sábado, 11 de agosto de 2012

a arte de gostar do mesmo sexo


por luiz pereira de lima júnior* (Professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba).
A sociedade ocidental e os diferentes visores1 que a constituem estão impregnados de princípios universais, judaico-cristãos e moralistas. Concebem o exercício livre do sexo como algo condenável que reflete a procriação, presa ao casamento, pelo menos, formalmente, monogâmico. Tudo isso vincula-se a essa noção de matrimônio, que é universal. O matrimônio é tido como a grande plataforma da sexualidade2 e o caminho mais adequado para a prática sexual. Logo, tornou-se condição universal e habitual a instituição matrimonial.
Ajustando comportamentos
As relações entre pessoas do mesmo sexo3 opõem-se às formas tradicionais das práticas sexuais.4 São práticas diferentes que instauram resistências, abalando o arsenal dos comportamentos tidos normais, referentes à vivência do sexo. Essas pessoas são os anormais, pois desconhecem os limites impostos pela sociedade. É o monstro sexual, pois, segundo Foucault,5 não se trata de contranatureza, mas do monstro, ou seja, “...não uma noção médica, mas uma noção jurídica.”6
As ações para tentar conter as práticas anormais referendam a instituição matrimonial e a temática da prevenção geral; acontecimentos marcantes no cotidiano. Considerando-se sua aliança com a família, e com os valores morais e cristãos.

Essa postura retrata o pensamento platônico, considerando-se que as pessoas devem transitar, gradativamente, das percepções ilusórias para a contemplação da realidade pura e sem falsidade. Neste contexto, não há espaços para pensar a arte como transgressão.
Sob uma perspectiva diferente, a arte, para Deleuze,7 representa tudo aquilo que resiste. Resiste à morte, à servidão, à infância, à vergonha. O povo não se ocupa da arte, pois é difícil criar para si e criar a si próprio quando estão circundados por inumeráveis sofrimentos. Quando as pessoas se criam ou criam algo em torno de suas vidas, através de seus próprios meios, (re)encontram alguma coisa na arte, ou a arte reencontra alguma coisa que necessitavam. O artista, segundo Deleuze e Guattari,8 domina objetos, integrando com sua arte objetos partidos, danificados, estragados pelo tempo. Ele propicia máquinas paranóicas e técnicas. Permite também que essas máquinas técnicas sejam minadas pelas máquinas desejantes. Para eles, uma obra-de-arte é em si mesma uma máquina desejante, ou seja, impacientes como são, os artistas não esperam a hora para que as destruições ocorram. Ainda, para Deleuze e Guattari,9 a arte não espera o homem, e pode até mesmo aparecer-lhe em circunstâncias remotas.
Há um acontecimento que medrou no fim do século XX e alastrou-se no XXI, e que merece destaque. Ele denota essa forma de disciplina,10 de controle,11 e de ajuste dos comportamentos, sobretudo, os das pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Refiro-me ao Projeto de Lei de Parceria Civil Registrada (PCR), que reitera a sexualidade; embora não consiga conter as resistências que ressurgem do suposto anonimato.
Ao arrolar uma análise sobre o tema do PCR, Sarmatz12 diz que o Projeto de Lei 1.191/95, intitulado pelos críticos do Congresso, de casamento gay, deparou com muitas insinuações por parte dos que se apresentavam favoráveis à aprovação da referida Lei. A Câmara dos Deputados, em 4 de dezembro de 1997, colocou em pauta o Projeto de Lei de Parceria Civil Registrada, cuja autora foi a deputada federal Marta Suplicy. As pessoas vêem-no como uma possibilidade de se avançar socialmente, considerando que a união entre pessoas do mesmo sexo é um acontecimento que assola o país.  Embora saibam que o Projeto demora a ser aprovado, percebem que o tema está sendo discutido pela sociedade. Desta forma, “Em vez de apresentar o projeto a um deputado, é hora de todas as associações que lutam pelos direitos gays recolherem assinaturas e apresentarem o Projeto de Lei como uma ação popular. O projeto precisa ser mais
ousado.”13
O PCR, em seu texto, “...não prevê a adoção de filhos.” No entanto, abre possibilidades para uniões estáveis entre as pessoas do mesmo sexo, seguidas de uma gama de direitos e deveres, unicamente permitidos aos heterossexuais, tais como direito à herança, seguro-saúde extensivo ao casal e declaração conjunta de imposto de renda. Estes são compreendidos como avanços importantes, pois fazem parte da maioria das reivindicações do Movimento Gay nas duas últimas décadas.
