sexta-feira, 10 de agosto de 2012

hypomnemata 146 - nu-sol


Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol
Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 146, julho de 2012.
R i o + 2 0 e m p a r a l e l a s:
s u s t e n t a b i l i d a d e
de p i l a r e s e c ú p u l a s
duplos complementares de futuro em pilares e cúpulas
Rio+20 foi o futuro da Rio-92 que foi o futuro de Estocolmo 72, momento em que o dispositivo meio-ambiente planetário entrou nos debates e resoluções de governos conectando capitalismo e democracia.
Rio+20 foi o novo redimensionamento do “nosso futuro comum”, título do relatório da ONU de 1987, que definiu que o futuro das gerações vindouras dependeria do desenvolvimento sustentável assentado no crescimento social e econômico que não esgotasse os recursos ambientais.

Dois grandes encontros compuseram o conjunto da Rio+20: a Cúpula dos Povos por Justiça Social e Ambiental, com os movimentos da sociedade civil, realizada no Aterro do Flamengo, e a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (UNCSD), com os representantes dos países membros e das organizações da sociedade civil cadastradas no sistema da ONU, as quais também contaram com espaço para mesas-redondas e palestras em eventos paralelos ligados à Conferência, realizados no Riocentro.
Os mais importantes documentos discutidos em 2012 mantiveram a referência ao futuro: O Futuro que queremos, “Um Futuro digno de escolha” (subtítulo do documento Planeta Resiliente, Povos Resilientes, elaborado pelo Painel de Alto Nivel sobre Sustentabilidade Global da ONU) e O Futuro que não queremos, manifesto-protesto das organizações presentes na Cúpula dos Povos.
Para os três documentos, o futuro resulta de escolhas, no caso, escolhas subsidiadas pelas discussões programadas pelo conjunto dos eventos da Rio+20.
São escolhas complementares em torno da resiliência, termo que também designa voltar atrás, em suas projeções e metas para a restauração do governo do vivo em suas variações contínuas, com o apoio político das verdades científicas e implantadas com a força da chamada “vontade política”, dos Estados e da sociedade civil organizada.
O relatório Povos Resilientes, Planeta Resiliente: um futuro digno de escolha foi uma contribuição para o debate da Conferência em que primeiramente se avaliou a situação presente como resultado de escolhas ao longo de 25 anos, tendo como marco temporal o relatório Nosso Futuro Comum (1987).
São então propostas 56 medidas concretas para “levarmos o paradigma de desenvolvimento sustentável das margens para o centro do debate econômico global.” Desse modo projeta-se um futuro pelo qual vale o esforço de “governos, mercados e pessoas;” em que se realiza “a visão da sustentabilidade global, produzindo tanto um povo resiliente quanto um planeta resiliente.”
Trata-se de modulações programáticas na construção da verdade resiliente para os povos e o planeta, para o desenvolvimento sustentável assentado nos pilares econômico, social e ambiental.
Exigem articulações de minorias redimensionadas em major groups, pacificações de confrontos mediados por stakeholders, como nova estratégia de fazer convergir a participação e reproduzir seletividades voltadas à gestão planetária de governos compartilhados, interessados na administração da miséria alheia e na sua mesma, na segurança da proteção da propriedade e na salvaguarda da existência do Estado.
Consolidou-se, desta forma, as conexões esperadas para a continuidade da programação do desenvolvimento sustentável.
O futuro que queremos foi o documento final aprovado pela Conferência da ONU que resultou de um consenso diplomático para apresentar um texto baseado em um “mínimo denominador comum”, sem que se ensejassem conflitos e discussões pontuais.
Os 283 parágrafos aparecem todos na 1ª pessoa do plural: reconhecemos, reafirmamos, resolvemos, decidimos, comprometemo-nos, apoiamos, convidamos, destacamos.
“Nós,” quem?
Chefes de Estado e representantes de alto escalão dos governos, com “plena participação da sociedade civil” nas negociações dos itens do documento por meio de organizações dos nove grupos majoritários, os major groups: mulheres, crianças e jovens, sindicalistas e trabalhadores, organizações não governamentais; industriais e empresários, agricultores, comunidade cientifica, povos indígenas, governantes locais.
A definição de nove grupos surgiu na ECO-92, devido à adesão de organizações da sociedade civil no Fórum Social Global, evento paralelo à Conferência oficial.
