sábado, 6 de setembro de 2014

hypomnemata extra

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 extra, junho de 2014.

futebol + anarquia é poesia
Em 1970, Pier Paolo Pasolini destrinchou o que definiu como a sintaxe do futebol. Sob o rescaldo da final da copa, disputada entre Brasil e Itália, diferenciou o que chamou de futebol de prosa e futebol/poesia.
Enquanto o futebol apresentado pela azurra reiterava o que Pasolini definiu como execução racional do código, a reconhecida retranca, prosa pouco porosa, o futebol/poesia se afirmava no bico das chuteiras de Pelé, Rivelino, Gerson.
1970 foi a vitória da poesia, argumentou o cineasta, artista incômodo à esquerda e à direita, brutalmente assassinado, em 1975. Segundo ele, poesia é precisamente a subversão da sintaxe, entre as quatro linhas, momento do drible e do gol. “O artilheiro de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano”, concluiu.
24 anos depois, Brasil e Itália voltaram a se enfrentar na final da Copa do Mundo: a vitória da seleção brasileira foi com rala poesia.
Em 1995, o anarquista Roberto Freire, perseguido pela ditadura civil-militar nos anos 1970, declarou, em tesudos de todo o mundo uni-vos, que os craques se tornaram meros trabalhadores pernais a reboque da segurança e dos cálculos matemáticos. 1994 redundou, segundo Freire, na captura do futebol tesudo pelo capitalismo sustentado pela sintaxe do sacrifício.
Diante do verde da grana é sempre bom retomar tais escritos. É sempre bom lembrar também experiências radicais como a greve levada a cabo por jogadores uruguaios nos anos 1950 ou a invasão em maio de 1968, em Paris, da sede da Federação Francesa de Futebol (FFF) por amantes do futebol. No meio das barricadas, sequestraram por metade de um dia Georges Boulogne, treinador da seleção nacional, sob a justificativa de que ele formava soldados ao invés de artistas da bola.
Ao abolirem a sintaxe do sacrifício e o sucesso dos negócios, os libertários encaram o futebol como cio da vida, batalha, fulgor. Admiram as invenções como as de Leônidas, Garrincha, Pelé, e de tantos artistas da bola.
Saberemos em breve se ainda há poesia no campo como no fogo fora dele. Saberemos em breve se a Copa da Fifa é dos atletas uniformes ou se ainda pode vingar o potente prazer de uma gostosa pelada, prazer de poesia, feito o toque de primeira de João Cabral de Melo Neto para Ademir da Guia.

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
da água doente de alagados,
entorpecendo, e então atando
o mais irrequieto adversário.

Futebol é paixão. Nele é possível provar a experiência do conhecimento, sem medidas que pretendam equilibrar razão e emoção para extração de resultado otimizado.
Para Albert Camus, futebol é inteligência em movimento. Inteligência de rebeldes que não se confunde com a sapiência de scholars. É inteligência em e do movimento, rebeldia e animalidade.
É do campo, constrói narrativas fantásticas que suplantam vitórias militares, como a mão de deus Maradona em 1986 contra a esquadra britânica (pouco importa os interesses de generais e governantes); a animalidade de Edmundo nos anos 1990 e sua linha atacante verde de cem gols (pouco importa os interesses de multinacionais); a voadora certeira de Éric Cantona do campo para a arquibancada contra um hooligan neonazista.
Se os estrategistas da bola, para quem o gol era um detalhe, dominaram o niilismo dos anos 1990 com seu esquema de três zagueiros e três volantes de contenção, a rebeldia indomável ainda vivia fora do circo global da nova ordem montada no pragmático USA.
Hoje, quando a inteligência e a força desembarcam na terra do lendário futebol poético com Neymar e o verde Hulk, a revolta circula pelas ruas e desorienta estrategistas, governistas e pragmáticos até mesmo quando a rebeldia em campo anda 1/2 domesticada pelo entoar de hinos da pátria de chuteiras.
Uma coisa são os investidores, os patrocinadores, os negócios e os investimentos, humanos e financeiros, que capitalizam o jogo convertido em espetáculo para subordinar a arte às mesquinharias políticas dos autoritarismos ou das encenações democráticas.
A revolta é paixão incontível: nas ruas ou na grama ela irrompe quando menos se espera, em sua beleza e tragi-cidade.
No campo há poesia e inteligência, força e coragem. Na rua há poesia, rebeldia e coragem também. E luta. Em um entre adversários, em outra entre inimigos.
Em ambas há o inimigo comum: o negócio (dos business que consomem subjetividades) e o pragmatismo; a correlação entre esquema tático e a estabilidade política.
Na inteligência do jogo e dos enfrentamentos, os oponentes podem ser driblados, e poeticamente jazerem na grama, rodopiarem atônitos procurando pela bola que os encobre, desliza adiante, passeia entre suas pernas e que se destina a um pé, uma cabeça, uma coxa, até mesmo um braço despercebido ou escandalosamente estendido para tocá-la para as redes, reiterando a derrocada de um árbitro que se arvora em ser juiz.
Torcemos pelo drible e pelo gol.
A mistura futebol e política pretende encobrir ditaduras, celebrar misérias, maquiar hipocrisias, vender marcas, justificar prisões e garantir espaços arrendados, na atual democracia, para empresas transnacionais por meio de leis de exceção.
Se o esquema tático é a estratégia de vencedores pragmáticos, o drible é a tática dos poetas rebeldes da bola.
Torcemos pela tática.
O drible é a antipolítica do futebol.
Futebol é poesia e gol. É prosa somente entre cumpadres amistosos que se dedicam diante de cada adversário ao poder conjunto de suprimir os inimigos.

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