Essa postura é respaldada pelo que vem sendo feito em diferentes países, como a Alemanha, a Holanda e a Suécia, que iniciaram a criação de um aparato jurídico para a união de pessoas do mesmo sexo. Na Holanda, essas pessoas já se casam com o crivo da lei, desde abril de 2002; na Alemanha, o registro de casais já é feito desde agosto do mesmo ano; na França e nos Estados Unidos, existem cidades e Estados em que a parceria civil já é um fato apoiado pela Justiça. No Brasil, o referido projeto vem sendo reiterado por diferentes profissionais. Existem pessoas acreditando nessas opiniões: “O judiciário brasileiro deve acompanhar a evolução da sociedade”14 e, desta forma, o projeto é concebido como a “‘Lei Áurea’ dos homossexuais.”15
A Parada do Orgulho Gay16 denotou o entusiasmo dos gays, sobretudo porque contavam com a sua fada madrinha, Marta Suplicy. Naquela ocasião, as pessoas não estavam pautadas numa postura imoral, com base na prática de Wilde;17 mas reiteravam a sexualidade.
Mesmo que esta postura se vincule a uma série de questões especialmente afetivas, como a necessidade que as pessoas têm de ser respeitadas, elas navegam entre a minoria e a maioria e, assim, reafirmam o preconceito, a discriminação e a sexualidade. Uma prática que é fundamentalmente artística passa a se circunscrever no cenário de todas as práticas sexuais: a heterossexualidade, veiculada de preferência pela posição missionária. A pretensão de liberação do Movimento Gay acaba sendo de libertação. A categoria homossexual pode vir a se constituir numa categoria hegemônica, como o feminismo e o gênero.
Ao falar dos movimentos designados de liberação sexual, Foucault diz que eles “...devem ser compreendidos como movimentos de afirmação ‘a partir’ da sexualidade. Isto quer dizer duas coisas: são movimentos que partem da sexualidade, do dispositivo de sexualidade no interior do qual nós estamos presos, que fazem com que ele funcione até seu limite; mas, ao mesmo tempo, eles se deslocam em relação a ele, se livram dele e o ultrapassam.”18
Sem se perder de vista a originalidade do aludido movimento, é mister falar do uso dos prazeres, colocados
por Foucault, especialmente, no que diz respeito aos rapazes. Isso representou, no cenário do pensamento grego, algo que gerou inquietação. Essa postura, para ele, era paradoxal, tendo em vista o lastro social em que se situou, onde a designada homossexualidade era, parcialmente, admitida. No entanto, “...talvez não seja muito prudente utilizar aqui esses dois termos. De fato, a noção de homossexualidade é bem pouco adequada para recobrir uma experiência, formas de valorização e um sistema de recortes tão diferentes do nosso.”19
A homossexualidade entre os gregos, de acordo com Alexandrian, não é bem contada entre os historiadores, os quais se equivocam ao dizer que ela era bem vista, pois as relações entre as pessoas seguiam um código de honra muito rígido. Ou seja, “Se os homossexuais o transgrediam, eram tratados com desprezo pelos termos injuriosos e obscenos de cinedes, de katapygones (correspondendo a bichonas, veados). A homofilia, relação homossexual entre dois adultos, era considerada repugnante. Só era possível haver relação amorosa entre um homem adulto e um adolescente de doze a dezoito anos. Se o eraste procurava um eromene de menos de doze anos cometia um estupro e devia ser castigado; se perseguia um de vinte anos ou mais, perdia sua dignidade viril. Assim que a barba nascia no rapaz, que a pilosidade recobria seu corpo, não devia mais ser tocado.”20
Salienta King21 o fato de que na Época Clássica, em Atenas, as relações entre homossexuais eram vistas como um rito de iniciação, que acontecia entre um rapaz imberbe e um menor mais velho. Ele ressalta que, mesmo diante dessas circunstâncias, as relações eram passíveis de limitações, em função de noções de etiqueta, relativas a todo o processo de cotejamento. 
