sábado, 6 de setembro de 2014

hypomnemata 167

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 167, junho de 2014.

Max Stirner:
singularidade e revolta

Max Stirner não se chamou anarquista. Sua breve obra é composta por um livro (censurado em 1844) e alguns artigos redigidos entre as décadas de 1840 e 1850. Dissidente hegeliano, com suas reflexões singulares invade o anarquismo nascente de Proudhon, os socialismos esboçados, o liberalismo confirmado. Morreu cedo, em 1856, meses antes de completar 50 anos. Esquecido até o final do século XIX foi recuperado pelo poeta anarquista escocês John Henry Mackay, com o livro Max StirnerSein leben und sein werk, publicado em Berlim, pela Schuster & Loeffer, em 1898. Este forasteiro único e paradoxalmente egoísta invade de maneira própria as análises sobre a propriedade, o sagrado, o direito, os efeitos do iluminismo e o Estado. Renegado pelos intérpretes dos anarquismos que marcaram a falsa dicotomia entre individualismo e coletivismo ou comunismo, foi enfatizado nas análises de Max Nettlau, o mais incisivo historiador dos anarquismos. Está presente na obra do filósofo Michel Foucault, sublinhado dentre as subjetivações ético-estéticas radicais que emergiram no século XIX, pois não há outro ponto primeiro e último de resistência ao poder político senão na relação consigo mesmo. Habita, não declaradamente, a filosofia a marteladas de Nietzsche e a filosofia generosa de Gilles Deleuze. Foi referência constante para o rompimento com a arte moderna por Marcel Duchamp. É o ponto de inflexão para a crítica de Albert Camus aos efeitos revolucionários estatistas. Enfim, por onde se transitar nos combates ao som, palavras e relações com a revolta anda-se junto com Max Stirner. Seus escritos breves e seu longo livro situam questões históricas, objeções ao pensamento e às suas consagrações, movem práticas livres e combatem o rompimento definitivo com a metafísica. Em Stirner o indivíduo não é uma abstração. Stirner é um anarquista nos anarquismos.Transcrevemos algumas de suas palavras anarquistas atuais, compondo livremente um texto libertário, seguido de indicação das fontes de onde elas foram buscadas.
 Amigos, a nossa época não está doente, acontece que já viveu tudo; não a torturem também tentando curá-la, apressem a sua última hora abreviando-a, e como não é possível curá-la, deixem-na morrer.
Se a liberdade da vontade responde à ideia e ao desejo dos novos tempos, é preciso que a pedagogia tenha diante dos olhos, como ponto de partida e de chegada, a formação da livre personalidade! Humanistas e realistas ainda se limitam ao Saber: preocupam-se quando muito com a liberdade de pensar e fazem de nós pensadores livres, por uma liberação completamente teórica.
No entanto, o Saber só torna livre interiormente (liberdade à qual nunca mais se deverá renunciar, por sinal), mas exteriormente, malgrado todas as liberdades de consciência e de opinião, podemos permanecer escravos, permanecer na sujeição. E, contudo, a liberdade exterior está precisamente para o Saber assim como está para aVontade a verdadeira liberdade interior, a liberdade moral.
Se eu quiser, em conclusão, formular brevemente o objetivo para o qual deve dirigir-se nossa época, é nesses termos que resumirei a necessidade de declínio do Saber sem Vontade e a ascensão da vontade consciente de si mesma cujo destino realiza-se ao sol resplandecente da livre personalidade: o Saber deve morrer para ressuscitar comoVontade e recriar-se como livre personalidade.

Moral
Para as crianças pequenas e para os animais não há nada de sagrado, porque para conceber esta ideia temos de ser capazes de distinguir entre ‘bem e mal, justo e injusto’ etc.: só nesse nível de reflexão ou capacidade de juízo — o ponto de vista por excelência da religião — o temor natural pode dar lugar à veneração não natural (isto é, provocada apenas pelo pensamento) ao ‘temor sagrado’.
Isso implica considerar qualquer coisa fora de nós como mais poderosa, maior, mais justa, melhor, etc., ou seja, reconhecer o poder de um estranho; e não o sentir apenas, mas o reconhecer de fato, o aceitar, ceder a ele, render-se, deixar-se prender (é a dedicação, a humildade, a submissão, a sujeição...).
Há nisso algo que foge e é negativo: a ausência do familiar, do conhecido, do próprio.
A teimosia e a indisciplina da criança têm tantos direitos quanto seu desejo de saber. Estimulam deliberadamente este último; que também suscitem essa força natural da Vontade: a oposição. Se a criança não aprende a tomar consciência de si, é claro que ela não aprende o mais importante. Que não sejam sufocados nem seu orgulho, nem sua franqueza natural. Minha própria liberdade permanece sempre ao abrigo de sua arrogância. Pois se o orgulho degenera em arrogância, a criança desejará usar da violência contra mim. Ora, eu, que sou um ser livre tanto quanto a criança, não necessito suportar isso. Todavia, para defender-me, devo abrigar-me por trás da cômoda muralha da autoridade? Não, oponho-lhe a dureza de minha própria liberdade, e a arrogância dos pequenos se quebrará por si mesma. Aquele que é um homem completo não precisa ser uma autoridade.
O homem é apenas um ideal, a espécie um produto do pensamento. Ser um homem não significa preencher o ideal do homem, mas manifestar-se a si próprio, como indivíduo. A minha missão não tem de ser a de realizar a ideia geral do humano, mas a de me satisfazer a mim próprio. Eu sou a minha espécie, sem norma, sem lei, sem modelo, etc. É possível que eu possa fazer muito pouco a partir de mim próprio, mas esse pouco é tudo, e é melhor do que aquilo que deixo que o poder de outros faça de mim através da moral, da religião, das leis, do Estado, etc. É melhor — se de ser melhor se trata — ser uma criança malcriada do que demasiado sensata, é melhor ser rebelde de que estar disposto a aceitar tudo.
A moralidade é também uma dessas ideias sagradas. Não se arrisca a questionar a moralidade para saber se ela própria não será uma ilusão: ela está acima de todasuspeita, sublime e intangível.
Contra o direito, de nada valem as objeções feitas a um direito, acusando-o de ser torto, uma injustiça. Mas se rejeitamos o direito enquanto tal, o direito em si, de forma radical, estamos também rejeitando o conceito de ‘torto’, de injustiça, dissolvendo assim todo o conceito de ‘direito’ (no qual se integra o de ‘torto’).

