quarta-feira, 25 de julho de 2012

Criação


por José Saramago
 20 de Abril
 Esta manhã, quando acordei, veio-me a ideia do Ensaio sobre a cegueira, e durante uns minutos tudo me pareceu claro - excepto que do tema possa vir a sair alguma vez um romance, no sentido mais ou menos consensual da palavra e do objecto. Por exemplo: como meter no relato personagens que durem o dilatadíssimo lapso de tempo narrativo de que vou necessitar? Quantos serão precisos para que se encontrem substituídas, por outras, todas as pessoas vivas num momento dado? Um século, digamos que um pouco mais, creio que será bastante. Mas, neste meu Ensaio, todos os videntes terão que ser substituídos, por cegos, e estes, todos, outra vez, por videntes... As pessoas, todas elas, vão começar por nascer cegas, viverão e morreram cegas, a seguir virão outras que serão sãs da vista e assim vão permanecer até a morte. Quanto tempo requer isto? Penso que poderia utilizar, adaptando a esta época, o modelo “clássico” do “conto filosófico”, inserindo nele, para servir as diferentes situações, personagens temporárias, rapidamente substituíveis por outras no caso de não apresentarem consistência suficiente para uma duração maior da história.

21 de Junho
Dificuldade resolvida. Não é preciso que as personagens do Ensaio sobre a Cegueira tenham que ir nascendo cegas, uma após a outra, até substituírem, por completo, as que tem visão: podem cegar em qualquer momento. Desta maneira ficará encurtado o tempo narrativo.

2 de Agosto
Escrevi as primeiras linhas do Ensaio sobre a Cegueira.

15 de Agosto
Continuo a trabalhar no Ensaio sobre a Cegueira. Após um princípio hesitante, sem norte nem estilo, à procura das palavras como o pior dos aprendizes, as coisas parecem querer melhorar. Como aconteceu em todos os meus romances anteriores, de cada vez que pego neste, tenho que voltar a primeira linha, releio e emendo, emendo e releio, com uma exigência intratável que se modera na continuação. É por isso que o primeiro capítulo de um livro é sempre aquele que me ocupa mais tempo.  Enquanto essas poucas páginas iniciais não me satisfizerem, sou incapaz de continuar. Tomo como um bom sinal a repetição desta cisma. Ah, se as pessoas soubessem o trabalho que me deu a página de abertura do Ricardo Reis, o primeiro parágrafo do Memorial, quanto eu tive que penar por causa do que veio a tornar-se o segundo capítulo da História do Cerco, antes de perceber que teria de principiar com um diálogo entre Raimundo Silva e o historiador... E um outro segundo capítulo, o do Evangelho, aquela noite que ainda tinha muito para durar, aquela candeia, aquela frincha da porta...

17 de Agosto
Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio, ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado por sombras de sombras, que o leitor nunca saiba de quem se trata, que quando alguém lhe aparece na narrativa se pergunte se é a primeira vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem não conhecemos, nós todos.

20 de Agosto
Uma hipótese: talvez essa necessidade imperiosa de organizar uma lembrança coerente do meu passado, dessa sempre, feliz ou infeliz, única infância, quando a esperança ainda estiva intacta, ou, ao menos, a possibilidade de vir a tê-la, se tenha constituído, sem que eu o pensasse, como uma resposta vital para contrapor ao mundo medonho que estou a caminho de imaginar e descrever no Ensaio sobre a Cegueira.

30 de Agosto
Terminado o primeiro capítulo do Ensaio. Um mês para escrever quinze páginas... Mas Pilar, leitora emérita, diz que não me saí mal da empresa.

 17 de Dezembro
Voltei - timidamente - ao Ensaio. Modifiquei algumas quantas coisas, e o capítulo ficou bastante melhor: a importância que pode ter usar uma palavra em vez da outra, aqui, além, um verbo mais certeiro, um adjectivo menos visível, parece nada e afinal é quase tudo.

15 de Fevereiro de 1994
Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito de destina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa  pontuação, fala como se estivesse a compor uma música e usa os mesmo elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estrutura barroca, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o carácter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões “mínimas” de certas músicas contemporâneas.

27 de Fevereiro
Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela ao traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, mas o romancista.

