamente o seu software e difundir o seu padrão, a Microsoft criava a situação de que os novos produtos elaborados sob este padrão não pudessem ser satisfatoriamente abertos pelo software dos concorrentes, o que lhe conferia uma alta vantagem comparativa frente aos demais.
Embora a produção e comercialização de softwares seja um bom exemplo de fenômenos de uma nova economia de bens intangíveis, o conhecimento se converte virtualmente em capital através de muitas outras mediações. Atualmente, com a produção robotizada e informatizada sob os movimentos do capital globalizado, a produção se torna virtualmente ainda mais socializada que na fase anterior - no sentido que possui uma cadeia com etapas mais diversificadas e complexas, embora os sujeitos dessas etapas não estejam todos juntos em uma linha de montagem em um mesmo local. Os produtos que trafegam nas redes informatizadas, por exemplo, necessitam ser convertidos em informação, isto é, em conhecimento organizado digitalmente, sem o que esta cadeia produtiva não pode operar. Estas mudanças implicam em uma nova administração empresarial do conhecimento, de modo a preservar a capacidade produtiva e inovadora da própria empresa que depende do conjunto dos conhecimento de seus empregados sendo estrategicamente necessário socializá-los. Em outras palavras, os conhecimentos dos produtores e consumidores são também força produtiva da empresa que sendo adequadamente gerenciados possibilitam, mediatamente, ampliar a extração de mais-valia. Destaque-se ainda que a polivalência do trabalhador em ambientes de tecnologia flexível exige uma socialização dos conhecimentos indispensáveis ao funcionamento de várias etapas do processo produtivo e não somente o desenvolvimento de uma especialidade, embora a qualificação específica de alguns trabalhadores em algumas áreas estratégicas seja o diferencial na vitória de algumas empresas sobre as suas concorrentes. Qualquer conhecimento, contudo, produzido por qualquer funcionário ou consumidor pode ser relevante desde que contribua no aprimoramento da produção de valor da empresa. Em outras palavras, o conhecimento e a criatividade dos trabalhadores - entre outros aspectos - configuram-se também como capital da empresa a ser gerenciado e socializado. Na abertura de uma nova unidade produtiva em outra localidade a empresa poderá valer-se de todo o conhecimento que ela mesma dispõe quando o gerencia adequadamente.
Enfim, pode-se ainda dizer que na atual etapa de globalização a socialização da reprodução dos bens intangíveis torna-se cada vez mais ampla. O trabalho fácil de multiplicar, ilegalmente, informações gera movimentos de socialização de riqueza. O exemplo mais contundente neste campo são as cópias piratas de softwares, audiocassetes, videocassetes, etc, que circulam em mercados proibidos de uma economia informal que movimenta bilhões de dólares no mundo todo. O consumo ilegal bens intangíveis, através de cópias piratas, permite movimentos ilegais de acumulação de capitais e de socialização do consumo a custos reduzidos.
Pode-se, concluir, que os fenômenos de capital virtual peculiares ao capitalismo atual, para serem compreendidos adequadamente, necessitam de uma nova economia política capaz de considerar em que medida não apenas a multiplicação virtual de produtos intangíveis são fonte de acúmulo de capital ou de sua socialização, mas como até mesmo alterações de linguagens e a difusão de padrões capazes de operar com elas - mesmo que sendo através da distribuição gratuita dos produtos da empresa - ampliam o capital da companhia, ou ainda, como os conhecimentos do conjunto dos trabalhadores de uma dada empresa pode ser gerenciado de modo a ampliar o acúmulo de capital da própria companhia.
2.2.2 A Ciência Como Valor Econômico
Nesta etapa do capitalismo globalizado, estamos frente a um aparente paradoxo. Se a fantástica terceira revolução tecnológica ampliou espetacularmente a produtividade, se é maior a produção de riqueza, porque juntamente com os indicadores de crescimento econômico também aumenta o número de pobres enquanto a riqueza se concentra cada vez mais nas mãos de uma parcela cada vez menor? A resposta é elementar: o capital precisa, cada vez menos, de trabalho-vivo para produzir cada vez mais capital. Assim, o tempo livre engendrado por esse avanço tecnológico não se converte na emancipação do conjunto da humanidade, mas no drama da exclusão das maiorias do processo produtivo formal e da participação da riqueza nele produzido.
O poder do conhecimento em aumentar a produtividade, inovando nas tecnologias, gerou a situação atual em que dá mais lucro ao capital explorar menos trabalho-vivo, isto é, manter menos trabalhadores empregados. Este fenômeno que Marx supôs nos Grundrisse em 1857 que ocorreria na fase superior da Grande Indústria, descrevendo-o como Disposable Time, disponibler Zeit, Nicht-Arbeitszeit, freie Zeit ou Nicht-Arbeitszeit (35), isto é, como o tempo disponível ou tempo de não-trabalho, tempo de trabalho que o capital não poderia mais empregar produtivamente de modo competitivo porque a ciência se tornaria a grande fonte produtora da riqueza abaixando o tempo médio de trabalho necessário à produção das mercadorias, sendo a incorporação da tecnologia o diferencial entre a vida e a morte da empresa capitalista na competição do livre-mercado, é o que assistimos hoje. Se uma empresa não investe em pesquisa e desenvolvimento, não inova nas tecnologias - que indiretamente provocam uma redução dos trabalhadores por ela empregados para produzir o mesmo volume de mercadoria ou serviço - ela perde a concorrência, sendo derrotada pela empresa maior que a incorpora, dominando um segmento maior do mercado e desativando unidades produtivas, porque a alta produtividade das unidades tecnologicamente mais avançadas que permanecem é capaz de abastecer todo o mercado consumidor existente que era anteriormente atendido pelas unidades agora desativadas.
Para Marx, na fase superior da grande indústria, que seria a última etapa do modo de produção capitalista, as máquinas realizariam o mesmo trabalho que antes era feito pelo trabalhador e o capital colocaria a seu serviço todas as ciências. Neste momento, as invenções se transformariam em um ramo de atividade econômica, uma vez que a aplicação da ciência à produção é o que possibilitaria aumentar a magnitude do lucro, reduzindo o tempo de trabalho necessário e diminuindo o volume de trabalho vivo necessário à produção de um mesmo volume de mercadoria. Aqui, o volume de trabalho vivo empregado se tornaria cada vez menos importante face à possibilidade de gerar riqueza pelo emprego da ciência no processo produtivo (36). Desse modo, o Disposable Time, se configuraria como um tempo de trabalho não-ponível no processo produtivo, não realizável como trabalho produtivo, sob a lógica de acúmulo do capital, uma vez que o scientific power predominaria como fonte criadora de valor.
De fato, graças a alta produtividade do capitalismo possibilitada pelo desenvolvimento científico e tecnológico, gerando um volume maior de riqueza com menos trabalho, amplia-se o tempo de não-trabalho para toda a sociedade. Assim, como na hipótese de Marx, a riqueza de uma nação nem se resume aos produtos tangíveis que, como tal, possam ser mensurados economicamente, como queria Adam Smith, nem nas forças produtivas que possibilitam ampliar o volume de capital, mas ao tempo livre possibilitado pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Quanto mais rica é uma sociedade, maior é o disposable time de todos. Quanto menos tempo necessitam os homens trabalhar para produzir tudo o que é necessário para satisfazer as demandas de uma sociedade, mais rica ela é. Contudo, na mesma medida em que a riqueza da sociedade aumenta, em igual medida ela se concentra sob a lógica do capital. Alguns detém a maior parte da riqueza, ao mesmo tempo em que o valor das mercadorias se reduz e uma parcela cada vez maior da sociedade vai empobrecendo, sendo excluída do processo produtivo e de consumo.