Liberalismo e direito
A polêmica contra o privilégio é um dos traços característicos do liberalismo, que insiste em sua luta contra o privilégio (Vorrecht, direito prévio) porque se opõe ao direito. Todavia não pode fazer muito mais do que bater o pé, porque os privilégios só terão fim com o fim do direito, uma vez que são apenas variantes deste. Todo direito se entende como privilégio, e o próprio privilégio como poder, como... poder superior. A ‘igualdade de direitos’ estabelecida pela Revolução Francesa não é mais do que uma outra forma de ‘igualdade cristã’, a ‘igualdade dos irmãos, dos filhos de Deus, dos cristãos etc.’ — em suma, a fraternité.
Onde está a idiotice do liberalismo político senão na oposição que estabelece entre o povo e o governo, para falar dos direitos do povo? Contra as atuais pretensões de liberdade, é preciso que fique claro o seguinte: A liberdade do povo não é a minha liberdade!
Uma vez que o liberalismo é uma religião humana, quem a professa comporta-se de forma tolerante para com todas as outras. Esta religião está agora prestes a ser elevada à condição de religião comum, bem distinta das outras, todas elas “delírios privados” (mas em relação aos quais, devido à sua ausência de essência, há que comportar-se de forma extremamente liberal).
É certo que muitos privilégios desapareceram com o tempo, mas unicamente em favor do bem comum, do Estado e da coisa pública, mas de modo nenhum para fortalecer a mim.
Porque não podemos esquecer que, desde há muito, somos regidos por conceitos, ideias ou princípios, e que entre eles o conceito do direito ou da justiça desempenhou um dos mais significativos papéis.
O direito é uma obsessão produzida por um espectro; poder, isso sou eu próprio. O direito está acima de mim, é absoluto e existe em um nível superior, do qual chega a mim como uma graça que me é concedida: o direito é um dom da graça do juiz. Mas o poder e a força existem apenas em mim.
Não reclamo por direito; por isso não preciso reconhecer nenhum direito. Aquilo que eu conseguir conquistar, conquisto para mim, e sobre aquilo que não conquisto não tenho direito algum, nem me vanglorio ou consolo com meus direitos imprescritíveis.

Singularidade
Que diferença entre a liberdade e a singularidade-do-próprio!
De muita coisa podemos nos livrar, mas nunca ficaremos livres de tudo; livramo-nos de muito, porém não de tudo.
Apesar da condição de escravidão, podemos ser livres em nosso interior, embora apenas de algumas coisas, mas não de tudo; do chicote, dos caprichos imperiosos do senhor, etc. não nos libertamos se formos escravos. “A liberdade vive apenas no reino dos sonhos!”
Pelo contrário, a singularidade-do-próprio é toda minha essência e minha existência, sou eu mesmo. Sou livre de tudo aquilo de que me desembaracei, e proprietário daquilo que tenho em meu poder ou de que sou senhorMeu próprio (mein eigen), eu o sou em cada momento e em todas as circunstâncias, desde que saiba ter-me e não me entregar aos outros. Não posso verdadeiramente querer ser livre porque isso não é coisa que eu possa fazer ou criar: só posso desejá-los e... aspirar a isso, porque se trata de um ideal, de um fantasma. Os grilhões da realidade deixam a cada momento marcas profundas em minha carne. Mas eu continuo a ser meu.
Cada um é alguém que pensa de modo 'diferente', e ao cabo de muitas lutas sangrentas, conseguiu chegar ao ponto de não condenar os pontos de vista sobre um determinado objeto como heresias sujeitas à pena de morte. Os que pensam de maneira diferente entendem-se e suportam-se. Mas, por que razão hei de pensar apenas de modo diferente dos outros a propósito de uma dada coisa? Por que não levar essa diferença de pensamento até as últimas consequências, nomeadamente até aquele ponto em que eu não reconheço à coisa o direito de ser pensada, em que penso o seu nada, em que a apago? Aí, o próprio modo de conceber os objetos tem um fim, porque já não há nada a conceber.