8 de Julho
O Ensaio saiu do atoleiro em que tinha caído há já não sei quantos meses. Pode vir a cair noutro, mas deste safou-se. Há uns poucos dias eu tinha decidido deixar de lado dois capítulos que se haviam convertidos numa daquelas armadilhas onde se pode entrar com toda facilidade, mas donde não se sai. O novo parecia-me animador, abria perspectivas. Em todo o caso ainda não sentia completamente seguro. Foi então que andando por aí, hoje, ao vento, me sucedeu algo muito semelhante ao episódio de Bolonha, quando, meses sem saber o que poderia fazer com a ideia de Evangelho, nascida em Sevilha, toda a sequência do livro - enfim, quase toda - se me apresentou com uma claridade fulgurante. Estava na pinacoteca, vira a pintura da primeira sala à esquerda da entrada, e foi entrar na segunda (ou teria sido na terceira?) que os pilares fundamentais da narrativa se me definiram com tal simplicidade que ainda hoje me pergunto como foi que ainda não tinha visto antes o que ali me parecia óbvio. Não era nada de complicado, basta ler o livro. Neste caso, o do Ensaio - a “revelação” não foi tão completa, mas sei que vai determinar um desenvolvimento coerente da história, antes atascada e sem esperanças. Todos os motivos que vinha dando, a mim mesmo e aos outros, para justificar a inacção em que me achava - viagens, correspondências, visitas -, podiam, afinal das contas, ter sido resumido desta maneira: o caminho por onde estava a querer a ir não me levaria a lado nenhum. A partir de agora, o livro, se falhar, será por inabilidade minha. Antes, nem um génio seria capaz de salvá-lo.

22 de Março
Só escrevo sobre aquilo que não sabia antes de o ter escrito. Deve ser por isso que meus livros não se repetem. Vou-me repetindo eu neles, porque, ainda assim, do pouco que continuo a saber, o que melhor conheço é este que sou.

18 de Junho
Voltei ao Ensaio. Com a disposição firme de levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que andei por fora, amigos e conhecido não pararam de perguntar pelos meus cegos. Chegou a altura de eles responderem por si mesmos.

9 de Agosto
Terminei ontem o Ensaio sobre a Cegueira, quase quatro anos após o surgimento da ideia, sucesso ocorrido no dia 6 de setembro de 1991, quando, sozinho, almoçava no restaurante Varina de Madregoa, do meu amigo António Oliveira(apontei a data e a circunstância num dos meus cadernos de capa preta). Exactamente três anos e três meses passados, em 6 de dezembro de 1994, anotava no mesmo caderno que, decorrido todo esse tempo, nem cinquenta páginas tinha ainda conseguido escrever: viajara, fui operado a uma catarata, mudei-me para Lanzarote... E lutei, lutei muito, só eu sei o quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda hora se me iam atravessando na história e me paralisavam.  Como se isto não fosse bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, não terei que sofrer mais. Seria agora a altura de fazer a pergunta que nenhum escritor gosta: “Que ficou dessa primeira ideia?” (Não gostamos porque preferiríamos que o leitor imaginasse que o livra nos saiu da cabeça armado e equipado.) Da ideia inicial direi que ficou tudo e quase nada: é verdade que escrevi o que queria, mas não o escrevi como tinha pensado. Basta comparar a inspiração de há quatro anos com aquilo que o Ensaio veio a ser. Eis o que então anotei, com nenhumas preocupações de estilo: “Começam a nascer crianças cegas. Ao princípio sem alarme: lamentações, educação inicial, asilos. À medida que se compreende que não vão mais nascer  mais crianças de visão normal, o pânico instala-se. Há quem mate os filhos à nascença. Com o passar do tempo vão morrendo os ‘visuais’ e a proporção ‘favorece’ os cegos. Morrendo todos que ainda tinham vista, a população da terra é composta de cegos apenas. Um dia nasce uma criança com a vista normal: reacção de estranheza, algumas vezes violenta, morrem algumas dessas crianças. O processo inverte-se até que - talvez - volte ao princípio uma vez mais.” Compare-se... Quanto à palavra inspiração que aí ficou atrás, reconheço que a empreguei em sentido estrictamente pneumático e fisiológico: a ideia andava a flutuar por ali, no oloroso ambiente da Varina Mandragoa, eu inspirei-a, e foi assim que o livro nasceu... Depois pensá-lo, fazê-lo, sofrê-lo, já foi, como tinha de ser, obra de transpiração..


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