Neste novo cenário a realização do lucro possui novos condicionantes. O necessário investimento de capital em pesquisa, desenvolvimento e em capital fixo (como maquinarias, por exemplo) e em produção de subjetividade, como analisamos, somente pode ser compensado pela recuperação futura deste investimento, quando da venda do produto final, que será produzido em maior quantidade e melhor qualidade, empregando menos volume de trabalho vivo por unidade produzida. Considerando-se que, na competição entre capitais, os que ampliam a produtividade em razão de inovação tecnológica abaixam o valor da mercadoria - se comparada ao capital que a produz com tecnologia inferior, uma vez que tal avanço tecnológico possibilita produzir abaixo do tempo médio socialmente necessário à produção daquela mercadoria - e, se considerarmos que essa competição tende a se acirrar na medida em que mais se investe em pesquisa e desenvolvimento, têm-se então uma tendência à queda na taxa de lucro na produção de bens tangíveis. Ademais, o volume geral gasto em salário é cada vez menor, sendo também cada vez menor o potencial de consumo no mercado, ao passo que o volume de mercadorias produzido com menos trabalho vivo é proporcionalmente cada vez maior, o que provoca uma queda do valor da mercadoria - não apenas de seu preço - e, em conseqüência, uma tendencial queda na taxa de lucros sobre bens tangíveis. Paralelamente à queda da taxa de lucro têm-se um aumento da magnitude do lucro para as empresas que, primeiramente, se beneficiam da inovação tecnológica ou que mais eficientemente atuam na produção de subjetividade, dado o volume ou escala de mercadoria por elas vendida.
Ora, como o grande capital tem mais recursos para investir em tecnologia que as pequenas e médias empresas e faturam um volume superior em vendas, todos sabem qual é o final do jogo sob uma economia neoliberal desregulamentada: a concentração maior da riqueza com uma exclusão cada vez maior de trabalhadores - têm-se o horror econômico, descrito Viviane Forrester (37). Nesta sociedade que equivocadamente apoia os ajustes neoliberais em nome da liberdade que tal projeto efetivamente aniquila para as maiorias, alguns senhores que dominam a riqueza no mundo podem realizar exóticos "gestos de caridade", como o do mega-especulador George Soros que pôde se dar ao luxo de fazer uma doação de US$ 500 milhões de dólares à Rússia - sendo que a ex-URSS detinha 4 milhões de pobres em 1987 e agora possui, além de uma economia de livre-mercado, cerca de 120 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza absoluta, conforme um dos últimos relatórios da ONU.
Não se trata de uma crise econômica temporária para a qual a expansão da nova onda tecnológica, em especial da Tecnologia da Informação, trará alguma solução ao disseminar meios de produção virtuais - como softwares - a preços baixos por todo o mundo (38). A disseminação da informatização em todos os setores da economia, mesmo no setor de comércio e de serviços, tem provocado desemprego na grande maioria dos países. O número de postos de trabalho criados por essa tecnologia tem sido muito inferior ao número de postos que ela vem fazendo desaparecer. Trata-se, isto sim, de uma nova configuração do capitalismo, que dependerá cada vez menos do trabalho vivo para ampliar-se e que, por isso, distribuirá cada vez menos recurso na forma de salário, significando que a concentração de capital será cada vez maior no mundo enquanto perdurar este modelo capitalista globalitário.
2.2.3 A Produção de Subjetividade como Mediação de Reprodução do Capital
Outro aspecto essencial dessa nova fase do capitalismo é que ele se tornou definitivamente um sistema produtor não apenas de mercadorias, mas também de subjetividades - modelizando semioticamente desejos, afetos, necessidades, padrões estéticos, éticos e políticos, intervindo diretamente no inconsciente das pessoas com a finalidade de reproduzir seus próprios ciclos. Como uma das mediações recorridas para tanto, distribui gratuitamente as peças publicitárias que, sendo consumidas, têm por objetivo tanto orientar o indivíduo ao consumo ou usufruto pagos de outras peças não-publicitárias quanto agenciar outras formas de comportamento.
Já analisamos anteriormente que o capitalismo atual se configura simultaneamente como um modo de produção econômico e um modo de produção de subjetividades em escala planetária. Economicamente, ocorrem processos de produção de subjetividades tanto dos produtores (39) quanto dos consumidores, com as subjetividades se identificando a partir das semioses do capital operadas através das mídias de massa. A subjetividade exposta aos agenciamentos da cultura de massas torna-se, assim, um produto vivo, cujas principais práticas discursivas e não discursivas estão engastadas em uma rede que realimenta a produção e reprodução capitalistas.
Em Revolução Molecular, Félix Guattari considerou inúmeras linhas do processo de globalização contemporâneo sob as semióticas do capital. O Capitalismo Mundial Integrado - CMI, como Guattari o representa - que vai tomando conta de todas as áreas do planeta configura-se não apenas pela integração internacional dos capitais e a constituição de mega-mercados, mas especialmente pela modelização da subjetividade dos indivíduos. Para tanto o capital - na figura de seus agentes - vale-se do saber moderno que, tomando o ser humano como objeto de estudo, o esquadrinhou sob recortes da psicologia, sociologia, antropologia, da pedagogia e das ciências humanas em geral. Este saber, como instrumento de exercício de poder, norteia a utilização de novas tecnologias de comunicação de massa e informatização, bem como a utilização de novos Equipamentos Coletivos para uma efetiva intervenção sobre o inconsciente das pessoas mobilizando desejos, anseios e outras intensidades, agenciando comportamentos estratificados segundo um conjunto de códigos previamente estabelecidos a partir dos quais as performances individuais se desenrolam em função dos interesses daqueles que as agenciam. Como afirma Guattari, "os Equipamentos Coletivos, os meios de comunicação, a publicidade não param de interferir nos níveis mais íntimos da vida subjetiva" (40). A publicidade, por exemplo, apoiada em pesquisas de mercado e opinião, em pesquisas e teorias psicológicas e sociológicas, entre outras, é um fenômeno da interação desses conhecimentos com a finalidade de provocar ações práticas e/ou discursivas, capturando qualquer linha de fuga, recuperando-a para sua espiral de vendas ou agenciamentos de votos - entre outras práticas. A dominação de massa se realiza pela mediação semiótica de agenciamentos que instigam o indivíduo a diferenciar-se da própria massa, assumindo referências balizadas pela semiose hegemônica vinculadas à fama, ao poder, ao sucesso, à riqueza, ao status, à segurança, etc. Tais balizas e anseios vinculam-se às suas opções profissionais ou de consumo, à competição, à priorização do privado, ou à sua postura política, entre outras práticas. Assim, como resultado dos complexos processos de intervenção sobre as subjetividades têm-se uma modelização de comportamentos na esfera da produção e do consumo, das relações cotidianas micropolíticas em todas as esferas, bem como, nas ações políticas em nível global, estrutural com identidades constituídas a partir de várias estratificações modelizadas pelas semióticas capitalísticas. Sobrecodificam-se as relações de poder no cotidiano capitalizando tais conjuntos de força difusos em toda a sociedade visando a manutenção do modelo capitalista global de acúmulo privado de capital, poder, prestígio e outros signos diferenciadores e amplificadores do poder.
