sexta-feira, 5 de abril de 2013

“O carcereiro que há em nós”

Entrevista Edson Passetti 
Professor do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e coordenador do Núcleo de Sociabilidade Libertária (NU-Sol). No Seminário "Entre garantia de direito e práticas libertárias", realizado pelo CRPRS, no final de 2012, Passetti conduziu a mesa “O carcereiro que há em nós”.
CRPRS – Em sua opinião, questionar a falácia do estado democrático e do próprio campo dos direitos humanos significa abandonar este território de luta?
Edson Passetti – Não. Todavia é preciso estar atento para o que o Estado quer de cada um. E, hoje em dia, ele depende de uma governamentalização participativa. Precisa de todos fiscalizando os direitos. O que devemos nos perguntar é se é isso o que queremos. De imediato, constataremos que não há consenso, seja por parte das forças conservadoras e fascistas, seja pelos libertários. Como o Estado Democrático de Direito funciona por maioria numérica, ele tende a subalternizar contestações, inserindo-as de maneira seletiva. Os direitos humanos vêm de 1948, como efeitos da guerra, do combate ao comunismo, da situação das colônias, do imperialismo, enfim, funcionou contra os “abusos” sobre os corpos e mentes. É disso que ele trata, de conter abusos e regular condutas comedidas. A luta contra instituições austeras, ao contrário, foi e é imediata. Deve, portanto, estar adiante das denúncias, pois essas são sempre reparadoras e funcionam para as seletivas reformas, facilitando a recomposição das instituições austeras (prisões, hospícios, recolhimentos de jovens infratores, refugiados...) por meio de privatizações, gestões compartilhadas, ou mesmo de programas contínuos de descentralização administrativa que expandem monitoramentos territoriais e transterritoriais com a participação da sociedade civil organizada. A luta pelos direitos humanos deve ser a luta pela vida, portanto insubmissa, posto que o direito sempre é efeito da força. No caso dos direitos humanos, os combates aos abusos repercutem em outras formas de punição. É preciso liberar o direito à vida que se materializou em direitos humanos como fluxo contínuo da cultura do castigo, e hoje em dia, principalmente, desta fixação em suprimir as impunidades, que nada mais é do que reconhecimento por conduzir-se em um campo delimitado, o do território da fiscalização, de novas institucionalizações e da participação pluralista.
CRPRS – Que espaços de militância/combate são mais efetivos hoje?
Edson Passetti – Aqueles onde são possíveis práticas de liberdade, de direito à vida, de abolição da punição (nas relações pessoais e da continuidade das instituições austeras). É preciso não só atravessar essas instituições com práticas que interditem seus funcionamentos, como precaver-se do ideal colaboracionista de reformá-las. Quem trabalha em uma instituição austera, primeiro deve enfrentar a escolha ou seu conformismo com o imperativo de empregabilidade. Muitas vezes, os jovens procuram este tipo de trabalho visando limpá-las de torturas, práticas indesejáveis para fazê-las melhor. Isso é o que se espera de um profissional dos direitos humanos no interior de uma instituição austera ou nas suas fiscalizações por meio de ONGs, institutos e fundações.
CRPRS – Quais são as formas e resquícios em que se manifestam as heranças da ditadura militar no atual contexto social?
Edson Passetti – Hoje em dia é raro alguém não se dizer democrata, e não é nada difícil compreender essa conduta. Há milhares de vermes vivos que assim se declaram, mesmo porque são capazes de afirmar que o golpe civil-militar de 1964 tinha por objetivo a democracia e ela aí está. Isso é política. Desta maneira nada como crer na justiça e suas respectivas secretarias, comissões e ministérios. Tudo aí prontinho para funcionar democraticamente de modo majoritário, o que supõe que se você faz parte de uma minoria descontente, deve organizar-se para compor uma nova maioria; esta é a circularidade positiva do poder. Esta é a verdade, a verdade do Estado para a qual cada um deve colaborar com suas práticas participativas e fiscalizadoras. Insiste-se que o Estado