sábado, 10 de novembro de 2012

hypomnemata 149 - nu-sol


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 149, outubro de 2012.

Do governo das condutas e das contra-condutas
Ganha mais um impulso o programa de retirada de usuários de drogas do meio urbano.
Iniciado na Bahia e realizado em São Paulo foi expandido para o Rio de Janeiro, depois da pacificação na comunidade Jacarezinho.
Os governos levam adiante seu programa de assistência voluntária, involuntária e compulsória ao usuário de drogas; acoplam ao tráfico capitalista os itinerários complementares dos que transitam entre o recolhimento e o acolhimento; situam as premissas que norteiam o controle de si e dos outros relativos à despoluição de si e o usuário é visto como possível capital humano virtual a ser atualizado no e pelos programas de cuidados.
O resultado esperado é a reforma do meio urbano com o consentimento dos cidadãos, ao mesmo tempo em que as políticas ambientais ganham contornos eugênicos.
Sabemos que no passado recente houve um grande investimento autoritário neste sentido; seu foco estava nos deficientes, loucos, estranhos, subversivos, gays e, por último, nos judeus; suas práticas levaram aos campos de concentração e de extermínio até a solução final.
Todavia, os revestimentos humanistas a estas práticas condenadas durante a II Guerra Mundial, amenizaram democraticamente as políticas de segregação, extermínio e controle dos outros.
A prática recente, ao se fundar no consentimento obtido junto aos normais que habitam a população, repete o ponto de partida do mesmo procedimento eugênico nazista tão condenado pela retórica do humanitarismo contemporâneo.
Não se trata mais de supressão de anormais ou de uma raça.
Agora, o revestimento humanitarista e ambiental dirige-se ao atendimento e ao acompanhamento como cura interminável pelos procedimentos similares aos das internações no passado.
Entretanto, mesmo não recebendo o nome de campo de concentração, os espaços de confinamentos para tratamentos reiteram as mesmas práticas de segregação e limpeza; o objetivo não é mais o do extermínio, mas sim o da produção de programas de saúde e segurança voltados à despoluição de cada um, possibilitando seu acesso à condição de capital humano.
Pela programação sobre a cura interminável, redimensiona-se a esperança de cada usuário na sobrevivência, por meio da sua adesão circunstancial à moral da ordem; de outro lado, difunde-se a conexão entre programa de vida e vida programada não só para o regime geral do governo das condutas como também para o das contra-condutas.
O tráfico permanece restrito ao combate político-repressivo, ao mesmo tempo em que as programações inacabadas, voltadas aos usuários, atualizam o processo de governo das condutas com base no tratamento dos transtornos e nos cuidados com os transtornados.
As drogas continuam vistas pelos governos e sociedade como efeito nocivo sobre corpos e mentes de pessoas de fraca consistência psicológica, a serem governados pelo discurso psiquiátrico humanitarista.
Nada de discussão sobre o uso de drogas senão pelos efeitos do tráfico; nada de propostas objetivas relativas ao fim do tráfico.
Ao contrário, tais programações consideram o tráfico como normal e, em seu limite, abarcam a possibilidade neoliberal de legalização das drogas como produto comercial acoplado ao gerenciamento de condutas pelos dispositivos legais do Estado, atualizados pelos programas de cuidados.
Nem poderia ser diferente: o capitalismo começou com tráficos e se sustenta com base na permanência das conexões entre reprodução do capital e ilegalismos.
No meio disso, mais uma vez, os pobres e os miseráveis estão disponíveis a ser tanto mão de obra do tráfico, quanto usuários de drogas.
Eles são considerados a população-alvo para intervenções psiquiátricas, sob o regime de programas governamentais com a participação de organizações não-governamentais, recebendo o auxílio à sua própria despoluição e contribuindo para a sustentabilidade capitalista.
É o melhor que se pode oferecer a eles com apoio dos demais cidadãos; é de melhoria em melhorias que se governam as condutas socialmente aceitas ou não.
As contra-condutas voltadas a negociações sobre legalizações pontuais deixam intocável a produção de ilegalismos por estarem dirigidas à descriminalização de condutas relativas às chamadas drogas leves, como a maconha, usualmente consumida, hoje em dia, por estratos superiores aos dos miseráveis.
Enquanto isso as condutas combatidas fazem parte dos programas sociais de pacificação de favelas, limpeza e valorização dos centros urbanos, produção de empregos assistenciais de segurança e saúde para especialistas e ONGs que são aplicados aos usuários de drogas condenadas para funcionarem como retratos de redutores de violências.
A população dos cidadãos está presente não apenas consentindo, mas obtendo empregos e dando dinâmica à melhoria das condições de seu acesso à renda; ao mesmo tempo, direta ou indiretamente, governa de modo eugênico a população dos insuportáveis.
Esta deve reconhecer os efeitos das benfeitorias da programação de sua despoluição individual relacionada à composição de um ambiente mais saudável governado pela panaceia da cura.
Não se trata mais de segregar para exterminar, mas de identificar para incluir de maneira limpa.
O usuário deve, voluntariamente, aderir para que os esforços na redução de internações involuntárias e compulsórias justifiquem a ampliação dos programas.
Espera-se que cada programa siga inacabado, pois não há nem haverá nenhuma disposição para a erradicação do tráfico; sua eficiência se mostrará e atestará, por meio de estatísticas divulgadas midiaticamente e pela difusão da restauração da exemplaridade da vida em família com apoios de ONGs e organizações transterritoriais.
Resultado atual da proliferação dos programas de saúde e segurança para os usuários: crescimento da descriminalização de condutas pontuais e políticas inofensivas, visando transformar a droga em mercadoria legal sob um padrão de fiscalização conectado ao domínio das condutas pelo Estado.
Não se trata mais da biopolítica pela qual o Estado governava a espécie, sua população em um território; agora, trata-se de governo da vida de certas populações por demais populações realizado pela simbiose Estado-sociedade civil e organizações transterritoriais.

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