O Estado e o único
“Estado! Estado!” é agora o grito geral, e o que se procura é a “forma correta do Estado”, a melhor constituição, ou seja, o Estado em sua forma mais perfeita. A ideia do Estado tomou conta de todos os corações e despertou o entusiasmo; servir este deus mundano era agora a nova forma do serviço divino e do culto. Tinha começado uma nova época, verdadeiramente política. O ideal supremo era o serviço do Estado ou da nação; o interesse do Estado era o interesse supremo; o serviço do Estado, a maior honra (e para isso não é forçosamente necessário ser funcionário público).
Diante deste deus — o Estado —, todo o egoísmo desaparecia; perante ele, todos eram iguais: eram, sem mais diferenças, homens, nada mais que homens.
A liberdade política, essa doutrina fundamental do liberalismo, mais não é do que uma segunda fase do protestantismo, e corre em paralelo com a “liberdade religiosa”. Do mesmo modo, aquele que é “livre em matéria política” faz do Estado uma coisa sagradamente séria: ele é a causa que o move, sua causa fundamental, sua causa própria.
O Estado, a religião e a consciência moral são tiranos que fazem de mim seu escravo, e sua liberdade é minha escravidão.
Um súdito só se torna imoral quando sai do círculo das suas atribuições. Um súdito que, na vida do Estado, na vida política, pretendesse ter uma “vontade” em vez de emitir “desejos” seria manifestamente imoral, porque na submissão só subsiste o valor moral do súdito — isto é, na obediência e não na livre determinação de si. Assim, a perspectiva moral manifesta-se incompatível com a perspectiva de espontaneidade, com a de um querer livre, de uma autonomia e soberania da vontade, e como a palavra “moral” está referida a uma ideia de obrigação, ter-se-á procurado despertar o sentimento do dever compreendido como “livre desenvolvimento das suas forças”. Sois livres se fizerdes o vosso dever, é esse o sentido da perspectiva moral.
À nossa liberdade em relação à pessoa do outro falta ainda a liberdade em relação àquilo de que a pessoa do outro pode dispor, àquilo que tem em seu poder pessoal, em suma, a liberdade em relação à “propriedade pessoal”. Temos então de abolir a propriedade pessoal.
Os políticos, ao procurarem abolir a vontade própria (eigener Wille), o capricho pessoal ou a arbitrariedade, não repararam que a propriedade (Eigentum) oferecia um refúgio seguro aos caprichos próprios.
Os socialistas, ao quererem abolir também a propriedade (Eigentum), não repararam que esta assegura sua sobrevivência naquilo que tem caráter ou singularidade próprios(Eigenheit). Serão propriedades apenas o dinheiro e os haveres, ou será cada opinião (Minung) uma coisa minha (ein Meinprópria?

Único
Acontece, porém, que eu não me considero especial, mas único. Tenho, é claro, semelhança com os outros; mas isso só se aplica com a comparação ou a reflexão; na realidade, sou incomparável, único. Minha carne não é a carne dele, meu espírito não é o espírito deles. Se os colocarem sob o chapéu universal de “carne, espírito”, isso são apenas pensamentos de outros, que não têm nada que ver com minha carne e meu espírito, e muito menos podem decidir da “missão” que cabe ao que é meu.
A propriedade é retirada do indivíduo e atribuída a um fantasma chamado “sociedade”. O liberalismo humanista deixou as pessoas sem Deus, ateístas. Por isso, o Deus de cada indivíduo, o “meu Deus”, teve de ser abolido. De fato, o fim dos senhores é igualmente o fim dos servos; o fim da posse, o fim das preocupações; e o fim de Deus, também o fim dos preconceitos; mas, como o Estado renasce enquanto novo senhor, reaparece também o servo na figura do súdito; como a posse se torna propriedade da sociedade, gera-se uma nova preocupação sob a forma do trabalho; e como o Deus, agora Homem, se torna preconceito, daí nasce uma nova fé, a fé na humanidade ou na liberdade
Não tenho nada contra a liberdade, mas desejo que se tenha mais do que liberdade; o que é preciso não é apenas se libertar do que não quer, mas ainda ter aquilo que quer, ser não apenas “homem livre”, mas também “o eu-proprietário” (Eigner).
Que diferença entre liberdade e singularidade-do-próprio!
indivíduo próprio é o homem livre por nascimento, livre por natureza; o livre, pelo contrário, é apenas o maníaco da liberdade, o sonhador e visionário.
O primeiro é originalmente livre, porque não reconhece mais nada a não ser ele próprio; não precisa se libertar, por que rejeita desde logo tudo o que não seja ele, porque não estima nem valoriza nada mais do que a si próprio, em suma, porque parte de si próprio e “volta a si”. Já em criança, obrigado a ter respeito, começa a libertar-se desse constrangimento. A singularidade-do-próprio trabalha no pequeno egoísta, e através dela ele alcança a desejada... liberdade.