Analisando a produção econômica e a produção da subjetividade no sistema capitalista, Guattari percebe a ocorrência de uma semiotização das relações de poder em ambos os níveis, que são interativos. Os sistemas de signos que regem diversos domínios da vida ficam modelizados sob os códigos do Capitalismo Mundial Integrado. O capital, afirma Guattari,
"...é muito mais que uma simples categoria econômica relativa à circulação de bens e à acumulação dos meios econômicos. É antes uma categoria semiótica que se refere ao conjunto dos níveis da produção e ao conjunto dos níveis de estratificação dos poderes". "O exercício do poder por meio das semióticas do capital tem como particularidade proceder concorrentemente, a partir de um controle de cúpula dos segmentos sociais, e pela sujeição de todos os instantes de cada indivíduo.(...) A sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência e a ressonância de todos os modos particularizados de subjetivação.(...) O conjunto de valores de desejo é reorganizado numa economia fundada na dependência sistemática dos valores de uso em relação aos valores de troca, ao ponto de fazer com que esta categoria de valores de uso perca seu sentido. (...) A ordem capitalista pretende impor aos indivíduos que vivam unicamente num sistema de troca, uma truduzibilidade geral de todos os valores para além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado." (41)
Assim, sob os códigos do capital territorializa-se a ética, a política, a economia e a maioria dos órgãos do corpo social; modeliza-se a relação dos sujeitos entre si e com os objetos, produzindo-se-lhes significações, sentidos e códigos de interação. As mídias de massa desempenham importante papel neste movimento de sobrecodificação semiótica e de produção de subjetividades.
Salienta Guattari que contemporaneamente "os antigos territórios do Ego, da família, da profissão... etc, desfazem-se, uns após outros - se desterritorializam." E conclui: " é porque o inconsciente moderno é constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos Equipamentos Coletivos, pelos especialistas de todo tipo, que não podemos mais nos contentar hoje em defini-lo simplesmente em termos de entidade intra-psíquica, como fazia Freud..." (42)
Assim, a produção de subjetividade vai muito além da mera divulgação de uma formulação ideológica, de uma intervenção no plano consciente cognitivo da conceituação/representação do mundo. A modelização da subjetividade é realizada, fundamentalmente, por uma intervenção sobre o inconsciente, que para Guattari é um território aberto por todos os flancos a interações sociais, econômicas, políticas e de outras ordens, que agenciam comportamentos através de diversas semióticas . O processo de substancialização das matérias e formalização das funções gera estratos que articulam formas de expressão - usar determinada roupa, por exemplo - com determinadas formas de conteúdo - o status social vinculado àquela indumentária - sobrecodificada pelas semióticas significantes modelizadas sob o capital. Tal inconsciente, essencialmente, não está centrado na subjetividade humana, mas participa de diversos fluxos de signos, fluxos sociais e materiais. É um espaço anterior à oposição realidade-representação, anterior ao plano das teorias e ideologias - modelizáveis semioticamente. E, fundamentalmente, é o espaço onde se entrelaçam efetivamente os motores da práxis, o lugar onde interagem componentes semióticos e diversos sistemas de intensidades, agenciando fluxos de desejo e devires. O inconsciente é maquínico, e como máquina abstrata, é um nó de interações "... através do qual somos articulados a todos os sistemas de potência e a todas as formações de poder que nos cercam" (43).
Com isso, a disputa ideológica fica recolocada em novo nível. Não basta apenas tratar da compreensão teórica do real, mas especialmente reverter as espiras de agenciamento passional que capturam as linhas de fuga desterritorializantes no movimento de reprodução do capital, que para reproduzir-se, necessita produzir subjetividades. As reflexões de Guattari nos levam a concluir que sem processos de subjetivação e de singularização dos investimentos de desejo e que sem o agenciamento de uma sensibilidade ética e política - desterritorializada das semióticas do CMI - não haverá como promover agenciamentos coletivos e romper com a reprodução da espiral de acúmulo de capital e suprimir a modelização dominadora de subjetividades, principal variável da dominação de massa. É importante destacar que os signos gerados em semióticas contra-significante ou pós-significante pelos movimentos que combatem o capitalismo podem ser também recapturados em seu movimento espiral.
Tal movimento de sobrecodificação opera, politicamente, com grande eficiência. A palavra companheiro, no seio da contra-semiótica da esquerda brasileira no anos recentes, por exemplo, possui um sentido que advém da ação real de exercício de poder entre pessoas que participam de uma mesma luta social, que se solidarizam à causa dos injustiçados e que se transformam em processos coletivos. Há um sentido da condição real do outro como companheiro do mesmo, e do mesmo como companheiro do outro - uma rostidade que se desvia enquanto se deseja. O uso dessa palavra nesse sentido cria uma nova regra e portanto um significado - elemento já de uma semiótica significante. Assim os jogos de linguagem subversivos podem criar uma nova regra, alterando portanto a gramática da comunicação em um coletivo, a partir da geração de um conjunto de interpretantes agenciáveis pela expressão "companheiro". Contudo, os jogos de linguagem dominantes podem impor novas regras para qualquer expressão pela sua massiva utilização através das mídias eletrônicas, gerando novas expressões ou capturando outras expressões esvaziando-as de seus interpretantes subversivos e buscando estabelecer outras relações que aniquilem os sentidos singulares, impedindo as revoluções moleculares. A modelização da expressão companheiro, em uma das novelas da Rede Globo, sobrecodificando um gari da cidade - gago, que vivia panfleteando todas as pessoas, ingênuo e desinformado, estereotipadamente apresentado como figura de "esquerda", que chamava a maioria das pessoas de companheiro com a gagueira que o fazia pronunciar algumas vezes "co-co" e que ao final da novela se elege vereador em uma aliança com as figuras de direita da cidade - exemplifica esta recaptura da linha de fuga na espiral dominante (44). Exemplo maior destas possibilidades de modelização de signos sob a espiral capitalista foi a recuperação, que já citamos, da imagem de Che Guevara em uma propaganda do detergente Limpol. Vestido com uniforme de guerrilheiro, com um charuto na boca e chamando a dona-de-casa com o termo companheira, o personagem conclama o detergente Limpol a avançar para a luta e um pelotão de frascos do detergente atravessa a tela como uma coluna de soldados em direção ao combate. Então "Che Guevara" profere a frase final: "Hay que endurecerse contra la gordura, pero sin perder la ternura de sus manos jamás."
2.2.4 Valores de Uso e Troca Virtuais e a Produção de Subjetividade (45)
Sob a antropossemiose, os signos necessitam ser interpretados por subjetividades para que realizem o seu fim. Sob a modelização do Capitalismo Globalizado os usos dos signos tem como finalidade fundamental, no âmbito econômico, a produção de um valor de troca. Para que os signos tenham valor de troca, em muitos casos, torna-se necessariamente, previamente, a produção da subjetividade interpretadora, que confere ao signo um determinado valor. Em outros casos, um sistema eletromecânico ou biológico pode ser programado para reagir a determinados signos - como no caso de computadores que reagindo a símbolos (bytes) transformados em índices (pulsos elétricos ou intensidades magnéticas) ou bactérias reagindo a índices materiais e alterando substâncias.
Analisaremos aqui quatro possibilidades de geração de mais-valia virtual, considerando como na etapa atual do capitalismo ele produz subjetividades com vistas a concentrar ainda mais o capital.
No primeiro caso, temos a produção semiótica de imaginários, agenciando interpretantes afetivos, energéticos e intelectuais, que alteram o valor de troca de inúmeros produtos materiais.
Sendo toda mercadoria um objeto dinâmico gerador de signos, elas possuem identidades que podem ser estabelecidas a partir de pesquisas de imaginários sociais, sendo articulada às aspirações de segmentos de consumidores. Assim, ao imaginário do consumidor os produtos poderão parecer, subliminarmente ou manifestamente, capazes de realizar certas satisfações que transcendem ao que o produto efetivamente pode proporcionar. (46)
Quando o consumidor compra margarinas, tênis, shampoos, desodorantes, automóveis, etc, movido pelo desejo associado aos objetos pela mediação dos interpretantes estabelecidos pela publicidade, ele busca, primeiramente, não um valor de uso objetivo - uma vez que outros produtos similares poderiam calçar os pés, limpar e amaciar os cabelos, desodorizar o corpo, etc. - mas um valor virtualmente estabelecido pela publicidade, agenciadora de inúmeros interpretantes afetivos. Assim, quanto mais eficiente for a produção de subjetividade operada por uma empresa capitalista sobre o mercado consumidor, tanto maior será seu faturamento e consequentemente os seus ganhos.