São novas formas de existência que surgem com as pessoas que gostam de outras do mesmo sexo. Esta postura não implica ser homo, mas entrar num processo artístico. Ao abordar o pensamento de Nietzsche, especialmente, no que diz respeito à relação entre arte e vida, Dias22 mostra que, em o Nascimento da Tragédia e em A Gaia Ciência, o autor já denotava que apenas o fenômeno estético faria com que a existência fosse suportável. Em ambas, estavam estabelecidas as relações entre arte e vida, embora existissem especificidades em cada obra, de acordo com contextos filosóficos.
Enfoca, ainda, que em Humano Demasiado Humano, Nietzsche deixa para trás as posturas metafísicoestéticas que, mesmo sendo instigantes, não teriam sustentação. É a arte que move a vida. Esta arte não é aquela laçada pela metafísica, que levava os homens ao além-mundo, a evadir-se de si próprio. Trata-se de uma arte “...de criar a si mesmo como obra de arte.”  A arte serviria para embelezar a vida. Desta forma, “Embelezar a vida é sair da posição de criatura contemplativa e adquirir os hábitos e os atributos de criador, ser artista de sua própria existência.” Ele trata da vida como arte. Os homens, quando amam, desenvolvem a sua capacidade criadora.
Referindo-se ao artista criador de outra memória,Lins23 diz que ele, por um lado, é injusto, pois sempre se
volta contra tudo quanto lhe é instituído. Por outro lado, ele é o único que tem a capacidade de dar um sentido diferente e inusitado ao que lhe é dito. Sendo a criação injusta, criar significa transgredir, estuprar. O ato da criação “...supõe um desvirginamento. Não existe criação sem dor, sem cortes(...). Toda criação começa por violar o nada... Criar uma memória-outra é da ordem, pois, da criação e não do perdão.” Desta forma, “Recordar o futuro é o projeto da memória!”
Espaços da amizade
Inspirado, ainda, em Lins,24 observa-se que a prática das pessoas que gostam de outras do mesmo sexo, os artistas que fogem, escapam ao instituído, navegam no espaço da amizade. Trata-se de uma ascese, pois as pessoas autoelaboram os próprios desejos e os investem em diferentes pessoas e situações que lhes configurem prazer. São práticas de si mesmo. Estas pessoas subvertem as identidades sexuais, duráveis, uma vez que elas são corpo sem órgãos, transitando num universo/vácuo. É uma ética da experimentação, onde as pessoas enfatizam o prazer. Trata-se de uma ética da amizade, oposta aos modelos convencionais, pois se subverte a ordem, e criam-se formas de vida alternativas, sem ninguém se preocupar com a libertação.
Os espaços da amizade são abertos, plásticos e móveis, pois são múltiplas as possibilidades de vivências e práticas. No cenário destas, percebem-se diferentes formas de existência, de devires  — estilística da existência — que movem o desejo.
A arte da amizade, trabalhada por Passetti,25 mostra como o cristianismo e o Estado moderno a colocaram no âmbito da vida privada. Ele situa sua dimensão e importância pública, opondo-se “... à formalidade estatizante sob o nome de amizade entre os povos...” Para tanto, “... requer buscar uma ética existencial atenta à política para vê-la não sucumbir.” Contrapõe o pensamento de Maquiavel — teoria do poder soberano — “aos libertarismos ético e estético de La Boétie e aos escritos de Max Stirner anteriores a  O único e a sua propriedade”.