Revolução, revolta e a vida
Não se devem tomar como sinônimos revolução e revolta. A primeira consiste em uma transformação radical do estado das coisas, do estado de coisas (status) vigente, do Estado ou da sociedade; é assim um ato político ou social.
A revolta, é certo, tem na transformação do estado de coisas uma consequência necessária, mas não parte dela, parte da insatisfação do homem consigo mesmo, não é um levante coletivo, mas uma rebelião do indivíduo, um emergir sem pensar nas instituições que daí possam sair.
A revolução tinha por objetivo criar novas instituições, a revolta leva a que não nos deixemos organizar, organizando-nos antes nós próprios; não deposita grandes esperanças nas “instituições”. Não é uma luta contra o status quo, uma vez que, desde que ela floresça, o status quo entra por si só em derrocada; é apenas um meio ativo que permite ao eu emancipar-se da situação vigente. Se eu abandonar a situação vigente, ela morre e apodrece. E como minha intenção não é a de derrubar a situação vigente, mas a de me elevar acima dela, minha intenção e ação não são da ordem política ou social, mas orientadas como estão para mim e minha singularidade própria, de ordem egoísta.
A revolução exige a criação de instituições, a revolta exige que o indivíduo se eleve ou se rebele.
Encontramo-nos no limiar de uma nova época. O mundo até agora não pensou em outra coisa que não fosse apropriar-se da vida, preocupou-se com a... vida. Cuidemos desta “vidinha” ou da “vida na eternidade” — nada disso muda a finalidade desta tensão e deste cuidado que, tanto em um caso com no outro, revelam ter como objeto a própria vida.
Vejamos, pois o problema de um outro ponto de vista. Quem está constantemente preocupado apenas em viver esquece facilmente o gozo dessa vida. Se o que lhe importa é apenas a vida e ele pensa que ter esta vida já é bom, não emprega todas as suas forças para aproveitar a vida, isto é, para gozá-la. Mas como é que se aproveita a vida? Usando-a tal como se faz com a luz, que se usa queimando-a. Aproveita-se a vida e, assim, a si mesmo, o vivo, consumindo-os. O gozo da vida é o uso da vida.
De agora em diante a questão não é saber como se adquire a vida, mas como ela pode esbanjar-se e gozar, ou então: não saber como construir em si o verdadeiro eu, mas como podemos dissolver-nos e viver a vida até esgotá-la.
Ao homem pertence o poder, o mundo, eu.
Meu poder é minha propriedade.
Meu poder  a mim minha propriedade.
Meu poder sou eu próprio, e, graças a ele, sou minha propriedade.
O impulso para a liberdade resultou sempre no desejo de uma determinada liberdade, por exemplo, a liberdade religiosa. E o mesmo agora acontece agora com a “liberdade política ou civil”. O cidadão burguês quer ser livre não da burguesia, mas da dominação da burocracia, da arbitrariedade dos príncipes e coisas semelhantes. O desejo de determinada liberdade inclui sempre a intenção de estabelecer uma nova dominação; assim, a Revolução “pôde dar aos seus defensores o sublime sentimento de quem luta pela liberdade”, mas na verdade isso só aconteceu porque se tinha em vista uma determinada liberdade, e com isso uma nova dominação, a da lei.
A “liberdade” é e sempre será uma nostalgia, um lamento romântico, uma esperança cristã no além e no futuro.

Contra a comodidade da crítica
A crítica é a luta do obcecado contra a obsessão como tal, contra toda obsessão, uma luta fundada na convicção de que a obsessão, ou, para usar as palavras do crítico, a atitude religiosa e teleológica, está presente em tudo. Ele sabe que não apenas em relação a Deus as pessoas se comportam de forma religiosa ou devota, mas também em relação a outras ideias, como o direito, o Estado, a lei, etc.; ou seja, vê a obsessão em tudo. E por isso quer dissolver os pensamentos por meio do pensar; mas eu afirmo que só a ausência de pensamento me salva dos pensamentos. O que me libertará da obsessão não é o pensar, mas o meu não-pensar, ou Eu, o impensável, o inconcebível.
O Estado é também uma sociedade, não uma associação, é uma família alargada (fala-se de “pai da pátria”, “mãe do povo”, “filhos do país”, etc.).
A guerra precisa ser declarada ao próprio existir desse estado de coisas, ou seja, ao Estado (status), não a um determinado Estado nem ao estado atual do Estado; o que se tem em vista não é um Estado (por exemplo, um “Estado Popular”), mas a associação que ele representa, a união, sempre fluída de todos os elementos existentes.
Para que o Estado possa se desenvolver de forma natural, aplica-se a mim a tesoura da “cultura”; dá-me uma instrução e uma educação que servem a ele, mas não a mim, e ensina-me, por exemplo, a respeitar as leis, a não agir contra a propriedade do Estado (isto é, propriedade privada), a venerar uma autoridade, divina e terrena, etc.; em suma, ensina-me a ser irrepreensível, exigindo com isso que eu “sacrifique” a minha singularidade própria a algo de “sagrado” (e muitas coisas podem ser sagradas, por exemplo, a propriedade, a vida dos outros, etc.). Nisso consiste o tipo de cultura e formação que o Estado pode me dar: educa-me para eu ser uma “ferramenta útil”, um “membro útil da sociedade”.
O político é e será sempre aquele que traz o Estado na cabeça ou no coração ou em ambos, aquele que está obcecado pelo Estado, que tem fé no Estado.

