sábado, 25 de maio de 2013

Saúde: Subjetividade à flor da pele


Por Davi de Lacerda*

A porta dupla que separa o consultório da sala de espera não permite entender o que se fala lá fora. O primeiro encontro é sempre visual e frequentemente traz surpresas. Há alguns anos atendi um casal de jovens. Percebi que ele tinha acne; mas era ela quem passaria em consulta. Após desculpar-se por chegar atrasada – a prova do vestido de noiva foi demorada - ela decidiu entrar sozinha.

"Quando falei que tínhamos uma hora para sua consulta ela deixou de lado os papéis e colocou a mão no queixo como quem reelabora o que teria para dizer"

A paciente estava ansiosa, já havia consultado vários especialistas. Sua queda de cabelo iniciada há algumas semanas piorava rapidamente, o que pôde ser percebido facilmente, pois ao remover seu lenço alguns pelos caíram. Quase chorando disse que não suportaria ficar “careca”. Prosseguiu com o relato já bem depurado pelas consultas passadas, dizia alopecia e não mais queda de cabelo, e mostrou alguns exames. Quando falei que tínhamos uma hora para sua consulta ela deixou de lado os papéis e colocou a mão no queixo como quem reelabora o que teria para dizer. Perguntei o que se passava na sua cabeça. Ela respondeu: “desculpe doutor, eu estava pensando longe: hoje o vestido finalmente coube como deveria”. Perguntei mais sobre o vestido. Ela contou que se sentia gorda e que havia feito um implante com hormônios para emagrecer. Também descobri que sua pressão subiu e um cardiologista, desconhecendo o implante, receitou um remédio que funcionou muito bem. Depois precisou ir ao psiquiatra visto que estava se sentindo um pouco deprimida; mas este problema já havia sido resolvido com outro medicamento. Olhando para o relógio, mudou de posição e disse que viera para tratar a queda de cabelo, e como já havia falado muito de outras coisas não queria perder mais tempo.
Causa do Problema
Respondi que passaríamos ao exame físico, mas que ela podia continuar a falar do vestido, pois já sabia o que fazer para melhorar a queda de cabelo. Sem perceber ela relatou precisamente a causa de seu problema – o implante hormonal tanto pode causar queda de cabelo quanto aumentar a pressão arterial, o medicamento prescrito pelo cardiologista além de agravar a alopecia pode provocar depressão leve, e o medicamento para depressão, apesar de acalmá-la somente acentuou a queda. Decidimos suspender todos os medicamentos. Seus cabelos voltaram, mas ela precisou ajustar o vestido. Outro dia, soube que havia se separado do marido. Histórias médicas não são contos de fadas, na melhor das hipóteses terminam em alta.
Este caso, entre outros, me leva a questionar até que ponto a medicina contemporânea, comprimida entre os ponteiros do relógio, atende verdadeiramente às demandas dos pacientes. Obviamente não se trata de uma pergunta superficial. Por esta razão, e porque sou dermatologista, proponho considerarmos a pele e a partir dela mergulharmos em busca da raiz da questão.
Pessoalidade
Pele cada um tem a sua – todos nós sabemos que a relação da pele com seu meio externo e interno se faz de forma muito variada. Apesar disso, se você já foi ao dermatologista, provavelmente percebeu que essa afirmação é facilmente esquecida durante o exame. Os dermatologistas são ensinados a dar nomes complicados para as “berebas” - mais pela aparência delas que pelo incômodo que elas causam.  A consulta dermatológica clássica preconiza que não se considere a fala do paciente no estabelecimento do diagnóstico. O profissional deve ser capaz de diagnosticar simplesmente olhando a pele – a lesão fala por si mesma em quase todos os processos, e anos de prática demonstram que fala mesmo.
A classificação das lesões decorre do padrão visual que o olho nu (ou armado de um microscópio) pode oferecer. Irritações e feridas são dissecadas de tal forma a se enquadrarem em um repertório sedimentado em mais de 150 anos de relatos. Esta abordagem oferece sucesso inequívoco na grande maioria das manifestações da pele. Ela permite que o médico bem treinado possa em poucos minutos, ou mesmo alguns segundos, afirmar se o paciente tem psoríase ou linfoma. Ela também permite a construção de algoritmos para diagnósticos precisos de fotografias enviadas pela internet, para elaboração de aplicativos no celular que inferem o risco de uma lesão ser melanoma de forma tão fantástica quanto o Shazam  - aplicativo para smartphone que identifica qual música está tocando em qualquer autofalante. Tudo corrobora para que aumentemos a produtividade e atendamos mais pacientes em menos tempo, até prescindindo de médicos.
Demandas do Sujeito
A estrutura elementar da lesão nos permite desvendar suas causas, catalogar variações, e visualmente acompanhar a evolução de diversos tratamentos. A prática dermatológica atesta a eficácia da racionalidade cartesiana e da padronização na medicina. Por outro lado, ao demarcá-la tão precisamente, paradoxalmente revela suas limitações: a demanda do sujeito, em forma de queixa e sintoma, não mantém proporcionalidade direta com a elementaridade da lesão.
Há paciente cujo corpo está coberto de feridas e sua queixa não passa de um pelo encravado. Por outro lado multidões crescentes buscam na dermatologia não a cura de doenças e sim a possibilidade de manipularem a aparência, de eliminarem rugas que ainda não existem, e de encontrarem nas suas fotografias o ideal plástico que sonham de si mesmas. Nesta busca no espelho, a identificação consigo mesmo é mais profunda e mais complexa que a imagem refletida.
Na frente do médico o sintoma grita o que a lesão somente poderia sussurar – a subjetividade transforma as possibilidades diagnósticas de qualquer manifestação clínica. Consequentemente a manifestação singular não se apresenta como uma mera reconfiguração caleidoscópica de elementos preestabelecidos, que podem ser catalogados em função das suas semelhanças – pelo contrário, ela representa justamente o descompasso que impede que o mesmo elemento seja percebido, sentido, introjetado ou projetado simetricamente por duas pessoas distintas. Ela é a totalidade de um universo que somente pode existir em contraponto ao que não lhe pertence. É ela quem individualiza o mundo psíquico, e assim como a pele separa o nosso corpo do que está fora e preserva a integridade do seu interior.
Relegando o Humano