Nestes movimentos de produção de subjetividade, o componente afetivo é cada vez mais determinante na escolha do produto, especialmente quando os similares tem as mesmas qualidades objetivas e preços semelhantes. Com a produção de subjetividade aqueles signos passam a ter uma função de uso virtual: não é qualquer tênis que pode garantir o reconhecimento social e a satisfação psicológica de possui-lo. Mesmo que outro produto tenha todas as qualidades objetivas similares, ele é suporte de um outro signo, possui uma outra marca, não cumpre a mesma função no imaginário coletivo.
Ora, como a produção destes signos e a modelização das subjetividades para que sejam consumidos exige trabalho e gastos, o custo deste valor de uso virtual agregado ao produto deve ser recuperado quando da venda do produto final (47); o aumento da demanda agenciada pela mídia confere ao produto final um novo valor de troca (48) e a ampliação do montante do lucro. Os consumidores, assim, pagam tanto pelo valor de uso objetivo do produto quanto pela realidade virtual que foi produzida, independentemente se buscam encontrar no produto a satisfação de seus desejos ou necessidades culturais pela posse ou fruição do signo (49), se simplesmente compram o objeto por "simpatia" ao imaginário que a marca agencia, por suas qualidades objetivamente funcionais ou por qualquer outro motivo.
Cabe mencionar aqui as empresas de licenciamentos e as que atuam no regime de franquias. Para aplicar sobre qualquer produto as imagens de personagens de desenhos animados - ou qualquer outra imagem sobre a qual haja direitos autorais - as empresas pagam royalties, de 3% a 10% sobre as vendas líquidas, aos proprietários desses direitos. A utilização dessas imagens incrementa a venda dos produtos. As empresas de licenciamento recebem autorização dos detém os direitos sobre os personagens para negociar o uso dessas imagens por outras empresas sobre os produtos ou em campanhas publicitárias. No Brasil, o mercado de licenciamento movimenta US$ 750 milhões por ano e vem crescendo, também anualmente, cerca de 25% (50). No caso das franquias ocorre praticamente a mesma coisa. Uma empresa concede o direito para que outras apliquem sobre seus produtos o signo daquela. Tal empresa passa a receber parte do faturamento das demais, simplesmente porque estas usam sua logomarca.
No segundo caso, a produção de subjetividades leva os indivíduos a pagarem por signos que não dependem de um outro produto como sua base material de suporte. A venda de informações privilegiadas, por exemplo, enriquece pessoas que atuam como informantes de empreiteiras em concorrências públicas ou em negócios milionários envolvendo ações nas bolsas de valores. Podemos, ainda considerar os serviços de informação por telefone, em que as pessoas pagam para ouvir certas mensagens. Anualmente no Brasil, esses serviços movimentam R$ 120 milhões, sendo que mais da metade das chamadas envolve sexo, esoterismo e sorteios (51). Nos Estados Unidos, por sua vez, somente as linhas telefônicas voltadas a conversas eróticas faturaram em 1996 a quantia de US$ 750 milhões (52).
No terceiro caso, a produção de subjetividade envolve dispositivos jurídicos que asseguram legalmente uma nova interpretação da realidade como sendo a interpretação válida. Assim, pode ocorrer a transformação do valor de uso e troca de uma área urbana pela sua sobrecodificação sígnica legal, quando o Plano Diretor da cidade, que normatiza o uso dos espaços urbanos, é alterado. Assim, no planejamento urbano governamental, a manipulação de signos - sob os códigos performativos legais - possibilita ampliar ou diminuir valor de troca a certas áreas da cidade. Por exemplo. Se uma Zona Residencial possuía um coeficiente 1 de aproveitamento (ZR1) que possibilitava ao proprietário construir 100 m² em seu terreno, valendo o metro quadrado US$ 500, valia seu terreno US$ 50.000. Mas se o prefeito muda um signo no Plano Diretor, transformando a ZR1 em ZR5, agora é possível construir 500 m² naquela mesma área, valorizando-se o terreno, que se não passa mecanicamente a custar US$ 250.000, pelo menos atinge uns US$ 150.000 para as construtoras que desejam fazer ali um pequeno prédio (53). Se outra parcela da sociedade que não concorda com aqueles dispositivos legais agir contrariamente à lei, será usada a força para que sua conduta seja disciplinarizada de acordo com a semiose hegemônica. A mudança de um número em um papel não altera a realidade objetiva das áreas urbanas, mas altera objetivamente a realidade virtual que determina a organização da cidade, em razão da antropossemiose que o envolve em sua interpretação.
No último caso, analisemos a situação em que um signo provoca a alteração de um outro signo, sob alguma proporção, alterando o valor de troca deste outro signo - como ocorre com as aplicações financeiras de investidores externos e os processos de especulação. Um investidor externo, por exemplo, traz uma certa quantia para o Brasil a fim de aplicar no sistema financeiro que mantém elevadas taxas de juros. Ele converte um signo (moedas em dólar) por outro signo (moedas em reais) a partir de uma proporção fixada para o câmbio. Em seguida investe seu dinheiro adquirindo quotas de uma aplicação. A valorização dessas quotas é regulada por uma taxa de juros definida pelo Banco Central. Assim, o seu capital se amplia mediante a alteração de três signos: o da taxa de juros, o valor da quotas e o do câmbio, sendo suas moedas em dólar determinadas por esses três signos. Assim, por exemplo se houver uma desvalorização do câmbio que seja maior do que foi a valorização de sua aplicação em razão da taxa de juros, ocorrerá que ao resgatar sua aplicação ele receberá um valor maior em reais do que o valor que aplicou, mas ao converter seus reais por dólares receberá menos dólares do que havia trazido. Assim, a modelização de alguns signos altera ou diminui o valor capital que, na operação analisada, busca se valorizar convertendo-se de um signo a outro. Algo similar ocorre nas bolsas de valores, embora ali a valorização ou desvalorização dos papéis dependa não apenas das condições objetivas das empresas negociadas, mas da confiança do mercado em um conjunto bem mais amplo de fatores.
A sobrevalorização pode ocorrer nestes casos porque sobre os títulos e ações, que são signos, aplica-se um outro signo que os modeliza - seja com a vigência de contratos juridicamente estabelecidos (taxas de juros) ou com a força de mecanismos de indução social (convicção na elevação das ações) - sob a lógica da competição e do lucro. Como sobre as taxas de juros ainda é possível um controle objetivo pelos bancos centrais - não sendo possível, por outro lado, determinar-se do mesmo modo a convicção dos mercados - os bancos centrais podem desenvolver uma política de aumentar a taxa de juros para forçar a queda de especulação com ações ou para manter investidores externos no país. As tentativas governamentais em tranqüilizar os mercados, nada mais são do que um esforço em gerar interpretantes favoráveis nos agentes econômicos sobre seus investimentos a fim de que mantenham suas posições de investimento no país.
É em razão dessas quatro possibilidades de os signos se converterem em capital que o papel da mídia - instrumento de produção de subjetividades e mediação da reprodução do capital virtual e objetivo - é cada vez maior na orientação dos vetores econômicos e mesmo na produção de certas tendências ou resultantes (54), simplesmente modelizando signos, gerando interpretantes sobre economias, planos econômicos, produtos, etc.