Ideia fixa
O que é afinal uma “ideia fixa”? É uma ideia à qual uma pessoa se subjugou. Se reconhecer nessa ideia fixa um sinal de loucura, coloque o escravo dela num manicômio. Mas não serão também “ideias fixas” a verdade da fé de que se não duvida, a majestade — por exemplo, do povo em que não se pode tocar (e quem o fizer comete crime de lesa-majestade), a virtude, contra a qual o censor não deixará passar nem uma palavra, para que a moralidade permaneça intacta, etc.? E não o será toda a conversa fiada — por exemplo, da maior parte dos jornais —, o blá-blá-blá dos alienados que sofrem das ideias fixas da moralidade, da legalidade, da cristandade, etc., e só andam por aí em liberdade porque o manicômio aonde vão parar ocupa um espaço tão grande? É preciso ler os jornais deste tempo e ouvir falar o filisteu para nos convencermos de uma verdade terrível, a de que estamos metidos num manicômio cheio de loucos.
O Estado não pode abdicar da pretensão de determinar a vontade individual de especular sobre ela e de contar com ela. Para ele é absolutamente necessário que ninguém tenha vontade própria; se alguém a tiver, o Estado tem de eliminá-la (prendendo-o, exilando-o, etc.); se todos a tivessem, poderiam abolir o Estado.
O Estado não é imaginável sem dominação e opressão (sujeição), porque o Estado tem de querer ser senhor de todos aqueles que abarcam, e a esta vontade chama-se “vontade do Estado”. Se acabasse a sujeição, a dominação tinha os dias contados.
A minha vontade própria é a ruína do Estado; por isso este a estigmatiza com o ferrete do “arbítrio pessoal”. A vontade própria e o Estado são forças inimigas, entre elas nunca será possível qualquer “paz eterna”. Enquanto o Estado se afirmar, apresentará sempre a vontade própria, sua adversária e inimiga, como irracional, má, etc.
Todo o Estado é um regime despótico, quer o déspota seja um ou muitos, quer sejam todos os dominadores, cada um exercendo a sua ação despótica sobre os outros, como se pensa que acontece numa república. Isto acontece de fato quando uma lei, uma vez estabelecida na sequência da clara vontade de uma assembleia nacional, passa a ser uma lei para todo o indivíduo, que lhe deve obediência e perante a qual tem o dever de obediência.
Mesmo imaginando que cada indivíduo manifestou a mesma vontade e assim se formaria uma “vontade geral”, mesmo assim as coisas não se alterariam. Não ficaria eu preso, hoje e depois, à minha vontade de ontem? Neste caso, a minha vontade ficaria petrificada. Detestável sensibilidade! A minha criatura, isto é, uma determinada expressão de vontade, tornar-se-ia o meu tirano, e eu, seu criador dotado de vontade, ficaria tolhido no meu desenvolvimento e na minha dissolução. Pelo fato de ontem ter sido um idiota, estaria condenado a permanecer assim para o resto da vida. Deste modo, na vida do Estado eu sou, na melhor das hipóteses — também poderia dizer: na pior —, um escravo de mim próprio. Porque ontem fui um ser de vontade, hoje sou um ser sem vontade; ontem voluntário, hoje involuntário.
Como mudar este estado de coisas? Não aceitando deveres, não me ligando nem deixando ligar a nada. Se não tiver deveres, não conheço lei.
O Estado tem sempre uma única finalidade: limitar o indivíduo, refreá-lo, subordiná-lo, fazer dele súdito de uma qualquer ideia geral; só dura enquanto o indivíduo não for tudo em tudo, e é apenas a mais marcada expressão da limitação do meu eu, da minha limitação e da minha escravidão.
Nunca um Estado tem como objetivo permitir a atividade livre de cada indivíduo, mas sempre aquelas que estão ligadas aos interesses do Estado. E também nada decomum pode nascer dele, do mesmo modo que um tecido não pode ser visto como o trabalho comum de todas as partes de uma máquina; trata-se antes do trabalho de toda a máquina como uma unidade, um trabalho mecânico.
A forma como as coisas acontecem com a máquina do Estado é semelhante; é ela que faz mover as engrenagens de cada um dos espíritos em particular, mas nenhum deles pode seguir o seu próprio impulso. O Estado procura travar toda a atividade livre, através da sua censura, da sua vigilância, da sua polícia, e toma isso como seu dever, que é na verdade um dever que lhe é ditado pelo seu instinto de conservação.
O Estado quer fazer alguma coisa dos homens, e é por isso que nele só vivem homens fabricados; todo aquele que quiser ser ele próprio é seu inimigo, e não vale nada. Este “não vale nada” significa que o Estado não encontra utilidade para ele, não lhe confia nenhuma posição, nenhum posto, nenhum negócio, etc..
Os escritores enchem páginas e mais páginas sobre o Estado sem pôr em dúvida a ideia fixa do Estado, nossos jornais regurgitam de política porque vivem na ilusão de que o homem nasceu para ser um zoon politikon [animal político]; e, do mesmo modo, os súditos vegetam na sujeição, os homens virtuosos na virtude, os liberais na “humanidade”, e assim por diante, sem jamais submeterem a faca cortando da crítica e suas ideias fixas.
As mesmas pessoas que recusam o cristianismo como alicerce do Estado, isto é, o chamado Estado cristão, não se cansam de repetir que “a moralidade é o pilar fundamental da vida social e do Estado”. Como se o poder da moralidade não correspondesse a uma total dominação do sagrado, a uma “hierarquia”!
Onde começa o altruísmo? Precisamente no ponto em que um fim deixa de ser nosso fim e nossa propriedade, com a qual, proprietários que somos, podemos fazer o que quisermos; no ponto em que ele se torna uma finalidade ou uma... ideia fixa, no ponto em que começa a nos entusiasmar, a nos fanatizar, em suma, no ponto em que ele degenera em obsessão e se transforma... em nosso senhor. Não somos altruístas enquanto dominamos nossos fins.
É mais nobre deixar-se determinar por outro do que simplesmente não se determinar, deixando-se ir. O amor é decerto a mais bela e derradeira repressão de si, a forma mais gloriosa de se aniquilar e sacrificar, a vitória sobre o egoísmo mais culminante em delícias; mas ao despedaçar a vontade própria obstaculiza ao mesmo tempo a própria vontade que é, para o homem, a fonte primeira da sua dignidade de ser livre.
É apenas por meio da “carne” que eu posso quebrar a tirania do espírito, pois só quando se dá conta da voz da carne é que um ser humano se dá conta completamente de si é que ele é um ser verdadeiramente perceptivo ou racional O espírito da moralidade e da legalidade é a sua prisão, um senhor de forma rígida e inflexível. A isso, eles chamam de o “poder do espírito” – e é, ao mesmo tempo, o ponto de vista do espírito.
Nos braços do amor repousa e dorme a vontade e só os desejos e petições estão de vigília. Mas não há dúvida de que um combate ainda perpassa nesta época arregimentada pelo amor: é o combate contra as pessoas sem amor. Eles perturbam a confiança, a abnegação, a concórdia, o amor; essas “cabeças quentes” turvam atranquilidade suscitadora da confiança e a tranquilidade é o primeiro dever dos cidadãos.
E os senhores liberais, tão vulgares hoje, que querem eles libertar? Por qual liberdade gritam e anseiam? Pela liberdade do espírito! Do espírito da moralidade, da legalidade, da devoção, do temor a Deus etc. Mas isso é o mesmo que querem os senhores antiliberais. Para ambos, o espírito é senhor absoluto.
Quem é que, de forma mais ou menos consciente, nunca reparou que toda nossa educação está orientada no sentido de produzir em nós sentimentos, ou seja, de impô-los, em vez de nos deixar a iniciativa de produzi-los, sejam eles quais forem?
É este o sentido da pastoral das almas: minha alma ou meu espírito têm de afinar-se pelo que outros acham correto, e não pelo que eu mesmo desejo. Que esforço não nos custa, pelo menos perante alguns nomes, garantir um sentimento próprio e rirmo-nos na cara de alguns que, com seus discursos, esperam de nós um ar beato e uma expressão séria! O que nos é imposto nos é estranho, não nos é próprio, e é por isso que é “sagrado” e nos é difícil superar o “sagrado temor” que nos incute.
A hierarquia é o domínio dos pensamentos, o domínio do espírito!
Até hoje, continuamos hierárquicos, oprimidos por aqueles que se apoiam nos pensamentos. Os pensamentos são o sagrado.
O homem, de fato, não é uma pessoa, mas um ideal, um espectro.
A Antiguidade, em sua fase final, só conseguiu fazer do mundo sua propriedade depois de vencer sua supremacia e sua natureza “divina”, e depois de ter reconhecido sua impotência e “estultice”.
O mesmo se passa com o espírito. Apenas quando eu conseguir degradá-lo à condição de espectro e reduzir seu poder sobre mim à condição de mera obsessão, só então poderei vê-lo como dessacralizadodesconsagrado e desdivinizado, e nesse momento farei uso dele como se faz uso da natureza a nosso bel-prazer.
Agora só o espírito domina o mundo. Uma quantidade inumerável de conceitos enche a cabeça das pessoas. E que fazem os paladinos do progresso? Negam esses conceitos para colocar outros em seu lugar!