Partindo do pressuposto de que um território deve ser governado por um soberano, a quem o povo deve obediência, para garantir a sua segurança e a dos demais, “... o soberano precisa ser amado e temido pelo povo.”
No século XVI, em que vivera Maquiavel, o jovem Etienne de La Boétie trabalha de forma oposta à “... figura do soberano centralizado, o UM.” Ele se referia ao território francês; por isso tomou como um pressuposto a questão: “por que escolhemos servir voluntariamente a um soberano?” O humanismo renascentista não seria tomado para dar respostas a esta questão. Não se preocupou, também, com formas da antigüidade e com a origem da servidão voluntária. “Sua preocupação é imediata e trans-histórica. É preciso mudar.”
No domínio do território, o poder soberano ocorre de forma verticalizada, contínua, sem cortes nem rupturas. La Boéttie propõe uma mudança radical de valores, uma vez que a  servidão  voluntária instaurava a descontinuidade, quebrando valores humanistas, cristãos e estatais. Neste território, a amizade ocorre entre os povos — domínio privado. Com a servidão, a amizade seria vista como proposta de uma “... associação por baixo, por meio da associação de amigos, dissolvendo a hierarquia.” Com La Boétie, emerge uma radicalidade capaz de romper valores, estados de assujeitamento, pois opera com “... novos costumes vivenciados como criança a partir do momento em que cada um disser não ao soberano.”
Apesar de Passetti primar pela abordagem a partir de
Maquiavel, La Boétie e Stirner dialoga com Montaigne, apropriando-se de alguns fragmentos, como, por exemplo, “educar as crianças para a liberdade.”
Poder-se-ia pensar que Passetti26 conduziria sua reflexão para a singela separação entre soberania e autonomia individual. Isso seria um equívoco, pois o seu rio não desembocará nesta separação. Ele navegou por alguns rios, “... como um afluente que se ramifica segundo a época das chuvas.”
A amizade não é vista apenas como a amizade entre os povos, aliada aos acordos de paz temporária. Salienta: “... a filosofia criança de Nietzsche: guerreira sem ser destruidora fazendo aparecer o amigo como o melhor inimigo.” Desta forma, o amigo não se refere ao privado — povos  — mas ele se publiciza, ele é feito nas circunstâncias. Sob esta perspectiva também não há lugar para o amor: “Amar supõe fidelidade, trapaças e traições, ódio, um valor que se apresenta altruísta para realizar seus interesses mesquinhos e misteriosos. O amor nas religiões é o espelho do amor ao Estado. O amor pelo pastor é o mesmo que o amor pelo pai ou governante. Quem sabe o que é o amor é o soberano, esteja ele no governo, em casa, na escola, nas fábricas, nas empresas. O amor é um valor que vem de fora para sufocar as paixões, domesticar os impulsos, dar sentido à liberdade. Maquiavel sabe de tudo isso.”
A amizade não assume a perspectiva de conceito, prática, ou possível rotina, mas de “... experiência pública
entre amigos.” Ela ocorre através de associações de amigos, criadores de suas próprias vidas. Ela é obra-dearte. Esta forma de amizade extrapola as convenções, os padrões normalizadores, os interditos. Ela é livre de transcendentalidades. As pessoas que gostam de gente do mesmo sexo são criadoras de arte. Elas inventam a vida de acordo com as circunstâncias. Navegam por rios que não deságuam na submissão aos padrões instituídos. Elas escapam das artimanhas da piedade e da moralidade, transformando-se em borboletas, de preferência lilás.
Desta forma, “Esta arte de viver e criar objetos procura responder ao presente, ao fortalecimento dos laços entre os homens, mulheres e crianças que o constituem. Não trazem piedade ou moralidade, não criam o Estado e as figuras soberanas.” Os designados homossexuais são mutáveis, Uns, prazeres momentâneos, locais, não universais. Desta forma, salienta Passetti:27 “... ser gay como estilo de vida ...”, apenas interessa à igualdade. Entre os gays, existe diferença na igualdade, que é oposto à universalidade, e à domesticação por direitos.