Assim, a disputa por mercados implica atualmente não apenas a efetivação do produto, mas o agenciamento, no consumidor, do desejo ou necessidade de fruir ou possuir determinado produto de determinada empresa, identificado com certo signo. Tal momento de modelização do consumo - promovido por semióticas publicitárias - é condição do giro do capital. Partindo desta análise é preciso reconhecer que enquanto for possível manter a procura de um determinado objeto com propriedades imaginárias, tal objeto continuará possuindo o valor que o "mercado" estabelece. Ocorre pois que todo objeto pode possuir não apenas um valor-de-uso objetivo, mas também um valor-de-uso virtual e que havendo a modelização do consumo esse objeto ou serviço com valor de uso virtual pode ser trocado por dinheiro, completando o giro do capital real e possibilitando o lucro. A mediação da propriedade privada do signo - que se realiza como marca registrada, o copyright (55), a patente do programa de computação, ou do design, ou do código genético alterado que origina novas espécies tanto vegetais quanto animais - é a peça-chave para que esse capital virtual - informação com valor de uso não objetivado que poderá se objetivar ou não a partir de inúmeros projetos circunstanciais - possa ser aplicado, apenas pelo grupo que legalmente o detém, tanto na ampliação de mais capital objetivo quanto virtual.
Assim para compreender-se corretamente o giro do capital, nesta etapa do capitalismo globalizado, considerando-se os processos de produção de subjetividade, há que se considerar: a) tanto o capital investido no processo produtivo da mercadoria - o que exige, além da consideração clássica dos gastos em capital constante (matérias-primas, outros insumos e instrumentos de trabalho) e capital variável (a força de trabalho), destacar também os dispêndios na geração de novas tecnologias, que supõem necessariamente pesquisas científicas e produção de novos saberes; b) como também o capital investido na produção de signos publicitários (que são determinantes qualitativos das mercadorias ou serviços) replicados nas diversas mídias, que modelizem a subjetividade dos consumidores à aquisição de certos signos e à não-aquisição de outros, deste ou daquele produto que os suportem, a valerem-se dos serviços prestados por esta ou aquela empresa. Isto é, trata-se também de considerar o capital investido na criação de imaginários e realidades virtuais em que se mediatizam o movimento de consumo e a disputa por mercados.
Considerações Finais
Como um herói de tragédia grega, o capitalismo vive sua epopéia. A qualidade que o fez triunfar converte-se na sua própria falha trágica. O movimento de acúmulo e reinvestimento buscando melhores taxas de lucro está chegando ao ápice de concentração, sendo gerenciado por algumas centenas de mega-conglomerados transnacionais que graças à automação, informática e biotecnologia dependem cada vez menos de trabalho vivo gerando um lucro cada vez maior e barateando cada vez mais as mercadorias. A lógica da concentração, entretanto, faz com que haja cada vez menos mercado consumidor para adquirir tais produtos e que menos recurso seja distribuído na forma de salário, tendo-se uma multidão de excluídos cujo potencial de trabalho já não mais interessa ao capital.
O relatório da ONU sobre desenvolvimento humano, publicado em 1998, intitulado Consumo para o Desenvolvimento Humano, afirma que as desigualdades no consumo são imensas: enquanto os 20% mais ricos da população mundial são responsáveis por 86% do total de gastos em consumo privado, os 20% mais pobres respondem apenas por 1,3%. "Bem mais de um bilhão de pessoas estão privadas de satisfazer suas necessidades básicas de consumo. De 4,4 bilhões de pessoas nos países em desenvolvimento, aproximadamente três quintos carecem de saneamento básico. Quase um terço não tem acesso a água potável [clean water]. Um quarto não tem moradia adequada. Um quinto não tem acesso a serviços modernos de saúde. (...) Mundialmente, 2 bilhões de pessoas estão anêmicas, incluindo 55 milhões em países industrializados." (56)
Os relatórios do Banco Mundial afirmam que o aumento da pobreza no mundo na década de 90 é alarmante. Ela aumenta inclusive no próprio interior dos países ricos, de capitalismo avançado, tornando-se tal questão a mais premente a ser enfrentada. A situação da concentração de renda chegou a tal ponto que, as 358 pessoas mais ricas do mundo em 1993 possuíam ativos que, segundo ONU, superavam a soma da renda anual de países em que residiam 2,3 bilhões de pessoas, isto é, 45% de toda a população do mundo. (57) Outro indicador aponta que 447 bilionários do planeta detém uma riqueza combinada maior que a renda de metade de toda a população mundial. Segundo o Institute for Policy Studies sediado em Washington, dois terços da população mundial estão excluídos ou marginalizados da globalização (58).
Neste quadro, a disputa capitalista por mercados consumidores é cada vez mais acirrada, tanto barateando o preço das mercadorias para atender aos que praticam o consumo compulsório quanto investindo em produção de subjetividades para agenciar o consumo alienando daqueles que tem recursos para gastar.
Acionando semioses que hegemonizam a interpretação pessoal dos auto-ícones atuais e utópicos, as empresas capitalistas disputam os mercados, ao mesmo tempo em que formulam utopias alienadas e difundem o neoliberalismo por toda a parte como solução dos problemas que ele mesmo agrava, tais como a concentração de renda, o desemprego e a exclusão social, por exemplo. O caráter globalitário dos regimes democráticos vem implicando na recondução ao poder dos mesmos dirigentes que vem arruinando as finanças públicas e submetendo as economias nacionais ao livre jogo dos interesses privados de megaconglomerados transnacionais.
Frente a este quadro, enfrentar a produção de subjetividades dos consumidores implica em buscar alternativas capazes de converter o consumo compulsório e o consumo alienado em consumo solidário com vistas à promoção do bem viver. Em outras palavras, trata-se de gerar emprego e renda para os excluídos, elevar o padrão de consumo e o tempo livre de todos, bem como, reverter o quadro de degradação social e ambiental, simplesmente modificando-se as escolhas de consumo em razão do bem viver (59).
Praticar o consumo como mediação do bem viver requer o refinamento das sensibilidades e sentidos humanos, bem como o desenvolvimento de critérios avaliativos a partir dos quais selecionam-se os objetos, dentro das possibilidades de consumo que cada um tenha, que venham a contribuir, da melhor maneira, com a singularização de cada pessoa e a preservação dos ecossistemas. Para que se possa generalizar socialmente o consumo como mediação do bem viver, superando-se tanto as formas de consumo compulsório quanto as formas de consumo alienantes, é necessário desenvolver-se a habilidade de apreciar-se os sabores, os odores, os sons, as temperaturas, as imagens, as texturas, as variadas composições expressivas de diversas ordens semióticas, as combinações desses diversos elementos, seus fluxos, ritmos, etc. Cabe enfatizar, contudo, que o bem viver é sempre, de algum modo, um compartilhar. Nos momentos em que nos sentimos satisfeitos e felizes de poder viver intensamente, sempre surge em nós o desejo de compartilhar este instante ou esta situação com alguém - "como seria bom que fulano estivesse aqui!" ou "como é bom estar aqui com você!" ou "como seria bom que outras pessoas pudessem viver um momento como esse!". Assim, o consumo em razão do bem viver, especialmente quando estamos em meio a uma sociedade de excluídos, pode converter-se em um consumo solidário, que tem por finalidade contribuir socialmente para a superação dos consumos compulsório e alienante e com isso gerar emprego, distribuição de renda e um desenvolvimento ecologicamente sustentável.