O egoísta e o egoísmo
Proudhon, tal como os comunistas, combate o egoísmo. Por isso, um como outros são a continuação e a consequência do princípio cristão, do princípio do amor, do sacrifício por um princípio universal, e estranho. Limita-se a levar até o fim, por exemplo, na propriedade, apenas aquilo que já há muito tempo está implícito na natureza da coisa, ou seja, que o indivíduo não tem propriedade.
Proudhon (e também Weitling) acha que diz o pior possível da propriedade quando se refere a ela como roubo. Independentemente da questão embaraçosa de saber o que haveria de fundamento a objetar contra o roubo, limitamo-nos a perguntar: o conceito de “roubo” será possível se não aceitarmos também o de “propriedade”? Como é possível roubar, se não houver já antes propriedade? Aquilo que não pertence a ninguém não pode ser roubado: a água que alguém tira do mar não é roubada. Assim, a propriedade privada vive por obra e graça do direito. Uma coisa não é minha graças a mim, mas graças ao direito.
Mas quem é para ti o egoísta? Um ser humano que, em vez de viver para uma ideia, ou seja, uma causa espiritual, sacrificando a ela seus interesses pessoais, serve a estes últimos. Um bom patriota, por exemplo, sacrifica-se no altar da pátria. E não se pode negar que a pátria seja uma ideia, porque não há pátria nem patriotismo para os animais, incapazes de espírito, e para crianças ainda sem espírito.
O sagrado só existe para o egoísta que não se reconhece, para o egoísta involuntário, para aquele que se coloca sempre em primeiro lugar sem, no entanto, se considerar o ser supremo, que só serve a si próprio e ao mesmo tempo pensa servir a um ser superior, que não conhece nada acima de si e, todavia anseia por algo de superior; em suma, para o egoísta que não quer ser egoísta, que se rebaixa, ou seja, combate seu egoísmo, mas ao mesmo tempo só se rebaixa “para poder ser elevado”, que é o mesmo que dizer: para satisfazer seu egoísmo. Como quer deixar de ser egoísta, procura no céu e na terra seres superiores; a quem servir e a quem se sacrificar; mas por mais que se sacuda e mortifique, ao cabo de tudo, o que faz o faz tão-somente por interesse pessoal, e seu famigerado egoísmo nunca o abandona. Por isso lhe chamo de o egoísta involuntário.
Todavia quem é que vai dissolver também o espírito em seu nada? Aquele que, por intermédio do espírito, demonstrou a nulidade, a finitude e a caducidade da natureza. Só ele pode também fazer o espírito descer ao nível da nulidade: eu posso fazer isso; pode fazê-lo cada um que aja e se crie como um Eu ilimitado. Em uma palavra: pode fazê-lo... o egoísta.