Ao desembocar em muitos rios e águas, a amizade é vista não mais como objeto exclusivo dos filósofos. E “... nem a eles cabe localizar as práticas de amizade. A arte da amizade está em fazer publicamente miríades de associações formadas por pessoas condutoras de desejos, uns. Os anarquistas são uns.”
Atualmente, com o PCR, a sociedade tenta canalizar as formas de amizade para formas reconhecidas socialmente. Cria uma gama de processos, inclusive legais, para normalizar o comportamento das pessoas. Elas se assujeitam a tais processos, a partir de uma variedade de demandas, singularmente, aquelas referentes aos afetos. Muitas caem nas malhas do discurso da sexualidade, atrelado à lei. Normalizam-se os comportamentos para elas não se rebelarem contra o instituído. Embora seu poder de criatividade esteja abalado, elas sempre ressurgem de meros assujeitados e recapturam a transgressão. A sua criatividade pode até ser abalada, sem, contudo, ser destituída. É a vida que dos confins renasce; inclusive em tempos de maiores preocupações com as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs),  especialmente a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida — AIDS ou SIDA.28
Quanto ao PCR, salientando-se a questão das reivindicações de direito e de igualdade, ressaltam-se, em detrimento desta postura, as formas de fuga de uma existência institucionalizada. Criar novas formas a partir dos instintos é instigante. Não existem direitos individuais. Existem multiplicidades de relações, que se inscrevem na tessitura das práticas surpreendentes. 
Os movimentos homossexuais e feministas reacendem as chamas dos padrões instituídos —  aspecto da libertação  —, em detrimento das chamas dos instintos. Desmontar-se-iam as identidades duráveis, as formas tradicionais de relacionamento e de comportamento. A sexualidade se desativaria, pois, segundo Lima Júnior,29 o sexo aconteceria aleatoriamente. Ortega afirma: “O projeto foucaultiano de uma ética da amizade no contexto de uma possível atualização da estética da existência, permite transcender o quadro da auto-elaboração individual para se colocar numa dimensão coletiva.”30
Essa percepção assinala que não haverá espaços para a oposição sujeito/sociedade, mas para processos de
subjetivação coletiva: processos relacionais. São novas subjetividades que se produzem, em oposição às subjetividades maquínicas. As formas de amizade não se reduzem à família nem ao matrimônio, mas, sobretudo, ao devir que as marca. Elas são fluxos e refluxos, calcadas nos impulsos de uma agressividade carregada de positividade: amigos/inimigos.
O fato de Foucault ter construído a questão da amizade entre os homossexuais não significa que ele não tenha visto o crivo da sexualidade entre essas pessoas. Ele não negou as singularidades do movimento homossexual, como resistências ao instituído. Talvez, ele tenha visto relações abundantes, que fazem da vida obra-de-arte. As pessoas que gostam de outras do mesmo sexo são artistas, embora o próprio artista, muitas vezes, caia nas malhas do instituído. Elas fogem, criam espaços coloridos. Elas se assujeitam! Querem casar! Colocar ferraduras — alianças — em seus dedos! Mas elas não fazem o que Nietzsche diz: “Desde que há homens, o homem tem-se divertido muito pouco: é esse, meus irmãos, o único pecado original.” Elas se divertem tanto que viram arco-íris.31
A meta mais almejada pelas pessoas que se relacionam com gente do mesmo sexo, nestes últimos tempos, é o casamento monogâmico. Entra em cena a necessidade de reintegrar as pessoas à ordem estabelecida. De libertinos e possíveis artistas transitam na esfera comum, fazendo parte de uma maioria. São superficiais porque querem casar e talvez amar uma só vez, como comenta Wilde,32 e não aguçam a imaginação, sendo leais e fiéis.