O consumo solidário ocorre quando a seleção do que consumimos é feita não apenas considerando o nosso bem viver pessoal, mas também o bem viver coletivo. Este tipo de conduta somente se torna possível quando as pessoas compreendem que a produção encontra a sua finalidade - ou o seu acabamento - no consumo e de que este tem impacto sobre todo o ecossistema e sobre a sociedade em geral. Em outras palavras, o consumo é a ultima etapa de um processo produtivo e as escolhas de consumo - feitas pelos indivíduos em particular e pela sociedade como um todo - podem influenciar tanto na geração ou manutenção de postos produtivos em uma dada sociedade, na preservação de ecossistemas, na reciclagem de materiais, no combate à poluição, na promoção do bem estar coletivo da população de sua comunidade, de seu país e do planeta, quanto podem, também, gerar desemprego, colaborar na destruição de ecossistemas e na extinção de espécies vegetais e animais, na produção cada vez maior de lixo não biodegradável, no aumento da poluição e na piora da qualidade de vida da população de sua comunidade, de seu país e do planeta como um todo.
Consideremos, como exemplo, uma cidade em que há várias pequenas confecções familiares ou cooperativadas que empregam muitas pessoas na produção de roupas que são comercializadas naquela mesma região. Se ocorrer que alguma política cambial adotada pelo país faça com que roupas importadas possam ser vendidas a preços bem mais baixos nesta cidade, o que acontecerá ? Se as pessoas optarem por comprar as roupas importadas, que são mais baratas, as confecções não conseguirão vender a sua própria produção, acabarão falindo e gerando desemprego naquela cidade, o que é ruim para toda a economia local. Por outro lado, se as pessoas decidirem comprar as roupas produzidas na região, mesmo sabendo que elas são um pouco mais caras e não têm a grife da moda, as confecções continuarão vendendo sua produção e os empregos serão mantidos. Assim, as escolhas de consumo podem influenciar na manutenção do emprego ou na geração do desemprego. Igualmente, se as pessoas comprarem sempre os produtos mais baratos - que tem esse preço porque a produção não adota procedimentos de proteção do meio ambiente - a empresa que adota medidas de preservação ambiental e que, por isso, vende um produto um pouco mais caro, jamais vencerá a concorrência e falirá. Assim, o consumo solidário é praticado considerando-se os benefícios sociais e ambientais que ele provoca.
Na medida em que o consumo solidário se expanda, ele poderá influenciar não apenas na preservação dos ecossistemas, na manutenção de empregos ou na elevação da renda de trabalhadores, mas poderá ser mediação de uma nova forma de economia em que seja abolida a exploração dos trabalhadores, bastando que as pessoas dêem preferência ao consumo de produtos elaborados em uma rede de colaboração solidária. Isso, entretanto, significa enfrentar o capitalismo atual em seu coração: na disputa por mercados e na produção de subjetividades - generalizando o consumo em razão do bem viver e, em consequência, o consumo solidário.
Essas hipóteses, que aqui apresentamos, demandam maior investigação para se mostrarem consistentes. Contudo, parecem apontar uma perspectiva valiosa de reflexão, uma vez que o consumo solidário já é praticado, em certa medida, em muitas partes do mundo, com o apoio de ONGs e outras organizações sociais, em inúmeros projetos produtivos que buscam enfrentar a exclusão social.
NOTAS:
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1. Félix GUATTARI e Gilles DELEUZE. Mil Platôs vol. 2. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995 p. 61-107
2. O choro dos bebês que ainda não falam opera como uma forma de expressão e sinalização que permite acionar a interferência externa sobre elementos que lhe são vitais.
3. Sobre os diversos níveis de semiose veja-se John DEELY. Semiótica Básica. São Paulo, Editora Ática, 1990, em especial o capítulo 3, "Semiose: o objeto da investigação semiótica", p. 41-51
4. Veja-se Lucia Maria de Carvalho ARAGÃO. Razão Comunicativa e Teoria Social Crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro, Editora Tempo Brasileiro, 1992. Veja-se também Paulo FREIRE, para quem "... não é possível discutir linguagem sem discutir poder, sem pensar as classes sociais e suas contradições." Paulo FREIRE. A Educação na Cidade, São Paulo, Editora Cortez, 1991, p. 137
5. Veja-se o item "As línguas Naturais e a Cultura" de Edward LOPES, Fundamentos da Lingüística Contemporânea. São Paulo, Editora Cultrix, 1993, p. 21-24. Sobre a dimensão estética na cultura de massas, veja-se Edgar MORIN, Cultura de Massas no Século XX, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1967, em especial o capítulo 7, "Os Campos Estéticos", p. 81-89
6. Paulo FREIRE. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1996, p.111 Em outro livro escreve Paulo Freire: "As formas de estarmos sendo, a maneira de comer, a possibilidade e o próprio gosto de comer, o que comer, a forma de vestirmos, a maneira como agimos no mundo, como nos encontramos com os outros e nos comunicamos; os níveis de instrução e de educação, a nossa posição de classe na sociedade de que fazemos parte, todas essas coisas terminam por formar nossa linguagem, nossa estrutura de pensar que, por sua vez, também nos condiciona. Por isso mesmo é que rigorosamente não se ensina linguagem. Nós experimentamos a linguagem, criamos socialmente a linguagem e nos tornamos afinal 'lingüisticamente competentes'." Paulo FREIRE. A Educação na Cidade, p. 138
7. Veja-se Félix GUATTARI e Suely ROLNIK. Micropolítica - Cartografias do Desejo. Petrópolis, Editora Vozes, 1986, em especial o capítulo 2, "Subjetividade e História", p. 25-126
8. Veja-se Jean BAUDRILLARD. Para uma Crítica da Economia Política do Signo. Rio de Janeiro, Editora Elfos, 1995
9. Sobre a noção de ícone veja-se Charles Sanders Peirce, "O ícone, o Indicador e o Símbolo" in Semiótica e Filosofia, São Paulo, Editora Cultrix, 1972, p. 115-134. Veja-se também GUATTARI e DELEUZE. Op. Cit., p. 100, nota 38
10. A desterritorialização absoluta (que ocorreria em casos de amnésia por acidentes em que o indivíduo parece amanhecer como se fora outro ) é impedida pela regularidade de interpretantes que ainda opera frente a outros objetos com os quais reagia o sujeito antes do evento desterritorializante. Haveria que investigar-se se, mesmo perdendo o ícone virtual de si mesmo, mesmo sem saber quem é, o indivíduo manteria reações similares de padrões de sabor, de beleza, de sentimentos éticos, etc. Seja como for, o conhecimento de si mesmo tido por cada qual se reafirma pela mesma reação frente aos objetos dinâmicos similares. Os sujeitos em geral se estranham ao reagir diferentemente do que o fazem frente a situações em que sua memória registra como sua identidade um certo comportamento.
11. Como a memória do passado é fragmentada em razão do tempo, não há um único ícone do que o indivíduo foi, mas uma infinidade deles, que são reinterpretados a cada nova experiência que altera os critérios de valoração de si mesmo. A fixação sobre algumas dessas imagens pode ser prejudicial à saúde psíquica do indivíduo.
12. Veja-se DEELY, Op. Cit., capítulo 5 "Zoossemiótica e Antropossemiótica" e capítulo 6 "Fisiossemiose e Fitossemiose", p. 52-123
13. Veja-se Félix GUATTARI e Sueli ROLNIK. Micropolítica - Cartografias do Desejo. São Paulo, Vozes, 1a. Edição, 1986. Em especial os itens II-3 "Produção de Subjetividade e Individualidade" e II-4 "Singularidade X Individualidade", p. 31-39
14. Veja-se Félix GUATTARI. Revolução Molecular. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987, em especial o capítulo primeiro, "Revolução Molecular por toda parte", p. 11-73
15. Veja-se Helmut THIELEN. Além da Modernidade ? Para a Globalização de uma Esperança Conscientizada. Petrópolis, Editora Vozes, 1998, em especial o item "Utopia", p. 60-74, bem como, Roberto FREIRE e Fausto BRITO, Utopia e Paixão, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1986, em especial o capítulo 9, "A Imaginação no Poder", p.83-91
16. Enrique DUSSEL. Filosofia da Libertação. Edições Loyola, São Paulo, s.d.
17. Sobre essa distinção entre os vários tipos de utopias veja-se o item "3.4. Movimentos Populares atuais e práxis de libertação" de nosso artigo "Práxis de Libertação e Subjetividade" em Revista de Filosofia, 6(7):81-109 jun 1993. PUCPR - Curitiba, PR, Brasil, 1993
18. Veja-se Félix GUATTARI, Revolução Molecular, em especial "O Capital como Integral das Formações de Poder", p. 191-210
19. Veja-se nosso artigo "Realidade Virtual - A Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político", revista Lumen 2(4):75-135 jun 1996. São Paulo, Faculdades Associadas Ipiranga.