A prisão
O código penal só subsiste através do sagrado, e morre por si s se renunciar à pena. O “crime” ou a “doença” não correspondem a pontos de vista egoístas da questão, ou seja, a um juízo feito a partir de mim próprio, mas de um outro, que eles ofendam o direito, o geral, ou a saúde, em parte do indivíduo (do doente), em parte o geral (da sociedade). O “crime” é tratado implacavelmente, a “doença” com “ternura sensível, piedade”, etc.
O regime prisional é uma coisa estabelecida e sagrada, e não pode haver tentativas de o pôr em discussão. A menor contestação é punida, tal como toda revolta contra aqueles objetos sagrados que prendem o homem e de que ele é prisioneiro.
Todo eu, desde o nascimento, é um criminoso contra o povo, contra o Estado. Por isso este vigia realmente todos, vê em cada indivíduo um... egoísta, e receia os egoístas. Imagina o pior de cada um, e dá atenção policial, a que “nenhum dano possa ser feito ao Estado”. O eu sem peias — e é isso que somos originalmente, e continuamos a sê-lo no mais íntimo de nós — é para o Estado o criminoso em permanência. O indivíduo que é guiado por sua ousadia, por sua vontade, por sua indiferença aos princípios e aos receios, é rodeado de espiões a serviço do Estado e do povo. O povo — e vocês, cidadãos bondosos, que pensam maravilhas dele! —, o povo está totalmente impregnado de mentalidade policial.
A sociedade quer que cada um tenha os seus direitos, mas esses direitos são apenas os que a sociedade sanciona, os direitos da sociedade, e não os seus. No entanto sou eu que me concedo ou retiro direitos, usando a plenitude do meu próprio poder, e sou o mais endurecido criminoso perante qualquer poder superior. Dono e criador de meus direitos, não reconheço nenhuma outra fonte de direito que não seja... Eu — nem Deus, nem o Estado, nem a natureza, nem o homem com seus “eternos direitos humanos”. Como o direito humano é sempre um direito dado, acaba sempre por ser o direito que os homens se dão uns aos outros, ou seja, se "concedem".
Aquilo a que chamei “meu direito” já não é “direito”, por que o direito só pode ser concebido por um espírito, seja ele espírito da natureza, seja o da espécie, da humanidade. Aquilo que tenho sem que para isso precise de um espírito que o legitime, tenho-o sem direito, tenho-o unicamente por meu poder.
A palavra “sociedade” (Gesellschaft) tem sua origem na palavra “sala”. Se uma sala acolhe muitas pessoas, a própria sala transforma essas pessoas em uma sociedade. A função de uma prisão é fazer com que nós, em conjunto, desempenhemos uma tarefa, trabalhemos como uma máquina. Porém, a prisão é posta em perigo se eu esquecer que sou prisioneiro e entrar em relação contigo, que também esquece essa condição: tal coisa não só não pode acontecer, como nem é permitida. À semelhança da sala, também a prisão institui uma sociedade, um lugar de camaradagem, uma comunidade (por exemplo, comunidade de trabalho), mas não relações, não reciprocidade, não uma associação.
Na prisão, toda associação é suspeita de “conspiração”. Todavia, na prisão geralmente não se entra de livre vontade, nem se fica lá de livre vontade; pelo contrário, ela alimenta um desejo egoísta de liberdade. Por isso, é evidente que as relações pessoais aqui se desenvolvem em hostilidade contra a sociedade prisional e tendem para a dissolução dessa sociedade, da detenção em comum.