As minorias e as maiorias, segundo Deleuze,33 não se distinguem pela dimensão numérica. Uma minoria pode ter mais expressividade ou ser mais numerosa do que uma maioria, pois geralmente a maioria enquadrase num modelo esperado. As minorias não estão necessariamente presas a um modelo; elas se constituem em um processo ou um devir. A maioria não representa ninguém; ela não é ninguém. As pessoas,
apesar de sempre representarem uma maioria, têm dentro de si uma minoria, ou seja, elas possuem um devir minoritário que as conduz a caminhos desconhecidos. À medida que as minorias criam para si um modelo que elas devem seguir, estão objetivando tornar-se uma maioria, tornando-se majoritária, o que pode estar consoante aos seus desejos, à afetividade.
No caso das referidas pessoas, observa-se que elas não são as únicas que criam, mas as pessoas em geral,
quando se voltam contra os padrões instituídos. Elas instauram o imoralismo. O imoralismo, segundo Giacóia Júnior,34 assume papel de destaque no cerne das idéias de Sade. Estas considerações propiciarão a supremacia dos instintos, aspecto inerente às práticas sociais/sexuais e jamais distantes delas.
Observa-se, ainda, parafraseando Bataille,35 que as referidas práticas introduzem fascínio e sedução ante o
instituído: erotismo. Trata-se de práticas eróticas. Um erotismo, segundo Louÿs,36 cuja característica peculiar é a do humor e do burlesco.
Ao falar que nenhuma “frente homossexual” é possível, Deleuze e Guattari dizem que isso ocorrerá enquanto a homossexualidade estiver sendo concebida “... numa relação de disjunção exclusiva com a heterossexualidade, que as refere a ambas a um tronco edipiano e castrador comum (...) em vez de mostrar a sua inclusão recíproca e a sua comunicação transversal por fluxos descodificados do desejo.”37
O matrimônio exerce papel fundamental, no que diz respeito à vivência do sexo, até mesmo entre as pessoas
que gostam de outras do mesmo sexo. Nas últimas décadas do século XX, nos países europeus, nos Estados Unidos e na América Latina, segundo Werebe,38 as relações sexuais, no âmbito da população jovem, vêm aumentando. Isto desencadeia a questão da permissividade sexual, discutida atualmente, sobretudo com a proliferação das DSTs. Mesmo considerando a gama de interditos que se fazem presentes,
especialmente por causa das referidas doenças, essas relações estão sendo parcialmente consideradas, à medida que o sexo jorra entre os jovens. O aludido acontecimento é notório, até porque o poder da Igreja e
o da família sobre os comportamentos e, em particular, sobre aqueles referentes à vida sexual dos jovens, alterou-se, sobretudo a partir da década de 1970, fazendo com que estas instituições revissem suas táticas. O sexo vem sendo disciplinado, controlado pela educação e pela escola, cujas informações são oriundas do modelo de sexualidade levado a cabo pela prática de educação sexual.
A possibilidade de reivindicações de bens e união estável — talvez de casamento —,39 entre as pessoas do mesmo sexo denota o agigantamento do conservadorismo. Esta postura relaciona-se, entre outras, a interesses familiares na preservação de bens, a objetivos do Estado no corte de gastos com os empestados e a metas da sociedade em cooptar práticas que não se mirem na piedade. Considerando que estas pessoas, inicialmente, foram expressões da peste e, até hoje sofrem por causa desse equívoco, estão na mira das posturas mencionadas. Não cabe mais expulsá-las do convívio. O intuito é limpá-las, recuperá-las, domesticá-las, e enquadrá-las nos padrões instituídos. Todos os olhos se voltam para elas. É preciso vigiá-las. Elas serão aceitas pela sociedade, parcialmente, caso estejam cumprindo as normas instituídas. Diante disso, as pessoas que gostam de gente do mesmo sexo assumem condição de servos nesse cenário, esquecendo sua prática de artistas, que as leva à criação da vida, do sexo e de práticas inusitadas. Nessa dimensão inusitada, elas extrapolarão até mesmo a relação com o mesmo sexo, passando a navegar no oceano de práticas flutuantes, onde acenam os instintos.