20. Veja-se Franz J. HINKELAMMERT. "Ética do discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição crítica". in Antonio SIDEKUM. Ética do discurso e filosofia da libertação - Modelos complementares. São Leopoldo, Ed. Unisinos. p. 73 a 116. Especialmente o item 1. A teoria da concorrência perfeita. p. 75 e a crítica sobre A aproximação assintótica da realidade à sua situação ideal, p. 80s
21. Veja-se nosso artigo: "Quatro teses sobre o neoliberalismo." Revista Filosofazer, Passo Fundo, IFIBE, ano VI n. 11, p. 83 a 103, 1997.
22. Cf. Aluísio PIMENTA, "Globalização, mundialização e planetarização". Gazeta Mercantil 14/10/96 p. A-3
23. "A globalização é alavancada num novo tripé financeiro: o sistema bancário, que se assenta no fabuloso valor patrimonial de várias centenas de bilhões de dólares dos vinte maiores bancos do planeta, e das enormes quantias depositadas, com ativos que chegam a mais de 6 trilhões e meio de dólares; os fundos de pensão - cujos ativos totais nos Estados Unidos chegavam, em 1995, a quase 4,8 trilhões de dólares, cifra que supera todos os PIBs do mundo, excetuando o norte-americano - e os fundos mútuos de ação (que nos Estados Unidos cresceram de apenas 500 bilhões em 1985 para mais de um trilhão em 1990, alcançando o patamar dos dois trilhões em outubro de 1993, chegando a mais de 2,6 trilhões em 1995 e atingindo, no início de 1996, o valor de 3 trilhões de dólares); e as seguradoras, que junto com os fundos de pensão dispõem de mais de 5,7 trilhões de dólares na França, Alemanha, Japão e Inglaterra." René Armand DREIFUSS, A Época das perplexidades - Mundialização, Globalização e Planetarização: Novos Desafios. 2a. Ed. Petrópolis, Ed. Vozes, 1997, p. 157.
24. René DREIFUSS, Op. Cit., p.171
25. Aluísio PIMENTA, op. cit. p. A-3.
26. René DREIFUSS, Op. Cit. p. 136; 138-139.
27. Ibidem, p.139
28. Ibidem, p.156
29. Fernando de BARROS E SILVA, "Publicitários brincam de democracia na TV". Folha de São Paulo, 2-03-97 , Tvfolha, p.2
30. "Regimes globalitários substituem regimes totalitários". Cepat Informa 3(26):8 25fev97 Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores, Curitiba. PR.
31. As mídias no mundo não apenas veiculam os mesmos fragmentos coletados por agencias como UPI, AP, France Press, etc - sendo que nas proximidades onde se recolheram tais fragmentos, outros elementos que poderiam gerar interpretantes contraditórios talvez permaneçam despercebidos ou ocultos - mas chegam mesmo a publicar acontecimentos que nunca ocorreram: como a história de um mergulhador que fora içado do mar em um tanque utilizado por um helicóptero para combater um incêndio florestal e que fora encontrado com equipamento de mergulho, em meio às cinzas do sinistro, numa cidade da Califórnia; ou ainda a coroação do Rei dos Tolos no Dia dos Tolos, em 1º de Abril de 1995, na Quinta Avenida em Nova Yorque. As mídias são bombardeadas por informações não-verdadeiras com as mais diversas origens e tipos de fontes, recebendo releases completos e detalhados com falsas informações que circulam como sendo verdadeiras. Exemplo maior dessa veiculação de fragmentos que geram simulacros foi a imagem de Fernando Collor de Melo como governador honesto, íntegro e combatente implacável da corrupção. Sobre falsas notícias divulgadas pelas mídias como verdadeiras, veja-se "As ilusões inseridas", Folha de São Paulo 09-02-97, p. 5-8
32. HARRIS, Laurence in Tom BOTTOMORE, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988, p. 285 Cumpre destacar que os monopólios relançam a concorrência capitalista, intrínseca a este sistema econômico, em novas bases.
33. Mais precisamente, a mais-valia é independente do capital constante, como pode ser formalizado na seguinte equação em que (C+L) - (C+V) = m _ m = L - V, em que os elementos representam: capital constante (C), lucro (L), capital variável (V) e mais-valia (m), sendo o produto final (C+L) e o capital consumido (C+V).
34. Certos economistas argumentam que toda a elaboração científica não é trabalho economicamente produtivo e que, portanto, a produção de um software não implica em produção de mais-valia. Neste caso, toda a mais-valia acumulada pelas empresas que fabricam software seria produzida em outros segmentos da economia - fundamentalmente na indústria. Através do comércio, essa mais-valia seria deslocada para as empresas de software. Em uma figura de linguagem, podemos dizer que estas empresas e todas as demais que trabalham com bens intangíveis seriam como que um buraco negro que engole a mais-valia produzida em outros segmentos da economia em que se realiza o trabalho produtivo. Este modo de compreender o fenômeno, que não consideramos adequado, está preso a duas noções marxistas modernas que não foram suficientemente reelaboradas por estes autores: o valor econômico e o trabalho produtivo. Sem a reelaboração dessas categorias não se compreenderá adequadamente fenômenos econômicos que envolvem bens intangíveis.
35. Veja-se Karl MARX. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse) 1857~1858. México D.F. Editora Siglo Veintiuno, 1972. Vol. 2 (Caderno VII), p. 231-232
36. "A apropriação do trabalho vivo pelo capital adquire na maquinaria, também neste sentido, uma realidade imediata. Por um lado, o que permite às máquinas executar o mesmo trabalho que antes era efetuado pelo trabalhador, é a análise e aplicação - que dimanam diretamente da ciência - de leis mecânicas e químicas. O desenvolvimento da maquinaria por essa via, entretanto, só se verifica quando a grande indústria alcançou já um nível superior e o capital capturou e pôs a seu serviço todas as ciências; por outra parte, a mesma maquinaria existente oferece grandes recursos. As invenções se convertem, então, em ramo de atividade econômica e a aplicação da ciência à produção imediata mesma se torna um critério que determina e incita a esta." Grundrisse. Vol. 2 (Caderno VII), p. 226-227.
37. Veja-se Viviane FORRESTER. O Horror Econômico. São Paulo, Editora UNESP, 1997.
38. Para uma abordagem parcial e capitalisticamente otimista desta transformação tecnológica veja-se: John EATON e Jeremy SMITHERS. Tecnologia da Informação. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1984.
39. Essa estratificação das subjetividades dos trabalhadores para que atuem sob processos produtivos flexíveis e participativos, assumindo a condição de colaboradores das empresas, é mediatizado por inúmeras práticas. Uma delas é a introdução de técnicas de teatro para o trabalho de equipe. Essas técnicas visam o autoconhecimento, o autocontrole emocional das pessoas e a liberação corporal expressiva, desenvolvendo o que os especialistas na área chamam de "Inteligência Emocional". Segundo Liz Dias, sócia-diretora do Encena Produção Cultural que desenvolve este tipo de trabalho, "a vantagem para as empresas é a melhoria do relacionamento interpessoal. As pessoas vão produzir mais envolvidas no espírito de equipe, onde a satisfação de todos é resultado de um sentimento coletivo de reconhecimento, realização e sucesso". apud: Fábio LOPES. "Técnicas de teatro e trabalho de equipe" in: Gazeta Mercantil, 30/09/96, p. D-1. Curitiba.