precisa ser preservado, ele ainda é a categoria do entendimento. Então são os governos que se tornam alvo de denúncias, punições relativas, revisões e, por isso mesmo, fortalecem e preservam o Estado. Parece não ser possível viver sem Estado. Assim sendo, é debatendo os governos, e, por conseguinte, os regimes políticos, que cada um fortalece também o Estado dentro de si. As pessoas abdicam de sua capacidade para governarem a si próprias sem Estado. Elas estão dispostas a obedecer, assim foram e são educadas, com maior ou menor rigor punitivo, e desse modo elas creem nas reformas das leis e dos procedimentos burocráticos. São cidadãos do e para o Estado!
CRPRS – Qual a sua opinião em relação às políticas adotadas que caracterizam violações de direitos e inconstitucionalidade e que vem retornando nas tentativas de mudanças de legislações, como internação compulsória, comunidades terapêuticas, remoção de moradias, em função de obras para Copa?
Edson Passetti – Somos governados por uma agenda futura. Isso explicita que devemos melhorar a vida das futuras gerações. É o novo perfil humanitarista do capitalismo sustentável. Este deve ser o paradigma e suas práticas devem sedimentar a utopia a ser realizada. Compõe-se um patchwork de fluxos intermináveis para dar procedimento programático às reformas. Um dia, somos alertados para a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) como “capaz” de acabar com traficantes, mas sem se arranhar o fim do tráfico (para o momento, descriminalizar a maconha é um redutor de danos; eis aqui um dos efeitos do possível e da melhoria). Segue a comunidade terapêutica e prosseguem os manicômios; segue a penalização a céu aberto e prosseguem as edificações de prisões de segurança máxima; retifica-se a internação compulsória para “viciados” e prossegue a higienização urbana, a remoção de moradias, a limpeza da paisagem e a revitalização dos centros das cidades... Estamos no fluxo da erradicação da miséria promovida pela ONU com o enriquecimento extraordinário dos bancos, a exploração da força de trabalho chinesa, os agronegócios, os negócios sociais, enfim, estamos na era dos negócios e dos empreendedores. Estado e sociedade civil querem limpeza. O preço é baixo: amar a sobrevivência, reduzir a vida a isso, ser um empreendedor de si, tornar-se capital humano. Tudo isso revestido de direitos, organizações, políticas fiscalizadoras governamentalizando a vida. Uma conduta moderada. É isso o que a produção monitorada destas medidas gera para a agenda futura.
CRPRS – O que seriam práticas libertárias no atual contexto?
Edson Passetti – Práticas anti: participativas, moderadas, sustentáveis (pois são sempre para o futuro do capitalismo; caso se objetivasse um equilíbrio com a natureza, já não seria sustentável), reformistas, governamentalizadoras... Práticas, enfim, que decorrem de atitudes de liberdade; sem dúvida, anti-instituições austeras, anticultura da punição, anticapitalistas.
CRPRS – Frente ao momento atual de aumento da demanda punitiva da população – questão que tem tomado inclusive os movimentos sociais, como, por exemplo, o movimento pela criminalização da homofobia – como é possível conduzir um debate ou mesmo construir um projeto que leve a redução do Estado Penal?
Edson Passetti – O Estado de direito é um Estado penal, senão não seria Estado. Estado sem punição é vida sem Estado, sem sociedade civil organizada (porque esta sempre foi organizada, inclusive para pedir fascismos, nazismos ou mesmo como no golpe de 1964, por isso este foi e sempre deverá ser compreendido como um golpe civil-militar). Houve um tempo em que o Estado punia as relações entre pessoas do mesmo sexo como homossexualismo condenável moralmente. Hoje ele deve punir condutas contra o homoerotismo. Produziu-se uma inversão de sinais, revisão de conceitos. Houve progresso na aceitação desta conduta porque ela é produtiva e ajustou as transgressões sexuais às regulações familiares. Esta é a positividade do poder. A repressão é, e sempre foi, apenas uma ponta do iceberg que governa a conduta obediente e produtiva.

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