domingo, 22 de julho de 2012

Volver a los 17


Sabia da nebulosa importância política daquela cantora. Mais tarde, a conheceria melhor. Mas quê “volver” traduziria? Voltar a ter esperanças?
Por Theotonio de Paiva*
Para Anna
Anna fez 17, semana passada. Mas o que realmente significa fazer 17 anos? Talvez as milhões de eternas comemorações de todos os jovens do mundo em sua mais que suprema potência. E a minha e a tua potência de vida, rejuvenescidas pelo outro. Ou algo ainda como o sussurrar, num bel canto miúdo, a delicadeza de uma felicidade incontestável. Que caminhos além dos 17? – irão se perguntar os mais velhos, com as suas angústias pelo imponderável. Na medida do presente momento, importa pouco. De algum modo, os caminhos que são traçados e, posteriormente, deságuam na memória, recebem tanta valia quanto aqueles executados no chão de terra poeirenta, a cada passo, a cada minuto, no aqui e agora. Ou poderia se pensar em olhar para trás e para frente e não ver um mundo à deriva, mas que caminha e se faz viver, assim como em Volver a los 17.
O ciclo, naquela dimensão secular da canção, talvez não nos faça sábios competentes. Provavelmente, numa modesta conjectura, a esperança na alma, o sortilégio das palavras e a busca no inolvidável do amor nos enrede na pedra e nos dê a suprema placidez. Talvez.
Era um antigo álbum duplo editado pela Philips. A canção era de Violeta Parra, atentaria para isso tempos depois. Quem seria Violeta Parra? Qual a sua história? Que voz linda, percebo agora: doce e forte como somente as princesas, a cada cem anos, conseguem transmitir em seus sonhos. Por que havia escrito aquela poesia, posta em música, que tanto me fascinara quando jovem?
Sem dúvida, sabia de uma nebulosa importância política, presente no repertório daquela cantora. Mais tarde, a conheceria melhor e visualizaria a compositora apaixonada pelo folclore de sua terra, cuja paixão e desilusão a levaram a um trágico desenlace. E ainda de seu companheiro, Victor Jara, barbaramente assassinado pela ditadura de Pinochet.
Mas que, diacho, aquele “volver” traduziria? Acaso, alguma vivência tão dramática como aquela que os duros tempos nos obrigavam a presenciar ou, ao menos, intuir?
Volver a los 17, quem sabe, significaria voltar a ter esperanças nos verdes anos, quando não mais se é quem é. Mas foram tantas as mudanças, tantos os pequenos e grandes fatos ocorridos, que um relance de olhos não distingue no tempo a dor suprema pela qual se deixou abater.
No entanto, a voz que tornaria a música conhecida, era portenha e de outra mulher, Mercedes Sosa. Tempos depois, os meus gostos musicais se ampliariam, melhor, se multiplicariam, e acabaria me afastando daquelas melodias que me deixavam profundamente tocado. Naquela época, a minha idade quase que se confundia com o tema da canção, assim como nas amarras do tempo, o meu passo se faz “retrocedido” enquanto o compasso de Anna avança. E qual dos dois se expõe inexoravelmente na vantagem de uma condição última?
Naquelas condições, entretanto, era como se quisesse voltar a mim mesmo pelos caminhos que eu já havia perdido e mais não podia ser. Doce contradição. Não sabia decerto por qual motivo aquilo determinava em mim uma fusão com um estado de embriaguez na alma e me tornava capaz de vivenciar um sentimento de nostalgia. Curiosa nostalgia, cuja existência sequer poderia compreender, ou viver mais intensamente ainda.
A dona daquela voz me acompanharia ainda por alguns anos, associada às canções de protesto, que se faziam necessárias, numa época de fortes contrastes. Acompanhariam igualmente aquelas palavras incrustadas no poema. Mas a insurreição da qual a canção falava era outra, capaz de passar pelas nossas veias, outrora não corrompidas, com a esperança de mil sóis.
Recordo-me de uma das primeiras vezes que ouvi as imagens cálidas que a aproximavam a uma volta no tempo da delicadeza e ao esforço em decifrar certos signos, conquanto a devida competência para isso não me dera as honras da sua graça hospitaleira. E eu, embatucado com aquele “torvelinho de pureza original”, cingia o meu corpo em frêmitos para entender a ciência do amor.
Durante uma festa, numa casa de quem não me lembro quais eram os donos, talvez no bairro do Flamengo, com a capa do disco duplo nas mãos, me deixava ficar profundamente extasiado. Para tanto, bastava acompanhar o embaraço dos versos e tocar levemente com as mãos, numa atitude quase sensual, para mim, aquela raridade de rapaz, filho de uma baixa classe média, nascido e criado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
Eram outros tempos, diria um antigo cronista. O país era outro. A cidade ia sendo aos poucos desvirginada por mim. Começava a conhecer cada pedaço de suas curvas e gretas. O mundo, ainda distante e difícil de ser amealhado na palma de uma mão tão frágil, quanto jovem, se tornaria difícil de ser recomposto aos olhos de hoje. Assim como os dias que correm seriam inadmissíveis para quem olhasse de frente para um futuro incerto. Contudo, o que significaria, de fato, “volver a los 17”? Que mistérios aquela canção nos provoca a entender e a desvelar, com as suas cores e traços de uma fotografia que, hoje, não precisa mais do tempo e da escuridão profunda para se mostrar? E, curiosamente, essa era mais ou menos a idade que eu tinha e a idade que Anna tem agora.
E a canção que ainda nos habita sugere um outro olhar, o olhar do encantamento. Naquela atitude de quem abre uma janela de par em par e, numa contemplação vadia aos céus, pode testemunhar alguns querubins a nos admirar pela existência infinita que temos, com os nossos ciclos e siglos de vida.
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Theotonio de Paiva, dramaturgo e diretor de teatro, é doutor em Teoria Literária pela UFRJ e colaborador do Outras Palavras.

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