"Infelizmente o aspecto humano da relação, baseado no vínculo entre doente e cuidador, tem sido relegado ao segundo plano, ou mesmo ao terceiro, se considerarmos que a gestão dos recursos supera em esforços a preocupação com a atenção dispensada ao doente"

O exame cutâneo de qualquer pessoa permite estabelecer um compêndio de diagnósticos, sempre insuficientes para produzir um retrato falado de quem examinamos. Este enigma não se restringe à pele. Os exames de sangue e as imagens, do cérebro ou do coração, revolucionam aceleradamente a relação de pacientes e médicos, mas têm sido incapazes de acolher ansiedades e angústias. Do ponto de vista econômico, a tecnicidade da medicina contemporânea pode tanto encarecer quanto baratear o custo final dos tratamentos; porém, ao transferir às máquinas o veredito do diagnóstico facilita o aparelhamento deste em commodity, democratizando o acesso de bilhões ao status de consumidores dos serviços de saúde. Infelizmente o aspecto humano da relação, baseado no vínculo entre doente e cuidador, tem sido relegado ao segundo plano, ou mesmo ao terceiro, se considerarmos que a gestão dos recursos supera em esforços a preocupação com a atenção dispensada ao doente.
Os avanços tecnológicos não são inimigos da medicina; pelo contrário, sempre a propulsionaram na superação de obstáculos antes intransponíveis. O que se opõe a sua prática humanizada é remover do centro o principal interessado – o paciente na sua singularidade. Pode ser que no futuro distante, como no universo das ficções científicas, os equipamentos cibernéticos adquiram a capacidade de entender o humano e de supri-lo nos seus desejos. Bem mais realista, entretanto, é considerar o que a prática diária nos ensina: gente precisa de gente, principalmente quando atingimos o limite da cura e adentramos nas situações irremediáveis. Assim como a pele é acariciada pelo toque cuidadoso, o paciente crônico tem alívio do seu sofrimento quando é escutado pelo médico.
Sintomas x Subjetividade
A escuta da subjetividade embutida no relato dos sintomas é o fundamento da medicina. Seu valor continua explícito na psicanálise, mas tem se diluído na prática médica. Confrontada com uma demanda hipocondríaca crescente a medicina tem respondido reflexamente criando mais doença, mais exame e mais remédio. Analisar o que realmente importa para o paciente oferece meios de reverter esta espiral infindável. Escutar o paciente é vê-lo além da superfície, reposicionando-o no centro de toda estratégia como indivíduo pleno e merecedor de mais saúde.
 Davi de Lacerda é médico dermatologista 

Nenhum comentário:

Postar um comentário