Os referidos acontecimentos que perpassam as práticas sociais e sexuais, calcados na disciplina e no controle dos comportamentos, são abalados pelas pessoas que gostam de gente do mesmo sexo: os artistas que fazem de suas vidas obras-de-arte.
Notas
1 Especialmente o Estado, a Igreja, a família e a escola.
2 Refere-se a um dispositivo de poder. A sexualidade se estruturou de tal maneira, organizando um arsenal de discursos que objetiva, primordialmente, a moralidade. Cf. Michel Foucault. Microfísica do poder. Tradução e organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979.; e História da sexualidade: a vontade de saber.Tradução de Maria T. da C. Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1988. v. 1.
3 Prefiro esta expressão à categoria homossexual. As pessoas transitam no oceano das relações, sem se acostarem a uma ou a outra, mas a uma diversidade de relações que emergem, de acordo com suas necessidades afetivas, em circunstâncias especiais. Mesmo que as pessoas em determinados momentos tenham sido enquadradas na categoria homo, colocando-as numa posição de inferioridade perante as demais, não significa que tenham perdido sua porção erótica. Criar uma outra categoria, mesmo com propósitos diferentes, para suavizar os estereótipos e as discriminações, sobretudo verbais, é complexo. O homoerotismo, em oposição ao homossexualismo, resvala nessa complexidade. Apenas é introduzido o vocábulo erótico a um outro vocábulo homo. Soma, não surpreende. A categoria ou prefixo homo permanece intacto, mesmo que não cumpra a mesma função, quando é associado a erótico, pois não visa uma discriminação explícita. Cf. Jurandir Freire Costa. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1991.
4 Os ocidentais traduzem o sexo em discurso. Percebe-se que os orientais primam pela vivência e auto-educação. Cf. Mallanaga Vatsyayana. Kama sutra. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2002.
5 Michel Foucault. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 70, p. 76, pp. 78-80.
6 Idem, p. 78.
7 Gilles Deleuze. “Política. Controle e devir. Post-scriptum sobre as sociedades de controle” in Conversações, 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1992, pp. 207-226.
8 Gilles Deleuze e Félix Guattari. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Joana M. Varela e Manuel Carrilho. Lisboa, Assírio e Alvim, 2000, p. 35.
9 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo, 34 Letras, 1997. V. 4. p.129.
10 Michel Foucault, 1979, op. cit.
11 Gilles Deleuze, 1992, op. cit. Leandro Sarmatz. “Poder gay” in Superinteressante. São Paulo, n. 168, pp. 88-93,set. 2001. pp. 89-93.
13 Elias Ribeiro de Castro, diretor do Centro Acadêmico de Estudos Homoeróticos da Universidade de São Paulo CAEHUSP, e presidente da Associação Diversidade, grupo que congrega uma gama de Organizações Não-Governamentais e centros deapoio a homossexuais. Idem, p. 89.
14 Maria Berenice Dias, desembargadora Gaúcha, vem assumindo a postura da princesa Isabel da comunidade gay do Brasil. Ibidem, p. 90.
15 Luiz Mott, antropólogo, fundador do Grupo Gay da Bahia. Ibidem, p. 90.
16 Em sua análise, Sarmatz aponta aquela que ocorreu em São Paulo, no dia 17 de junho de 2002, contando com cerca de duzentas mil pessoas. Ibidem.
17 Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo, Martin Claret, 2001.
18 Michel Foucault, 1979, op. cit., p. 233.
19 Michel Foucault. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1984. V. 2. p. 167.
20 Alexandrian. História da literatura erótica. Tradução de Ana Maria Scherer e José Laurênio de Mello. Rio de Janeiro, Rocco, 1993. p. 19.
21 Helen King. “Preparando o terreno: sexologia grega e romana” in Roy Porter e Mikulás Teich. (Org.). Conhecimento sexual, ciência sexual: a história das atitudes em relação à sexualidade. Tradução de Luiz P. Rouanet. São Paulo, UNESP, 1998. Parte1, Cap. 1, pp. 45-63 e pp. 45-47.