Hoje, muitas organizações desses segmentos são consultoras do Conselho Econômico Social (ECOSOC) da ONU e participaram dos encontros prévios da Rio+20 e de atividades ligadas à Conferência.
“Qual futuro?“
Nos termos do documento, um futuro sustentável para o planeta e para as gerações presentes e futuras, cujas condições para ser alcançado consistem na erradicação da pobreza e na constituição de um marco institucional eficaz e democrático.
O documento abre com essa “nossa visão comum”, prossegue reiterando declarações e decisões de conferências e encontros anteriores, afirmando duas proposições ainda inéditas: a necessidade de uma nova governança internacional para a sustentabilidade mediante um novo arranjo institucional do Sistema das Nações Unidas e a realização da economia verde como instrumento para o crescimento sustentável.
No entanto, a “plena participação” não garantiu a incorporação de propostas que não fossem consensuais no texto final, ou seja, valorizou o comum e deixou em aberto o caminho para que outras venham a ser incorporadas no andar da carruagem.
Por conseguinte, no decorrer da Rio+20, surgiu o manifesto “O futuro que não queremos. Sem nosso consentimento. Removam ‘com a plena participação da Sociedade’ presente no parágrafo 1 do texto oficial”.
“Nós", quem?
São “organizações da sociedade civil e movimentos sociais e de justiça que responderam aos apelos da Assembleia das Nações Unidas para participar da Rio+20”.
Elas exigem um futuro “moldado pela maioria”, uma maioria que soma 99% do mundo, segundo o manifesto.
E ainda de acordo com o documento, caberia às Nações Unidas e aos governos dos Estados membros “acordar urgentemente em ações de transição para o progresso sustentável e global.”
Acrescenta que predomina no texto oficial uma agenda imediatista, que implica escolha de um futuro pouco sustentável a longo prazo.
E enfatiza: “infelizmente o tempo está se esgotando. Um acordo apressado e ineficiente não será aceitável para nós, nem representará o futuro que todos queremos”.
Enfim, cumpriu o esperado: dar outros encaminhamentos possíveis e negociáveis no marco de uma institucionalização inquestionável à continuidade capitalista e democrática.
Na Cúpula dos Povos, as organizações sociais reuniram-se em diversos eventos, e lançaram uma Declaração Final: Em defesa dos bens comuns, contra mercantilização da vida.
O “futuro da humanidade” é citado como o alvo de uma “irresponsabilidade” por parte da conferência oficial, pois esta somente reiterou “os interesses das corporações e instituições financeiras”.
Por sua vez, a Cúpula dos Povos anunciou “um novo ciclo” nas lutas contra a injustiça, resultante das “convergências” construídas durante os acampamentos, as mobilizações, os debates.
Convergência para um “mínimo múltiplo comum”: de um lado, a identificação da causa estrutural da crise: o “capitalismo racista, machista e homofóbico” e de outro a certeza de que novos paradigmas emergem de alternativas em curso baseadas em “nossos povos, nossa história, nossos costumes, conhecimento”, em “uma economia cooperativa e solidária” que contrariam as corporações e o sistema financeiro.
O que urge no espaço presente, que jamais voltará, é o curso livre da vida.
É nele que habita o surpreendente, irredutível e inegociável.
Agora.
Incontrolável.
Indomável.
E nele não há cúpula que o recubra nem pilar que o sustente.
O resto é expressão de variações das condutas de governo, retraduzidas hoje em práticas resilientes em cada um e para o planeta.
duplo paralelo na democracia sem sustos
A Rio+20 foi considerada uma decepção por muitos dos ambientalistas e militantes que chegaram aos fóruns oficiais e paralelos do evento da ONU plenos de muitas expectativas.
Esperavam discursos mais propositivos dos governantes e menos circunlóquios de diplomatas; aguardavam mais do que as previsíveis cenas de concórdia, fingindo não saber que as conferências da ONU são burlescas encenações de negociações supostamente públicas, mas que são concluídas a portas fechadas, antes das fotos e dos brindes de champanhe, respondendo aos interesses diplomático-militares e do capitalismo transterritorial.
Ainda assim, tinham esperança de que fossem definidas metas mais ambiciosas de preservação ambiental, acompanhadas da ampliação e fortalecimento das normas e das organizações internacionais.