40. Felix GUATTARI. Revolução Molecular, ed. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 170-171.
41. Ibidem, p. 213, 201 - 202
42. Ibidem, p. 167
43. Ibidem, p. 171
44. Na prefeitura de Curitiba o mesmo se verifica com o emprego de expressões como "ecologia" na gestão de Jaime Lerner, "cidadania" na gestão de Rafael Greca, bem como, "Inversão de Prioridades" que já se encontra no discurso de Cássio Taniguchi.
45. Nesta seção retomamos algumas reflexões e passagens que desenvolvemos em "Realidade Virtual - A Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político", revista Lumen 2(4):75-135 jun 1996. São Paulo, Faculdades Associadas Ipiranga. Trata-se de uma exposição que fizemos naquela faculdade em outubro de 1995. Naquela oportunidade consideramos a significação de realidade virtual ao nível cibernético, artístico e filosófico, destacando diferentes empregos dessa expressão. Filosoficamente caracterizamos realidade virtual como um conjunto de signos articulados, coerentemente ou não, que se referem a realidades efetivas ou imaginárias e que sobrecodificam as demais significações e sentidos evocados pela presença de objetos, circunstâncias ou processos objetivos ou subjetivos, estabelecendo-se como nível primário de sentido, isto é, sendo tomados como se fossem a realidade objetiva. Tal sobrecodificação significativa é também a territorialização de uma disposição afetiva do sujeito face ao elemento sobrecodificado. A realidade virtual é construída pela conferência de sentidos e significações que se articulam em um imaginário, produzindo a ilusão de se estar presente em uma realidade que efetivamente não existe, comportando-se afetivamente o sujeito perante tais realidades como se elas existissem. O imaginário é tomado como concreto.
46. Em uma análise publicada na Folha de São Paulo (29 nov 93, p. 2-5) sob o título " Aos 4, memoriza marca; aos 14, só consome grifes - Estudo expõe poder de sedução da publicidade sobre crianças e teens", Nelson Blecher comenta um estudo da agência Young & Rubicam Comunicações sobre a publicidade voltado ao mercado infanto-juvenil. Conforme Fátima Belo, diretora de pesquisa da agência, " submetida à exposição freqüente de logomarcas, a criança vale-se de indícios, como cores e grafismos, e aprende não somente a identificar como também reproduzir a escrita das marcas bem antes de estar alfabetizada". Sua subjetividade modelizada pelas linguagens publicitárias é agenciada ao consumo não tanto pelas qualidades objetivas do produto, mas pela mediação virtual que cumpre em seu imaginário.
47. Somente a Data Control, por exemplo, que é uma rede de escolas de informática no Brasil, gastou R$ 1,5 milhões em publicidade em 1996. Quanto não se gastará em publicidade no mundo, se somarmos o custo de produção e veiculação dessas mídias ? Esse valor é recuperado no giro do capital, possibilitado pelo consumo do produto ou serviço.
48. Jean Baudrillard em sua Crítica à Economia Política do Signo afirma que o valor de uso torna-se apenas um alibi do sistema da mercadoria, apontando que seria um equívoco pretender uma análise que dissocie tais elementos e que faça o valor de troca depender do valor de uso. Embora concordemos com esta tese parcialmente por outros motivos, divergimos de Baudrillard em razão de suas limitações centradas no trato da referência real, da ambivalência e da contraposição entre sígnico e simbólico.
49. Conforme Eurípedes Alcântara, a marca tornou-se muito mais valiosa que o faturamento anual em muitas empresas. Pesquisa realizada pela Financial World, uma revista norte-americana, concluiu que "... as marcas Marlboro e Coca-Cola valem mais que as duas empresas faturam durante o ano passado [ 1992 ] com a venda desses produtos". Em tal avaliação está considerada a penetração mundial dos logotipos. "O Marlboro lidera. Sua marca valeria cerca de 31 bilhões de dólares - duas vezes o faturamento da Philip Morris obtido com seu produto no ano passado. A Coca-Cola vem em segundo lugar. O nome do refrigerante mais conhecido no mundo vale 24,4 bilhões de dólares. Em terceiro ficou a cerveja Budweiser (10,2 bilhões de dólares)." Eurípedes ALCÂNTARA, "Emoção pra Valer". Revista Veja, 1º de Setembro de 1993, p. 67
50. Folha de São Paulo, 29-09-96 p. 6-13
51. As ligações feitas do país aos serviços eróticos internacionais por telefone somavam, em média, US$ 12 milhões ao ano, segundo um levantamento feito em 1996. Destes, US$ 4 milhões saiam anualmente do Brasil sob a forma de divisas. Cf. Folha de São Paulo, 29-09-96 p. 3-6
52. Folha de São Paulo, 09-02-97 p. 1-12. São Paulo.
53. Didaticamente, consideramos ZR1 significando uma vez o coeficiente de aproveitamento e ZR5 significando cinco vezes o coeficiente de aproveitamento. O valor desses números varia dependendo do Plano Diretor, mas o princípio de elevação é sempre o mesmo. Quando a área aproveitável é maior que a área ocupável do terreno, o proprietário verticaliza a edificação, construindo vários pavimentos.
54. A difusão generalizada de notícias favoráveis a um grupo, virtualmente o fortalece; do mesmo modo que a difusão de informações que abalam a imagem da empresa - seu signo de confiança - a enfraquece como um todo.
55. O direito de propriedade das marcas é tão rigoroso, que possibilita punir o responsável por qualquer recaptura semiótica de alguma marca se ele não estiver autorizado a realizá-la - uma vez que tal recaptura pode alterar o valor de troca da marca. Justamente por isso, a empresa Axcel Books do Brasil Editora fez constar na página III do livro Netscape, Eudora & Agent - QuickRef [ Rio de Janeiro, 1995], por ela publicado, o seguinte alerta: "Marcas Registradas. Todos os termos neste livro que são conhecidos como marcas registradas foram adequadamente colocados em maiúsculas. A Axcel Books não pode atestar a veracidade das informações. A utilização de um termo neste livro não deve ser considerada como afetando a validade de nenhuma marca registrada." Como se vê, tem-se a preocupação que a utilização do termo não afete a validade da marca - o que poderia ser motivo para processar a editora; já a responsabilidade legal pela veracidade das informações fica imputada ao autor do livro, no caso, Marcelo Bernstein. Na página ao lado, por sua vez lê-se "Copyright © 1995 by Axcel Books do Brasil Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia e escrita de Axcel Books do Brasil Editora". Ora, tendo eu aqui reproduzido tais linhas, portanto, uma parte da publicação, sem a devida autorização, poderei ser considerado um infrator do copyright?
56. Fonte: ONU. Human Development Report 1998 - Changing today's consumption patterns , for tomorrow's human development - "Overview" http://www.undp.org/undp/hdro/e98over.htm
57. "Os números da ONU". Folha de São Paulo, 16 jul 96, p. 1-8, São Paulo.
58. Pepe ESCOBAR, "Os Donos do Mundo". Gazeta Mercantil, 21 a 23-02-97, Leitura de Fim de Semana, p.1
59. Um estudo nosso, já em fase avançada, sobre este tema será divulgado proximamente.
Referências Bibliográficas
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O Capitalismo Atual e a Produção de Subjetividade
Conferência de Abertura da V Semana de Filosofia da UFES
São Mateus, 24 de novembro de 1998
buscado em: cooperação.sem.mando

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