22 Rosa Maria Dias. “Arte e vida no pensamento de Nietzsche” in Daniel Lins, Daniel de S. Gadelha Costa e Alexandre Veras. (Org.). Nietzsche e Deleuze: intensidadee paixão. Rio de Janeiro, Releme Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desportodo Estado, 2000, pp. 9-21 e pp. 9-16.
23 Daniel Lins. “Esquecer não é crime”  in Daniel Lins, Sylvio de S. Gadelha Costa e Alexandre Veras. (Org.). Nietzsche e Deleuze: intensidade e paixão. Rio de Janeiro,Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado, 2000, pp.45-61 e pp. 51-59.
24 Idem, p. 51 e p. 59.
25 Edson Passetti. “A arte da amizade” in Verve V. 1. São Paulo, Nu-Sol, 2002, p. 60.
26 Edson Passetti, 2002, op. cit., p. 25, p. 30, p. 43, p. 49, pp. 56-57.
27 Edson Passetti. Amizade: (ensaio: Foucault, Nietzsche, Stirner). São Paulo, 2000. (Livre Docência) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 148.
28 A AIDS, de acordo com Lima Júnior, é compreendida como peste. Além de referir-se ao território, ela assume uma conotação moral. A peste é discutida, ainda, por Camus e Oliveira. Cf. Luiz Pereira de Lima Júnior. O acontecimento aleatório do sexo: cartografando a sexualidade na prática da educação sexual e no espaço dos parâmetros curriculares nacionais. (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Albert Camus. A peste. Tradução de Valerie Rumjanek.Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 2002.; Salete Magda de Oliveira. Política e peste: crueldade, plano Beveridge e abolicionismo penal. Doutorado em Ciências Sociais, São Paulo, PUC-SP, 2003.
29 Luiz Pereira de Lima Júnior, op. cit, 2003.
30 Francisco Ortega. “Estilística da amizade.” In Vera Portocarrero e Guilherme Castelo Branco. (Org.). Retratos de Foucault. Rio de Janeiro, Nau, 2000. Parte 3. pp.245-263 e p. 250.
31 Friedrich Wilhelm Nietzsche. Assim falou Zaratustra. São Paulo, Martin Claret, 2000. p. 77.
32 Oscar Wilde, 2001, op. cit., p. 51.
33 Gilles Deleuze, 1992, op. cit,  p. 214.
34 Oswaldo Giacóia Júnior. Labirintos da alma: Nietzsche e a autosupressão da moral. Campinas, UNICAMP, 1997, p. 158.
35 Georges Bataille. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre, L&PM, 1987.
36 Pierre Louÿs. Manual de civilidade para meninas. Tradução de Júlio Henriques. Lisboa, Fenda, 1995.
37 Gilles Deleuze e Félix Guattari, 2000, op. cit, pp. 367-368.
38 Maria José Werebe. Sexualidade, política e educação. Campinas, Autores Associados, 1998.
39 Vale ressaltar: “‘Plano de Direitos Humanos de FHC apóia união gay’(...) Fernando Henrique disse apoiar o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, que permite a união civil entre pessoas do mesmo sexo. O presidente chegou a posar para fotos segurando uma bandeira com o símbolo do movimento em defesa dos homossexuais, um arco-íris.” Cf. Ricardo Mignone. “Plano de Direitos Humanos
de FHC apóia união gay e cota para negro” in Folha on line, São Paulo, 14 de maio.
2002. Disponível em: http://www.uol.com.br/folha/Brasil/ult96u32443.shl. Acesso em: 14 de maio. 2002. Além deste acontecimento, cabe mencionar, ainda, que “‘Casais gays conquistam vitória no Parlamento britânico’. Casais homossexuais estão mais perto de conseguir o direito de adotar crianças na Grã-Bretanha.” Cf. Marina Brito. “Casais gays conquistam vitória no parlamento britânico” in Folha on line, São Paulo, 21 maio. 2002. Disponível em: . Acesso em: 21 de maio. 2002, p.1.verve

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