Pedagogia
Tal como sucede nas outras esferas, também na pedagogia não se permite que a liberdade se manifeste, nem que se exprima a força de oposição: exige-se a submissão.
Pretende-se somente uma domesticação, pelas formas e pelo palpável, resultando do tratamento dos humanistas, apenas letrados, e dos realistas, “cidadãos aptos para tudo”, mas tanto uns como outros são seres submissos.
O nosso sadio fundo de indisciplina é asfixiado com violência e, junto com ele, o desenvolvimento do saber no sentido do querer livre. O espírito filisteu é, portanto, o resultado da existência escolar. Da mesma maneira que, na nossa infância, nos habituamos a fazer tudo o que nos impunham, identicamente, mais tarde, resignamo-nos e adaptamo-nos à positividade e pelo nosso compromisso com o nosso tempo viramos seus escravos, os pretensos bons cidadãos.
Os indivíduos cujos pensamentos e atos são animados de um movimento e de um rejuvenescimento perpétuos são bem diferentes daqueles que permanecem fiéis às suas convicções. As próprias convicções permanecem impassíveis, a pulsação do coração que faz circular em nossas veias um sangue sempre renovado não as anima; elas cristalizam-se, tais como corpos solidificados.
Na realidade, se a escola permite-nos controlar os objetos e, se preciso, controlarmos a nós mesmos, ela não faz de nós seres livres. Não existe saber, por mais vasto e profundo que seja, nem vivacidade de espírito e perspicácia, nem fineza dialética que possam preservar-nos da banalidade de pensamento e de vontade. E tudo isso porque o ensino não se limita unicamente ao aspecto formal ou material, e quando muito, conjuga os dois, porque ele não busca a verdade e não tenta educar homens verdadeiros.
            A miséria de nossa educação até os nossos dias reside em grande parte no fato de que o Saber não se sublimou para tornar-se Vontade, realização de si, prática pura. Os realistas sentiram essa necessidade e preencheram-na, mediocremente por sinal, formando ‘homens práticos’ sem ideias e sem liberdade.

Arte
Sem a arte e o artista, o criador do ideal, a religião não poderia nascer. Se a arte constitui o objeto e se a religião vive somente pelo encadeamento a esse objeto, a filosofia se distingue nitidamente tanto de uma como de outra. Esta última não se opõe a um objeto à maneira da religião, nem constitui um, à maneira da arte. Respirando liberdade, pelo contrário, ela estende sua mão destruidora tanto contra a constituição do objeto, como contra a própria objetividade. A razão, espírito da filosofia, ocupa-se somente de si e não se preocupa com nenhum objeto. Para o filósofo, Deus é tão indiferente como uma pedra; ele é o mais decidido dos ateus. Quando se ocupa de Deus não é para venerar, mas inversamente para rejeitá-lo.
A verdadeira moralidade e a verdadeira piedade não se deixam nunca distinguir inteiramente. É que mesmo os adeptos da moral que negam a existência do Deus pessoal conservam no bem, na verdade e na virtude, o seu Deus e a sua Deusa.
Elaboram-se propostas sem conta para melhorar o Estado, tal como antes da Reforma se fazia para melhorar a Igreja: procura-se melhorar onde já não há nada para melhorar.
O homem moral está naturalmente limitado pelo fato de não conhecer outro inimigo que não seja o “imoral”. Por isso o homem moral nunca poderá compreender o egoísta.
Sagrado é, acima de tudo, o “espírito santo”; sagrada é a verdade; sagrados a justiça, a lei, a boa causa, a majestade, o casamento, o bem comum, a ordem, a pátria, etc.
O divino é a causa de Deus, o humano a causa “do homem”. Minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal, mas sim... única, tal como eu.
Eu sou dono de meu poder, e o sou quando me sei único. No único, o próprio regressa para seu criativo nada do qual nasceu. Todo ser mais elevado acima de mim, seja Deus, seja homem, enfraquece o sentimento de minha singularidade e empalidece apenas diante do sol desta consciência. Se eu me ocupo de mim mesmo, o único, minha ocupação repousa sobre seu criador transitório e mortal, que se consome, e eu posso dizer: Eu fundo minhas coisas em nada.
E que outra coisa buscava Diógenes de Sínope senão o verdadeiro gozo de viver, que descobriu ser o de ter o mínimo de necessidades? E que outra coisa buscavaAristipo, que com grande serenidade encontrou esse gozo em todas as situações? O que todos eles buscam é a coragem de viver, a alegria, procurar “viver bem neste mundo”.
O tigre que me ataca tem os seus direitos, e eu, que o abato, tenho os meus. O que eu defendo contra ele não são meus direitos, mas eu próprio.
Para mim, nada está acima de mim.

Fontes:
O único e sua propriedade (1844). Tradução de João Barrento. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
“O falso princípio de nossa educação” (1842). In: Textos dispersos. Organização e tradução de S. Bragança Miranda. Lisboa: Via Editora, 1979.
“Algumas observações provisórias a respeito do Estado fundado no amor” (1844) In: Revista verve, n. 1, São Paulo: Nu-Sol, 2002.
“Mistérios de Paris” (1844). In: Revista verve, n. 3. São Paulo: Nu-Sol, 2003.
“Arte e religião” (1844). In: Revista verve, n. 4. São Paulo: Nu-Sol, 2003.

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