Mas ocorreu o esperado: no espaço de convenções do Riocentro, reservado para os encontros oficiais, foram muitos os discursos protocolares, as fotos, os sorrisos, o vaivém de gente engravatada, alguns encantados com o mise-en-scène, outros simplesmente cumprindo tabela.
E o documento publicado – já definido, como praxe, antes do primeiro estrangeiro aportar no Rio – foi uma sutil maquiada nos acordos já em vigor.
Dentre as demandas que não se concretizaram, esteve a que pleiteava a transformação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) numa agência internacional nos moldes da Organização Mundial do Comércio (OMC), com legislação e tribunal próprios aptos a monitorar e julgar os casos de degradação ambiental e de descumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados.
Entre governantes e diplomatas, essa proposta não mobilizou sequer discursos vazios.
Os países ricos não querem ser réus, os pobres também; os primeiros, por já terem devastado muito; os demais, por terem devastado e ainda pretenderemcrescer economicamente.
Ao invés disso, a solução articulada prometeu maiores fundos e peso político para os programas do próprio PNUMA sem que houvesse uma alteração do seu status institucional na estrutura da ONU.
Essa saída satisfez governantes, diplomatas, burocratas da ONU, ambientalistas profissionais e empresários responsáveis que a consideraram pragmática e, portanto, capaz de gerar frutos sem uma excessiva institucionalização que pudesse tornar lentas e ineficazes as ações de um super-PNUMA.
Assim, reunidos no Riocentro, os pragmáticos intergovernamentais ou da sociedade civil organizada (em ONGs e empresas) reconheceram a valorização do PNUMA como uma forma de avançar na regulamentação e controle multilaterais das questões ambientais mundiais sem engessar demais países e empresas que visam os fluxos mundiais de capital e consumo, de olho nos emergentes.
A Rio+20, no entanto, não foi só o Riocentro.
Do outro lado da cidade, na Cúpula dos Povos, fórum global das ONGs armado no Aterro do Flamengo, muitos dos mais entusiasmados defensores das causas ambientais protestavam contra o que engravatados coadunavam em Jacarepaguá.
Organizaram protestos e marchas nas ruas do centro da cidade para denunciar o acanhamento das decisões dos governos e reclamaram da falta de institucionalização, de leis e de instrumentos de controle e punição para as transgressões mundiais às normas ambientais.
Num pragmatismo à sua moda, argumentaram que de nada adiantaria a existência de tratados internacionais sem os instrumentos institucionais para sua execução.
E pelas tendas do Aterro, uma profusão de agrupamentos legitimava, à sua moda, a Rio+20, procurando confirmá-la como evento democrático e plural.
A distância entre o Aterro e Jacarepaguá e o suposto antagonismo entre os prudentes diplomatas e os mais radicais ambientalistas, fizeram deste trajeto o verdadeiro itinerário.
Se, de um lado, defendeu-se o comedimento, e de outro lado, o ativismo ambiental, ambos se alinharam na aceitação geral dos discursos da sustentabilidade e na necessidade de construir normas internacionais e fortalecer as instituições internacionais de modo a criar uma governança global ambiental.
O pragmatismo e a moderação – atravessados pela vontade de maiores controles e, no limite, na produção de instrumentos de controle e punição – estiveram presentes com cores mais ou menos brilhantes tanto num canto quanto noutro da cidade.
Riocentro e o centro do Rio formaram um duplo, complementando-se.
Se a Rio+20 pode ser analisada como mais uma celebração da verdade ambientalista e da sustentabilidade, que a todos mobiliza (sociedade civil, políticos, governos, empresas e organizações internacionais), a distinção do “passo marcado” lá e cá é embalada pelo chiado volátil e contornável de uma mesma frequência.
E como é próprio da diplomacia, cautela e protelação conjugam-se.
No entanto, há uma base comum na partilha do discurso de verdade sobre o meio ambiente planetário, que não prescinde de novas normas, instituições, controles, tribunais e punições.
O meio ambiente como sujeito de direito internacional, passível de proteção pela comunidade de Estados é uma verdade construída nas últimas décadas e que se reforçou com a Rio+20.
Esse caminho não descontentou nem a quem estava no Riocentro, nem os que flanaram pelo Aterro.
A vontade de norma e punição transitou entre engravatados e alternativos, festejando a diferença uniforme, o pluralismo, e o que se tem chamado de democracia.
Habitar o inegociável no presente, precário, provisório, diante de tanta vontade de segurança, é capaz de instaurar bem mais do que um susto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário