quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Radicalizar a democracia para garantir o interesse público na saúde: o Cebes nas eleições municipais de 2012


O Movimento da Reforma Sanitária tem como uma de suas características a atuação como “Partido Sanitário”, articulando pessoas e entidades de distintas orientações partidárias e ideológicas em defesa do direito à saúde. Esta frente política democrática permitiu muitas conquistas e está baseada no pensamento convergente de que, para garantir a todos o direito à saúde, a política de saúde tem que ser compreendida e instituída como Política de Estado.
A Saúde elevada à condição de Política de Estado reduz a chance dos retrocessos setoriais em decorrência da rotatividade de partidos ou agrupamentos políticos nos governos. Quando grupos de oposição sucedem no mando os seus opositores, há uma grande tendência de desmontar as realizações associadas aos governantes anteriores para então instalar suas novas marcas. Essa prática ocasiona, na maioria das vezes, importantes prejuízos à saúde da população.
Na realidade atual, todos os partidos que visam à conquista ou à manutenção do poder por meio de eleições se tornam reféns do financiamento de campanha privado, por vezes promíscuo, criando na população uma percepção de descrença na política, já que é “tudo a mesma coisa”.
As disputas político-partidárias determinaram e vêm determinando os rumos da saúde, impondo marcas na “política de Estado”. Por ser um Estado colonizado, na República prevalecem os interesses privados, o caráter clientelista e patrimonialista, marcado pelo predomínio do poder executivo em todas as esferas.
A história mostra que a conquista dos direitos sociais universais é fruto de lutas democráticas e populares e nunca foi concessão da elite política ou do Estado. É por isso que o Cebes reafirma a necessidade de construção de uma democracia onde as instituições possam sobreviver livres do jogo do poder, como espaços reais de efetivação de direitos.
Saúde e democracia: as eleições e os riscos da "governabilidade"
Efetivar a democracia brasileira é fundamental para concretizar os direitos sociais. Isso implica, necessariamente, em compreender que a democracia transcende e é maior que as disputas eleitorais. Mas também implica em repensar o nosso atual modelo eleitoral, de forma a torná-lo de fato um instrumento democrático onde a sociedade tenha a prerrogativa de escolher entre os projetos políticos distintos, que são apresentados pelos candidatos, para seu município, estado ou país.
A política eleitoral é um dos componentes essenciais da democracia que atualmente está contaminada pela intrusão, no seu seio, da lógica de mercado. Os acordos eleitorais são celebrados para garantir minutos de televisão e esses acordos costumam incluir a divisão das futuras administrações, loteando a máquina pública numa lógica quase sempre avessa ao interesse público.
Resta aos eleitos como primeira tarefa de seu mandato, administrarem as faturas políticas desses acordos. Nesse contexto, negocia-se o inegociável, rifa-se os princípios democráticos e o interesse público em nome de um conceito reduzido e reducionista de “governabilidade”, que passa, novamente, ao largo dos interesses e vontades populares e das instâncias da democracia participativa. Os compromissos de campanha assumidos com os eleitores, expostos nos programas de governo passam a ter importância secundária. Quando as secretarias municipais de saúde são tomadas como objeto destas negociações é o prenúncio da fragilidade e do descompromisso do governante com a saúde além de constituir uma violência à democracia.
É preciso mudar. Esta mudança deve assumir um compromisso com a democracia participativa em que o cidadão, além de instado a votar a cada dois anos, é requerido a tomar parte da formulação das políticas e no acompanhamento da gestão pública. Essa participação deve ocorrer não apenas nos espaços instituídos de participação como os conselhos e as conferências. A democracia participativa aqui defendida deve envolver a sociedade no cotidiano do governo, na formulação das políticas públicas preservando o interesse publico. Este caminho parece ser a vacina mais eficaz contra o argumento da “governabilidade” que acomoda os parceiros de grupos políticos satisfazendo os seus interesses por setores da administração publica obtidas como premio.
O Cebes vem defendendo que cabe à sociedade civil assumir a tarefa de politizar e qualificar o debate em torno das eleições e dos projetos políticos em jogo. Debater o que cada candidato apresenta como proposta para a saúde, qualificar e comprometer candidatos e partidos políticos e cobrar depois de sua eleição. Os espaços institucionais de participação popular não devem ser compreendidos como concessão dos governos, pois são conquistas sociais. O exercício da participação social não pode ser marcado pelo corporativismo, cooptação, defesa de interesses privados ou de grupos específicos, mas sim pela defesa dos interesses públicos como eixo da ação política.
O Município e a Saúde
Todas as pesquisas de opinião divulgadas nesse período eleitoral demonstram que a saúde é a principal demanda da sociedade. Por outro lado, a mesma população que indica a Saúde como prioridade nessas pesquisas parece estar mais inclinada a adquirir assistência médica no mercado de planos e seguros privados. Isso se explica, em parte, pelo projeto de desenvolvimento em curso direcionado a construir na sociedade valores que associam a melhoria das condições de vida das pessoas à ampliação do consumo.
Nesse contexto da sociedade de consumo, o direito de consumir se sobrepõe, como valor, aos direitos sociais, esvaziando o sentido coletivo da “Política” na sociedade. Para os integrantes do Cebes, vem se consolidando um sentimento de perda de batalha ideológica pelo movimento sanitário, no qual o sentido do direito a saúde fica reduzido ao consumo de tecnologias (exames, consultas, medicamentos, operações, procedimentos, etc.), mediado pelo poder de compra do indivíduo e não pela necessidade de saúde das pessoas e coletividades.
As evidências científicas quanto à determinação social da saúde são inquestionáveis. É por isso que, na base de toda política para a saúde, é fundamental e necessária a correlação entre as políticas sociais, as condições gerais de vida da população e os problemas de saúde. Nessa perspectiva, as políticas intersetoriais articuladas para garantir renda, moradia, meio-ambiente, transporte, educação, cultura, lazer e esporte, no seu conjunto, influenciam profundamente a saúde das pessoas, das coletividades e das cidades.
A tendência apresentada pelos governos é a de separar e fragmentar essas políticas sociais em estratégias e metas isoladas, dispersas e ineficazes. Pode ser que falte ao governante uma visão ampliada e estratégica de seus municípios, mas essa fragmentação é conveniente para melhor operar o loteamento entre os partidos apoiadores na lógica da chamada governabilidade. Torna-se, então, particularmente importante e oportuno para a retomada e o fortalecimento da agenda do Movimento Sanitário, realizar o debate nesse período em que toda a sociedade está por fazer opções políticas. A intenção nesse caso é contribuir para politizar o debate em torno da produção da saúde como resultado complexo do processo de sua determinação social que requer maior democratização do direito à saúde.
Para o Cebes as eleições que ocorrem nos municípios são particularmente estratégicas. É no município que se lida com as situações cotidianas da execução dos serviços públicos, o que pode facilitar a construção de um diálogo com a população sobre questões que, embora tenham caráter estrutural, se apresentam na concretude do serviço ofertado no posto de saúde, na fila de espera, na falta de medicamentos, insumos e profissionais de saúde. A qualificação da rede de serviços de saúde do SUS deve ser meta destacada como compromisso para o gestor municipal. Reverter a fantasia popular sobre a melhor qualidade dos serviços prestados pelos planos privados é o que irá fortalecer o valor social para o SUS.
A perspectiva ampliada para a saúde deve ser perseguida por meio das políticas intersetoriais e, nesse sentido as alternativas de moradia popular e o enfrentamento da especulação imobiliária compõem a pauta municipal em conjunto com as políticas de recolhimento e tratamento de lixo, a garantia de vagas nas creches, a segurança alimentar e todas as necessidades concretas sentidas e vividas pela população. Essas são algumas questões que devem ser respondidas por políticas intersetoriais, a partir de uma visão global das necessidades da população, desconstruindo o governo como espaço do fisiologismo, construindo um governo municipal que integre as diversas áreas e setores de governo a serviço dos interesses públicos.
Enquanto sociedade organizada, é importante considerar as diversas vezes nas quais os resultados eleitorais significaram profundos retrocessos nas políticas sociais, como são exemplo as diversas experiências de rifagem dos sistemas municipais de saúde, assim como as ações de profunda violência contra populações faveladas, como o ocorrido recentemente em cidades do Estado de São Paulo a partir de iniciativa do poder público. Em outras ocasiões, a eleição de gestores públicos comprometidos permitiu o desenvolvimento de experiências fantásticas, tanto na abordagem ampliada da saúde derivada das políticas intersetoriais, como também na construção do SUS.
SUS para todos e em todos os municípios
A população reclama por saúde nas eleições e o prefeito que tiver ouvidos atentos deve ousar e avançar na consolidação do SUS no seu município. O cenário é complexo, pois, no Brasil, a despeito dos importantes avanços que podem ser identificados no SUS, os desafios persistentes exigem compromisso em solucioná-los. Para isso, na maioria das vezes, o gestor municipal deverá articular-se com os municípios vizinhos e estabelecer cooperação em serviços, dispostos na modalidade de redes assistenciais.
O subfinanciamento e o estrangulamento orçamentário não são favoráveis aos municípios que devem prover os serviços ao universo de sua população. O comprometimento da participação municipal no financiamento da saúde é imprescindível.
Destaque especial deve ser conferido à ampliação da cobertura populacional e do acesso, garantindo qualidade e atenção em todos os níveis de necessidades e de demandas.
O gestor municipal deve enfrentar a relação quase que promíscua entre a saúde pública e o mercado privado de saúde no seu território municipal que reflete a fragilidade regulatória e subtrai recursos e chances para que o SUS se consolide sob a ótica dos seus princípios e diretrizes.
Nessa perspectiva, assumir um compromisso com o SUS universal e de qualidade significa:
● Assumir o foco principal nos usuários, nas demandas da população e, para tanto, avançar na universalidade de forma a construir um sistema de saúde para todos os brasileiros e não somente para os desprovidos, ampliando sua capacidade para atender de forma efetiva e com qualidade as demandas de toda a população, de todas as classes sociais;
● Construir redes de saúde baseadas nos territórios vivos ocupados pelas pessoas e populações, para além do município, efetivando laços regionais solidários para garantia do acesso, qualidade e da integralidade da assistência;
● Priorizar a gestão publica setorial com visão critica sobre as tendências de privatização da gestão dos serviços de saúde hoje realizada por diversos instrumentos como OSSs, OSCIPS, “filantropismos” diversos, etc;
● Atuar contra a precarização do trabalho em saúde, instituindo políticas de gestão do trabalho em saúde e valorizando os trabalhadores do SUS.
Levando tudo isso em conta, o Cebes exorta aos candidatos aos poderes municipais a assumirem um compromisso concreto e inegociável com a saúde do povo em seu município, para os moradores urbanos e da zona rural. Para isso, perseguir na sua gestão a Constituição Brasileira que definiu em seu Artigo 196:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Conjuntamente, o Cebes convoca a sua militância e os demais militantes da Reforma Sanitária a acompanharem e aproveitarem esse momento eleitoral de 2012 para intensificar o diálogo com os movimentos sociais, associações, sindicatos, partidos e pessoas do campo progressista e com a sociedade como um todo, reafirmando a defesa da saúde como direito universal de cidadania e a democracia como princípio de uma sociedade justa e solidária.
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Em breve, a carta será disponibilizada em PDF.
Leia mais sobre nos links abaixo: http://cebes.org.br/internaEditoria.asp?idConteudo=3555&idSubCategoria=30
buscado em: http://cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=3552&idSubCategoria=56

domingo, 2 de setembro de 2012

As duas ontologias críticas de Foucault: da transgressão à ética


por Diogo Sardinha 1
Universidade de Paris I-Panthéon Sorbonne (NoSoPhi). E-mail: diogo_pt@hotmail.com
RESUMO
Sob a inspiração de Bataille, Foucault propõe, em 1963, uma ontologia crítica fundada na ideia de transgressão. Esta não é nem uma atitude, nem um comportamento, e não pertence por conseguinte nem ao domínio da ética, nem ao da moral. Pelo contrário: a transgressão é um acontecimento do ser que ocorre nos limites do ser, acontecimento no qual esses limites são simultaneamente violados, revelados e abolidos. Vinte anos mais tarde, depois de seu regresso à antiguidade clássica, Foucault propõe uma outra ontologia crítica, que se apoia desta vez sobre a ética. Em ambos os casos, trata-se de pensar o ser e os limites. Porém, a transgressão despedaça o sujeito, ao passo que a ética o molda e o protege.

História da Loucura e Crítica da Razão


por Roberto Machado - UFSC (1995)
Tomando como exemplo o 1o. livro de Foucault chamado "A História
da Loucura", qual é a posição filosófica do primeiro Foucault, o Foucault da década de 60, conhecido como "arqueólogo dos saberes"?
Pretendo, portanto, mostrar a posição do Foucault arqueólogo em relação à modernidade, ou melhor ainda, ao humanismo da modernidade, explicitando em que sentido Nietzsche é o principal filósofo que se encontra subjacente a essa tomada de posição filosófica.
Essa palestra foi titulada "Foucault, Nietzsche e a Crítica da Modernidade", mas nós poderíamos chamar também "Foucault e Nietzsche" ou ainda outro título "História da Loucura e Crítica da Razão".

Juntos agora. Entrevista com Richard Sennett

"Fazer é pensar", afirma Richard Sennett, um dos mais importantes sociólogos contemporâneos. Seu trabalho reflete sobre como os sujeitos podem se tornar intérpretes competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos que a sociedade possa oferecer. Para ele, pensamento e sentimento estão contidos no processo de fazer, transformando em falsa a divisão entre o "homem que faz" e o "homem que pensa" - aqui se remete às reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, de quem foi aluno. Sennett acaba de ter lançado no Brasil o livro "Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política da Cooperação", segundo volume do seu "Projeto Homo Faber", trilogia que tem no centro a ideia do homem como artífice de si mesmo.

A reportagem e a entrevista é de Giovanna Bartucci, psicanalista, professora doutora de teoria psicanalítica (UFRJ), autora de "Fragilidade Absoluta. Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade" (Planeta), entre outros livros, e publicada no jornal Valor, 24-08-2012.

Com mais de 15 livros publicados sobre como as cidades são organizadas - as relações entre classes sociais, oportunidades econômicas e relações familiares -, e também sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo, as pesquisas de Sennett se voltaram, nos últimos tempos, para os estudos culturais, estabelecendo um diálogo entre sociologia, história, antropologia e psicologia social.

Seu "Projeto Homo Faber" defende a urgência em pesquisar "as habilidades necessárias à vida cotidiana", ao explorar práticas sociais e materiais - isto é, os objetos, as ferramentas e as máquinas criadas pelo homem e o modo pelo qual ele interage com elas - presentes em um mundo globalizado e pleno de incertezas.

Se em "O Artífice" (Record, 2009), primeiro volume da série, Sennett analisa a artesania, ou seja, o empenho de fazer bem as coisas materiais, no livro recém-lançado ele aborda a natureza da cooperação, traça a evolução de seus rituais desde a Idade Média até a atualidade e detém-se nas razões pelas quais a cooperação se tornou débil e na maneira pela qual pode ser fortalecida.

"Juntos" foi uma consequência natural de "O Artífice", já que "a artesania prospera em comunidades com laços sociais fortes e em organizações que encorajam a cooperação", afirma o sociólogo, professor da New York University, da London School of Economics e da Cambridge University - onde é professor-visitante emérito. Sennett define a cooperação habilidosa como um ofício que tem o seu fundamento no aprendizado de escutar o outro com atenção e na capacidade de dialogar, em oposição a debater ou discutir. No entanto, se na economia contemporânea artesania e cooperação estão ameaçadas e o desafio de conviver com a diferença - seja racial, étnica, religiosa ou econômica - é extremo, Sennett entende que a prática da cooperação se torna fundamental para a prosperidade da sociedade.

Considerando ainda que as relações e "condições" espaciais têm importância enorme no modo por meio do qual "estranhos" (ou pessoas diferentes umas das outras) se relacionam nas grandes cidades, o autor espera que o terceiro volume da trilogia, ainda em elaboração, possa produzir ideias de valor sobre como as cidades podem ser mais bem construídas visando a qualidade de vida das pessoas.

É provável que seus escritos sobre as cidades tenham sido fortemente influenciados por sua experiência de vida familiar. Nascido em 1º de janeiro de 1943, em Chicago, o autor morou, dos 3 aos 9 anos, com a mãe, escritora e destacada assistente social, em Cabrini Green, conjunto habitacional construído com o objetivo de suprir a escassez de moradia causada pela Segunda Guerra, mas também de combater a segregação racial.

O relacionamento passivo com o conjunto habitacional, cuja austeridade arquitetônica, com seus caixotes baixos e compridos, representava a bandeira modernista do projeto, deixou marcas na "comunidade mista de negros, brancos pobres, mutilados [de guerra] e perturbados mentais [que] compunha o objeto do experimento de inclusão social", escreve o autor no livro "Respeito - A Formação do Caráter em um Mundo Desigual" (2004, Record). Frequentando uma escola católica e mergulhado em estudos musicais iniciados aos 5 anos, Sennett passou a infância em Cabrini Green. Aos 15, já tendo morado com a mãe em Washington, durante seis anos, o então músico saiu de casa e, de volta a Chicago, passou a viver de seu trabalho como violoncelista.

Músico profissional dos 15 aos 19, quando passou a sofrer de síndrome do túnel carpal, foi obrigado a abandonar a carreira precocemente e a investir, ainda que à época de maneira descomprometida, na sociologia. Assim, não soa estranha sua afirmação: "Minha sociologia é construída em torno do modelo de aquisição da habilidade de tocar um instrumento, e a prática e o aprimoramento da prática têm sido sempre o centro do que tenho realizado em sociologia". E mais: "No que diz respeito à cooperação e relações de autoridade, a maneira por meio da qual músicos trabalham juntos se constituiu em um modelo de sociabilidade para mim".

Detentor de numerosos prêmios e com obras traduzidas para diversos idiomas, Richard Sennett também publicou três livros de ficção na década de 1980, ainda inéditos no Brasil.
Eis a entrevista.
Antes de começar a trabalhar na sua trilogia, o senhor escreveu de maneira extensa sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo. Como vê o mundo hoje?A década de 1990, período durante o qual escrevi esses ensaios críticos ["A Corrosão do Caráter", "Respeito" e "A Cultura do Novo Capitalismo"], foi um período de boom para o neoliberalismo. O que está acontecendo agora é que estamos vivendo uma crise, a era neoliberal entrou em colapso, no que diz respeito à sua manutenção financeira, e suas fontes têm se provado insustentáveis. Tive um vislumbre disso, na época, quando percebi que a experiência de trabalho das pessoas estava se tornando muito empobrecedora. Hoje, eu diria que a ideia de encontrar uma alternativa não é um projeto utópico, mas algo que precisamos fazer porque esse sistema não funciona. No entanto, encontrar uma alternativa significa repensar coisas muito básicas, como o que é trabalhar bem, cooperar, criar um lugar no mundo para si. Estou interessado em pesquisar de maneira aprofundada sobre como as nossas atitudes e os nossos comportamentos devem mudar para que sejamos capazes de responder a essa crise.

A sua trilogia é, então, a sua resposta a esse estado de coisas?Sim, exatamente. Eu me cansei de ser apenas um crítico do capitalismo. É deprimente escrever somente sobre o que não funciona bem. Comecei, então, a pensar sobre qual seria a melhor maneira de compreender como as pessoas exercem um ofício e trabalham. E todo esse novo campo que diz respeito a questões relacionadas às habilidades, à busca da qualidade e à forma que as atividades produtivas podem estar associadas a como as pessoas cooperam umas com as outras, estabelecem relações sociais e criam espaços para viver nas cidades, se abriu para mim. São esses os temas da trilogia.

Quais são os valores e práticas capazes de manter as pessoas "juntas", cooperando umas com as outras, neste momento em que as instituições se encontram desacreditadas?
Penso que há duas, inicialmente. A primeira diz respeito ao tempo, à duração de tempo, que instituições da sociedade civil e organizações como ambientes de trabalho mantêm as pessoas em contato umas com as outras. Atualmente, o mundo social tem se organizado em torno de trocas de curto prazo, ao invés de relações de longo prazo. Expandir o tempo significa, por exemplo, possibilitar que trabalhadores estabeleçam contratos de longo prazo, em lugar de curto prazo. Essas são aplicações muito práticas. No que diz respeito às empresas, implica manter trabalhadores em suas equipes, ao invés de deslocá-los permanentemente, de maneira flexível. Ou seja, tempo funcionando aqui como cimento, como uma narrativa. A segunda habilidade que as pessoas têm que aprender, para enfrentar essa crise, diz respeito à capacidade de lidar com a agressividade e a competição, na medida em que formas agressivas de competição são recompensadas, enquanto outras formas não o são, provocando uma desigualdade enorme. Penso que é importante repensarmos a competição tanto culturalmente quanto economicamente.

O senhor tem afirmado que a "cooperação" tem se deteriorado na esfera política e também na sociedade civil e define o termo como "trabalhar com os outros para fazer algo que não se consegue fazer por si próprio". No entanto, a expectativa é de que os homens e mulheres contemporâneos sejam autossuficientes e autocentrados. O que pensa desse paradoxo?O problema aqui está em como pensar em precisar de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, que não se conheça bem ou mesmo de quem não se gosta. Ou seja, de um modo mais adulto e complexo. E essa é a realidade adulta que está presente na "cooperação". No entanto, para que isso seja feito é necessário imaginar que as relações sociais são como uma oficina [workshop] na qual as pessoas, com diferentes qualidades e habilidades, trabalham sobre um problema comum. Uma oficina não é apenas uma oficina de artesanato; existem laboratórios científicos que funcionam da mesma maneira. O paradoxo, então, não está na sociedade como um todo, mas exatamente no fato de que o sistema econômico recompensa e premia uma forma não produtiva de trabalho conjunto. E o sistema trata as pessoas como autossuficientes porque recompensa aqueles poucos que o são e não recompensa muito bem aqueles que não têm esse tipo de "capital humano" ou posição social. Desse modo, se há um paradoxo, aqui, diz respeito ao fato de que o sistema está cego para aquilo que é, de fato, produtivo.

"Uma das coisas que espero que fiquem claras é que não faço distinção entre corpo e mente, ao me ater a como os seres humanos produzem coisas"

Como o senhor vê as mobilizações sociais como Occupy Wall Street e os movimentos sociais omo a Primavera Árabe?Com prazer! Mas são formas muito diferentes de cooperação. O que chamamos de Primavera Árabe foram movimentos de massa nos quais as pessoas cooperavam em grandes multidões, e o fato de se juntarem em uma quantidade enorme de pessoas foi parte de sua força. Os movimentos Occupy foram bem menores - e isso é algo que as pessoas esquecem, que eram de apenas 200 ou 300 pessoas. Esses movimentos não se apoiaram na quantidade de participantes e, sim, na persistência em provocar uma conscientização no público, de maneira geral, por meio da mídia. Em outras palavras, não era um movimento de massa, como o entendemos, mas tornou-se um na medida em que despertou o público de maneira bem diferente. E a cooperação, aqui, está no fato de que essas 200 ou 300 pessoas, dormindo juntas no parque, em Nova York, criaram laços sociais que permitiram que perseverassem. Os movimentos Occupy não eram "demonstrações", que teriam a duração de algumas horas ou um dia, mas "ocupações" de longo prazo - o que deu às pessoas envolvidas a força para continuar a tentar despertar o público. Nos movimentos da África do Norte havia uma massa de pessoas que não precisava ser acordada. Elas haviam vivido sob tirania por décadas. O que precisavam era de um "instrumento" por meio do qual se juntar. Mas na Inglaterra e nos Estados Unidos os movimentos Occupy aconteceram após três anos de colapso financeiro, durante os quais a maioria das pessoas comprou a história de que o sistema tinha de ser restaurado ao que era antes, e os ocupantes desafiaram isso. As formas de cooperação são, então, muito diferentes, uma impessoal e outra bastante pessoal, com objetivos distintos. Mas ambas são formas de cooperação política.
O seu livro "Carne e Pedra" (1992) é um estudo sobre como a experiência do corpo tem sido moldada pela evolução das cidades. Como é que o terceiro volume de sua trilogia está relacionado ao seu trabalho anterior?É claro que vou me apoiar em minhas pesquisas anteriores, mas a diferença está em que o terceiro volume tem como tema o design urbano, o planejamento e a arquitetura como ofícios. O foco estará menos na maneira em como as pessoas habitam espaços que não construíram e mais em como construir cidades de melhor qualidade por meio do design.

O corpo como sítio, como uma "cidade". O que o senhor pensa dessa ideia? O corpo é uma cidade! Sim, é um sítio tanto de conhecimento quanto de ação. E uma das coisas que espero que fiquem claras ao final dessa trilogia é que não faço distinção entre corpo e mente, ao me ater em como os seres humanos produzem coisas. Desconfio absolutamente da ideia de que as pessoas, quando produtivas, estejam fisicamente desconectadas e de que tenham uma vida espiritual divorciada dos sentidos. É estranho, mas esse é um tipo de romantismo que tem persistido: acreditar que se tenha uma vida interior divorciada da vida exterior.

E os seus romances? Como estão relacionados ao seu trabalho sociológico?Gosto bastante de "Palais Royal" (1987). O que aconteceu foi que, quando terminei "O Declínio do Homem Público" (1974), senti que a minha escrita estava se deteriorando e eu estava perdendo a habilidade de escrever de maneira "evocativa". Leio ficção sempre; decidi, então, que começaria a escrever romances para encontrar caminhos por meio dos quais rejuvenescer a minha escrita. Escrever não é algo natural para mim; os resultados são satisfatórios, mas preciso fazer um esforço. Assim, escrevi romances porque precisava fazer o meu workshop pessoal.

Do teatro grego ao Facebook


"Do teatro grego para as competições de oratória no foro romano, até os palanques midiáticos da era televisiva, a democracia e a competição política apresentaram-se no mundo ocidental em forma de espetáculo público, ou seja, de apresentação de argumentações e programas submetidos ao julgamento dos espectadores. Estes eram chamados a opinar e escolher suas peças preferidas, o discurso mais bonito ou seus candidatos", escreve Massimo Di Felice, sociólogo, professor de teoria da opinião pública na ECA-USP e coordenador do Centro de Pesquisa Atopos (ECA-USP), em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 26-08-2012.
Segundo ele, "nossa época é marcada por uma paradigmática transformação que vê o advento de uma nova forma de democracia. Ela é baseada na articulação de consenso através da construção colaborativa de redes informativas que articulam novas formas de sinergia entre indivíduos e informações".
Eis o artigo.

Num fim de tarde e no começo da primavera, todos os moradores das cidades gregas tinham que cumprir a obrigação de subir as colinas para chegar ao teatro e assistir às apresentações cujas temáticas abordavam questões éticas e políticas. Sempre construídos numa posição estratégica, geralmente numa parte alta que se debruçava sobre o mar, os teatros gregos apareciam como um lugar irreal no interior dos quais, através de efeitos técnicos e narrativos (o coro, as máscaras, a música), o público era conduzido ao delírio e à comoção. Era exatamente por meio desse elemento emotivo e nesse excesso de empatia (hybris) que o cidadão grego recebia os valores morais e a ética sobre os quais fundavam-se as leis e a vida de sua cidade.

Tal função político-pedagógica do teatro antigo demonstra claramente a importância da cultura do espetáculo e sua profunda relação com a política na cultura ocidental.

Desde seus primórdios no Ocidente o público, o espetáculo e a cultura política formaram um único universo, incindível, que foi o verdadeiro embasamento da democracia - nascida, como observava criticamente Platão, como "teatrocracia", isto é, como a ditadura do espetáculo e do julgamento popular. Evento fútil para os seguidores das verdades, competição imprevisível e prazeroso entretenimento para moradores das antigas cidades da Magna Grécia, de fato, as representações teatrais marcaram o nascimento do encontro entre a comunicação, o espetáculo e a política.

Do teatro grego para as competições de oratória no foro romano, até os palanques midiáticos da era televisiva, a democracia e a competição política apresentaram-se no mundo ocidental em forma de espetáculo público, ou seja, de apresentação de argumentações e programas submetidos ao julgamento dos espectadores. Estes eram chamados a opinar e escolher suas peças preferidas, o discurso mais bonito ou seus candidatos.

Teatro, imprensa, rádio, cinema e TV construíram na historia da nossa civilização a forma/conteúdo da participação e as arquiteturas para a disputa do consenso. Embora com características distintas e diferente poder de difusão das informações, tais práticas mantiveram a mesma arquitetura analógica comunicativa, baseada na distribuição unidirecional das informações de um emissor (ator, jornalista, locutor, apresentador televisivo ou político) para o público espectador, que batia palmas, vaiava, opinava, escolhia e votava. Tal distinção identitária entre quem produzia e distribuía a mensagem e o público espectador chega inalterada à época da eletricidade e da TV. Se a sociedade do espetáculo e o marketing político têm origem antiga e anteriores às estratégias comunicativas descritas porMaquiavel em O Príncipe, é evidente que a interação entre política e televisão introduz um conjunto de elementos novos na linguagem e nos conteúdos da política moderna.

Em primeiro lugar, o incremento da importância das estéticas e do visual do candidato. Em segundo, sua capacidade de adaptação à necessidade de elaboração de respostas rápidas e agilidade na contra-argumentação impostas pela velocidade da linguagem e pela especificidade da temporalidade televisiva. E terceiro, só para citar os mais notórios, sua total submissão à audiência e à programação televisiva. Nesse sentido, o mais conhecido conceito de Marshall McLuhan, "o meio é a mensagem", pode nos orientar para entender a relação entre TV e política. É suficiente observar como a atuação dos marqueteiros e as estratégias comunicativas mudaram nas últimas décadas a forma de fazer política e a qualidade do seu discurso.

A linguagem televisiva tornou os discursos e os programas políticos mais visuais e transformou os profissionais da política em personagens midiáticas preocupadas com suas rugas, a cor do seu cabelo e o ângulo de tomada da câmera. Mas, sobretudo, o alto custo de produção da mídia de massa aumentou os custos da política e, consequentemente, favoreceu a difusão de atuações ilícitas e da corrupção, chegando a fazer coincidir na opinião pública do mundo inteiro a imagem do político - e mesmo a atividade política - com aquela da corrupção e da desonestidade.

Com o advento da comunicação digital esse modelo comunicativo, que permaneceu presente no decorrer da história nas distintas épocas midiáticas e culminou com a forma da espetacularização da política televisiva, entra definitivamente em crise. Com a difusão das mídias móveis e das redes sociais digitais, muda a arquitetura de produção e distribuição das informações, alterando aquele modelo antigo que uniu o teatro grego à TV. Se a mídia e a política de massa criavam público e buscavam consenso através da comunicação frontal, as arquiteturas interativas digitais nos propõem a forma de produção colaborativa de conteúdo que se desenvolve mediante a interação reticular de sujeitos ativos. Do YouTube ao Facebook e à Wikipedia assistimos à passagem de uma forma receptiva de comunicação a uma forma interativa e coletiva.

Se por milênios os fluxos comunicativos foram unidirecionais e a forma de distribuição dos conteúdos mantinha as dinâmicas piramidais da emissão de informações de um centro (emissor) para uma periferia (receptor), a revolução comunicativa digital introduz, pela primeira vez na história da humanidade, um modelo comunicativo interativo, baseado no sistema de rede que, anulando a distinção identitária entre emissor e receptor, oferece a todos os internautas (tecnoatores) o mesmo poder comunicativo e igual oportunidade de acesso. Além disso, tal ruptura comunicativa inaugura um tipo de interação que ativa a comunicação e a torna possível somente no interior das interações dinâmicas entre interfaces, redes e internautas, conferindo aos últimos o papel de construtor das informações e produtor de conteúdos.

Os pressupostos dessa nova cultura midiática interativa são o exato contrário da forma analógica. Para a descrição das arquiteturas comunicativas das interações digitais parece, consequentemente, necessário substituir o conceito de público para aquele de redes, nas quais o significado e o conteúdo do comunicar não são mais pré-codificados e estabelecidos pelo emissor, mas construídos e viabilizados pelo processo interativo.

Essa passagem da mídia de massa para a personal mídia, do analógico para o digital e do ver para o tecnoagir não deixará de alterar a natureza da sociedade e os significados da ação política.

De um ponto de vista político midiático, nossa época é marcada por uma paradigmática transformação que vê o advento de uma nova forma de democracia. Ela é baseada na articulação de consenso através da construção colaborativa de redes informativas que articulam novas formas de sinergia entre indivíduos e informações. Mais que sobre o consenso e apresentação de candidatos, essas novas formas de atuação produzem mudanças diretamente sobre os territórios por meio da participação e da troca informativa de rede de cidadãos. À figura do político portador de um programa e líder de uma corrente partidária sucede o ativismo dos tecnoatores, que através do livre acesso às informações articulam-se, discutem e produzem informações de forma colaborativa. Em todos os continentes produz-se uma forma tecnoinformativa de participação, cidadania e processos de transformações sociais. Foi assim que os cidadãos das antigas cidades gregas tornaram-se autores e atores das tramas encenadas no final da tarde no começo de outras primaveras.

Drogas: crianças e adolescentes tratados como em manicômios



Problemas como isolamento, encarceramento e medicalização descontrolada são denunciados por comunidade terapêutica e grupo de direitos humanosPor Carolina Gonçalves, na Agência Brasil
Brasília – A assistência prestada a crianças e adolescentes usuários de drogas tem sido alvo de preocupação entre especialistas em saúde mental. O temor é que esteja ocorrendo um retorno aos antigos manicômios, proibidos pela Lei de Saúde Mental (10.216), sancionada em 2001. Para profissionais da área, o “retrocesso” acabou por ganhar respaldo com o anúncio, no ano passado, do financiamento governamental das chamadas comunidades terapêuticas.
A pesquisadora da organização não governamental Justiça Global, Isabel Lima, alerta que o modelo adotado pelo governo vai contra as diretrizes consolidadas para o tratamento da saúde mental. “O financiamento público para comunidades é o financiamento da lógica manicomial, porque as comunidades funcionam com o isolamento. Isto é contrário às diretrizes do SUS [Sistema Único de Saúde], da Reforma Psiquiátrica e da Política de Atenção Integral ao Usuário de Drogas. Estas unidades especializadas são criadas para prestar cuidados aos dependentes de drogas, com internação, eliminando o contato da pessoa com o meio onde vivia antes de ser abrigada.”
Para repassar dinheiro público para um amplo leque de comunidades terapêuticas, o governo decidiu, no ano passado, revogar a Resolução 101/2001 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estabelecia regras mínimas a serem seguidas pelas unidades de tratamento. Na época, a secretária nacional de Políticas sobre Drogas, Paulina Duarte, disse que a decisão de cassar a resolução, anunciada em reunião pela presidenta Dilma Rousseff, visava “atender à nova perspectiva de acolhimento das comunidades” e incluir no rol de entidades financiadas com recursos do governo aquelas que tinham “dificuldades” de infraestrutura e de equipe técnica.
Dias depois, a Anvisa publicou uma nova norma na qual impõe a presença de um profissional de nível superior como responsável técnico, sem que ele seja necessariamente da área de saúde. O órgão explicou, na época, que a medida tinha por objetivo ajudar na organização das comunidades terapêuticas, grande parte delas mantida por voluntários.
O movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado no final dos anos de 1970, resultou na aprovação da Lei de Saúde Mental, que há dez anos prevê o tratamento aberto, com convívio comunitário, sem o isolamento.
Recentemente, resultado de fiscalização em abrigos reacendeu o debate sobre o tratamento de usuários de drogas.  O relatório Visitas aos Abrigos Especializados para Crianças e Adolescentes denunciou que crianças e adolescentes estariam sendo dopados em abrigos inadequados situados no Rio de Janeiro.
O relatório foi elaborado pelos conselhos regionais de Psicologia e Serviço Social, o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica), o Grupo Tortura Nunca Mais e a ONG Projeto Legal, além da Comissão de Direitos Humanos e de organismos de prevenção e combate à tortura da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O grupo multidisciplinar, formado por 27 profissionais, visitou quatro abrigos especializados, em Campo Grande e Guaratiba, na zona oeste do Rio de Janeiro, em maio deste ano. As quatro unidades são geridas pela ONG Casa Espírita Tesloo, que é presidida por um policial militar reformado, conforme o relatório.
Com as visitas, os integrantes do grupo identificaram inúmeros problemas, como isolamento e encarceramento dos internos, medicalização descontrolada, falta de informação sobre os efeitos do tratamento e alto número de reincidências no tratamento, relatado pelos atendentes dessas instituições. O relatório também alerta para o retorno aos manicômios.
Desde maio do ano passado, a internação compulsória de crianças e adolescentes que vivem nas ruas, fazem uso de drogas ou não, está autorizada pela prefeitura da capital fluminense. Além do Rio de Janeiro, capitais como São Paulo e Belo Horizonte também adotam a mesma política.
Para Alice De Marchi, psicóloga do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro e que participou das fiscalizações e da elaboração do relatório, a concentração desses diferentes aspectos em um único local representa um retrocesso nas políticas de assistência social e de saúde mental.
“Essa é a própria lógica da instituição total, encontrada em manicômios, na antiga Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor], em presídios”, afirmou a psicóloga, em nota divulgada pelo Conselho Federal de Psicologia por ocasião da divulgação do relatório.
A psicóloga destacou o caráter de privação de liberdade encontrado nos estabelecimentos fiscalizados. “A política de recolhimento compulsório flerta perigosamente com o modelo manicomial de institucionalização e exclusão do convívio social”, disse.
* Colaborou Luciana Lima
Edição: Carolina Pimentel

Caminhos para a Política Cidadã no século 21

Em meio a críticas e esperanças, pensadores e ativistas debatem como superar crise da representação e reinventar democracia

Outras Palavras passa a publicar semanalmente, a partir de hoje, um conjunto de entrevistas sobre um tema crucial: a crise da democracia e as caminhos para reinventá-la. Os diálogos integram a pesquisa qualitativa Política Cidadã – Reflexões e Caminhos, realizada no final de 2011 pelo instituto de pesquisa Ideafix, por solicitação do IDS – Instituto Democracia e Sustentabilidade. São conversas com pensadores e ativistas nos campos da economia, antropologia, filosofia, educação, saúde mental e arte, além de líderes religiosos e comunitários. Envolvem personagens conhecidos: entre outros, Drica Guzzi, Fernando Meirelles, Francisco Whitaker, Frei Betto, José Antonio Moroni, Ladislau Dowbor, Lia Diskin, Rachel Trajber, Ricardo Abramovay, Tião Rocha, Viveiros de Castro e Washignton Novaes. Os temas tratados por eles vêm sendo discutidos pelo IDS no eixo Política Cidadã da sua Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.
Contrapostas, aproximadas, agrupadas, as vozes desses ativistas e acadêmicos constroem, em grandes pinceladas, um retrato do Brasil: traçam cenários, apontam tendências, revelam consensos e confrontos. O que nos move, o que nos afasta? Que valores sustentam as formas de ativismo político que vemos nascer, no Brasil e no mundo? Que desejos, esperanças, utopia? As respostas são muitas e as contradições, também.
São claros a rejeição ao atual sistema de representação política e o descrédito causado pela participação popular insuficiente e corrupção. O país carrega a herança de um estilo autoritário de fazer política. A noção de liberdade está ligada à de justiça social: há os mais livres e os menos livres, conforme o acesso que tenham, ou não, a bens materiais e imateriais. A desigualdade assusta também pela violência que pode gerar. É imperioso aprofundar – e, em diversos sentidos, reinventar – a democracia. A boa notícia é que já assistimos a ações e manifestações que apontam nessa direção.
Os jovens são percebidos como os principais agentes de mudança, embora transitem entre o desconhecimento do passado e a incerteza do porvir. Resistindo à falta de esperança, enfrentam o desafio de recriar as possibilidades de futuro. Para muitos deles, a saída é a tela do computador. E justamente aí – nas possibilidades de participação que se alimentam das redes sociais – reside grande parte das esperanças de mudança.
Outros caminhos são vislumbrados. É consenso a urgência de uma educação universal de qualidade. O fortalecimento do poder local – exercido na escola, no posto de saúde, na subprefeitura, no território indígena. É preciso ocupar os espaços de participação criados pela Constituição de 88. Remunerar os serviços ambientais. Aprender as lições que os povos nativos têm a ensinar, aprofundar a consciência de nossa interdependência planetária. Cooperação é um valor, e nós humanos somos muito mais cooperativos do que supõe a nossa vã economia.
O conflito fundamental reside justo aí, na economia. Para alguns entrevistados, o capitalismo impossibilita as transformações que a crise civilizatória impõe nos modos de produção e consumo, para a preservação da vida. Para outros, as mudanças geradas pela economia do conhecimento podem descortinar cenários inesperados. Certo é que a sobrevivência da espécie humana está a exigir a substituição da noção de liberdade individual pela de bem comum – e a questão do consumo é o ponto nevrálgico desse debate. Uma pergunta que não quer calar: seremos capazes de construir estruturas de governança político-institucional global que possam evitar o agravamento dos processos planetários?

“Nossos sonhos não cabem no capitalismo”


Para Fernando Meirelles, reconstrução da política exige superar lógicas que associam felicidade e sucesso a consumo e acumulação sem fim
Entrevista a Inês Castilho

MAIS:
Caminhos para a Política Cidadã no século 21
Em meio a críticas e esperanças, pensadores e ativistas debatem como superar crise da representação e reinventar democracia
Avançou de modo notável, nos últimos anos, a sensação de que o peso do poder econômico está desfigurando a democracia, a ponto de levá-la ao colapso. Um número crescente de pensadores, ativistas, cidadãos comuns dá-se conta de fenômenos como a mercantilização das eleições e a institucionalização do tráfico de influência. Envolvidos em disputas eleitorais cada vez mais caras, partidos e governantes comprometem-se profundamente com os interesses de grupos empresariais que nutrem suas campanhas políticas.
O dinheiro oferecido pelos financiadores é visto como um investimento e cobrado ao longo de cada dia de mandato. Com tal intensidade que muitos já não creem que seja possível adotar políticas contrárias aos interesses do poder econômico associado à política; e que mesmo decisões simples e de bom senso elementar – como a reconstrução de uma malha ferroviária no Brasil, ou a instalação de redes de ciclovias eficazes nas cidades – não saem do papel. Mas, se o diagnóstico é conhecido, as alternativas rareiam. Como excluir da política o Poder Corruptor?
O cineasta Fernando Meirelles formulou uma hipótese provocadora, em entrevista que concedeu à jornalista Inês Castilho, condutora da série de diálogos sobre Política Cidadã, produzida pelo Instituto de Pesquisas Ideafix, por solicitação do InstitutoDemocracia e Sustentabilidade (IDS). Suas respostas sugerem que uma nova política e um novo sistema econômico virão juntos. Ou seja, o que vivemos é o desgaste geral de nossas formas de socialização – um conjunto de relações que envolve produção de bens e serviços, formas de decisão coletiva, hierarquias concretas e simbólicas. Para superá-las será necessário levar muito adiante certas transformações culturais que já estão se dando.
Meirelles destaca a tensão entre política institucional (restrita aos “gabinetes e restaurantes”) e o intenso desejo de participação da sociedade (“sou muito mais convocado, como cidadão, que cinco anos atrás”). Ele lembra que não se trata apenas de discurso: atitudes transformadoras estão se multiplicando em todo o mundo. No entanto, esbarram em obstáculos estruturais: “a lógica do dinheiro é produzir sempre mais” e a dos políticos “esgota-se em mandatos de quatro anos”. Nenhum poder importa-se com as “perspectivas de longo prazo”, necessárias para preservar a vida.
Caberá à própria sociedade, conclui Meirelles, estabelecer uma ruptura. Não se trata da velha fórmula de tomada do poder de Estado – mas da “dificílima e demorada transformação das nossas vidas”. Só a empreenderemos, no entanto, se soubermos que se trata de construir um novo sistema: “a lógica do capitalismo (…) poderia fazer algum sentido (…) num mundo que não é mais o nosso”. A superação desta lógica implicará, entre outros passos, “valorizar bens não-materiais: educação, esporte, cultura, ciência – atividades humanas que não consomem o planeta e preenchem mais a alma que a busca desesperada pela reposição de bens”.
A entrevista completa de Fernando Meirelles, que abre nossa série, vem a seguir. Na próxima semana, a seção recebe o economista Ricardo Abramovay. (A.M.)
Qual sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
A política no Brasil ainda é feita muito nos gabinetes e restaurantes, tem um quê de futebol, o interesse pelo jogo de poder entre os partidos vem antes do debate das ideias. Isso é muito frustrante para quem tenta acompanhar nossos homens públicos. A boa notícia é que, com o crescimento das redes sociais, a participação popular também tende a crescer e o processo político, a ficar mais transparente. A mobilização popular pela Ficha Limpa e contra o Código Florestal demonstraram que a população começa a ter mais peso nas decisões do país.
Que temas você acha que mobilizam a sociedade brasileira, hoje?
A falta de transparência dos partidos e do governo vem mobilizando a sociedade, já não é tão fácil ser corrupto, hoje. A preocupação com questões ambientais também mostra ser um forte tema para a moblização social. Isso já havia sido sentido com a expressiva votação que teve a Marina Silva na última eleição à presidência e foi reforçado agora, no processo de votação e veto parcial do Código Florestal, que contou com abaixo-assinado de 2 milhões de pessoas. Isso entre outras manifestações, incluindo a criação de sites especializados, transmissão ao vivo do congresso etc.
Que formas o cidadão comum tem de atuar politicamente?
Passei anos sem receber nenhum abaixo-assinado, agora semanalmente sou chamado a me posicionar sobre os mais diferentes temas, internos e externos. Sinto-me hoje muito mais convocado, como cidadão, do que cinco anos atrás, e estimula saber que muitos desses movimentos populares estão dando resultado. Está aí a primevera no norte da África que não nos deixa mentir.
Você vê alguma particularidade quanto ao jovem?
Os jovens talvez tenham menos interesse em política do que quem lê jornal e tem o hábito de se manter informado, mas estão cada vez mais plugados, graças às redes sociais. A era dos Sarneys, dos coronéis que trabalham em segredo, está acabando.
Você acha que a política institucional dá conta da democracia?
Sinto que os partidos não representam a vontade da população, não trabalham para o Estado nem para o bem do país – trabalham prioritariamente para se manter no poder. Não saberia inventar outro sistema, mas percebo que este não dá conta da complexidade do mundo de hoje. O ex-presidente Lula declarou recentemente em um programa de TV que aceitaria se candidatar novamente à presidência, para que o PSDB não ocupasse o lugar. Essa declaração infeliz resume a questão: o poder político é um jogo que se vence ou se perde, e é isso que mobiliza seus participantes – o país vem depois, quando vem. Outro aspecto que tem me chamado a atenção é que, por estarmos todos muito mais ligados, praticamente não há mais poder local. Um prefeito que não trabalhe com os outros prefeitos da região não consegue fazer seu trabalho direito. Países que não integrem órgãos internacionais nos quais se debatam os interesses comuns ficam de mãos atadas.
Os anos 60 marcaram época, politicamente. O que mudou de lá pra cá?
Nos anos 60 o mundo estava dividido entre esquerda e direita, estava-se do lado de cá ou do lado de lá. Quando você polariza, o jogo fica mais acessível e mais apaixonante, vira um Fla-Flu. Depois tivemos o período em que a nossa sociedade foi convidada a se calar, e então o mundo ficou muito mais complexo. Hoje a esquerda é apoiada, por exemplo, pelo José Sarney e pelo Aldo Rebelo – este, um comunista que vota com os ruralistas. Tudo é mais confuso, mais impenetrável. O pensamento e as fórmulas de governança dos anos 60 não cabem mais no mundo de hoje.
Você percebe uma mudança de valores, dos anos 60 pra cá?
Um grande valor hoje, praticamente inexistente 40 anos atrás, é em relação às questões ambientais. Há 40 anos o planeta era inesgotável, ainda estava sendo conquistado. Hoje temos a percepção de que vivemos num planeta onde os recursos são finitos e, pior, estão se esgotando rapidamente. A grande descoberta em termos de valor é entendermos a necessidade de pararmos de pensar como nações e passarmos a pensar como planeta. A ideia de soberania nacional vai aos poucos sendo revista, ou relativizada. A interdependência global é um dado inquestionável. Se queimarmos a Amazônia, não choverá no Sul e vai haver seca no centro do Brasil, o carbono liberado vai acelerar o aquecimento do planeta, geleiras irão derreter, rios que dependem delas deixarão de ser formados, populações ficarão sem suas fontes de alimentos. Tudo está ligado. Não tínhamos essa noção 40 anos atrás. Hoje sabemos que o degelo da Groenlândia vai afetar imensamente a vida de enorme população na Ásia que vive à beira-mar. Essas questões bateram à nossa porta e já estão nos atropelando. Apenas cegos, cínicos ou oportunistas se recusam a enxergar.
Um parêntese: a despeito disso tudo, existem 69 povos isolados indígenas no Brasil.
Sim, pequenas aldeias devidamente localizadas e demarcadas com GPS. Esses índios podem não estar nos vendo, mas sabemos exatamente onde eles estão, quantos são, e fotos deles estão disponíveis para qualquer um no Google Earth. Não tenho dúvidas de que, se um dia suas terras nos interessarem para a construção de barragens hidrelétricas, por exemplo, em pouco tempo estará justificada a invasão. Este roteiro não é novo, ainda se repete depois de 500 anos de história.
Quanto ao exercício da cidadania, você percebe mudanças?
Está na moda falar em cidadania, ser responsável pelo coletivo, mas estamos longe de uma noção verdadeira de que nossos atos afetam a vida do próximo e precisam ser repensados. Em alguns lugares onde tenho trabalhado sinto que a noção de se viver numa comunidade está bem mais incorporada do que aqui. Tenho um caso recente. Estava em Toronto e fui almoçar na casa de um produtor amigo. Ele serviu salada e depois tinha uma lentilha, pois sabe que sou vegetariano. Quando foi trocar meu prato, falei: “Não precisa, pode deixar”. Ele respondeu de bate-pronto: “Não tem problema porque eu espero a máquina encher, não vou gastar mais água lavando mais este prato”. Eu havia pensado em ficar com o prato para aproveitar o molhinho de azeite, mas a noção de que seus atos podem repercutir na vida dos outros, de que a água é um bem coletivo, está tão impregnada que ele nem entendeu minha intenção. No Brasil ainda estamos longe desta noção de cidadania. Mas está melhorando.
Alguma articulação ou movimento social, no Brasil e fora dele, chamou sua atenção nos últimos tempos?
Sim, os movimentos ambientalistas que questionam o nosso modelo de desenvolvimento, o business as usual. O impressionante é que os jornais comemoram o crescimento do consumo ou da economia como se isso ainda fosse saudável. Há movimentos mostrando que precisamos urgentemente fazer uma curva na história e buscar outros modelos de desenvolvimento. Os movimentos que lidam com estas questões são os mais importantes, hoje. Infelizmente nossos homens públicos trabalham com a perspectiva de futuro de três ou quatro anos, que é o quanto duram seus mandatos. Difícil construir um mundo sem perspectiva de longo ou longuíssimo prazo. Estamos ameaçados justamente por essa lógica.
E como fica a questão do consumo diante disso? O seu, o meu, o nosso?
Temos que mudar nosso padrão de consumo, rapidamente. Esta mudança precisaria ser como uma mobilização de guerra, na qual todos entendessem que precisam abrir mão de alguma coisa para poder prosseguir. Tenho feito mudanças nesse sentido na minha vida, mas talvez só quando os efeitos da carência de recursos baterem à nossa porta é que mudaremos de fato nossas vidas. A lógica do dinheiro como motor da sociedade é tão perversa quanto difícil de ser alterada. Sabemos, por exemplo, que há falta de alimento no mundo, e sabemos também que 40% do alimento produzido é desperdiçado no processo de produção, transporte, comercialização e preparação para o consumo. Contudo, quando olhamos para esta questão, a maneira de atacá-la é sempre o aumento da produção, e não o uso racional do que já existe. Para quem produz, transporta ou comercializa alimentos, o desperdício é boa notícia, pois significa maior demanda, mais renda. A racionalização do uso dos recursos é a nova economia de que o mundo precisa.
Li recentemente um editorial do Estadão [jornal O Estado de S.Paulo] no qual o Washington Novaes [jornalista e ambientalista] comentava o gosto dos governos pelas grandes obras. Dava exemplos de como pequenas medidas poderiam ser mais eficazes, mais racionais, falava de outra maneira de pensar a administração pública e a organização da sociedade. Um dos exemplos era a notícia de que a Caixa Econômica Federal, a partir de agora, não vai mais financiar moradias em lugares onde não houver água e esgoto disponíveis. É uma loucura pensar que até ontem o Estado financiava moradias que usavam os rios como esgoto. O texto falava sobre desperdício e trazia dados interessantes: no Brasil desperdiçamos 40% da água usada, e o estado de São Paulo vai fazer uma reformulação para desperdiçarmos 24%. No Japão desperdiçam-se 3%. Seguindo a mesma lógica, o pensamento dominante quando se fala em água é a construção de novas barragens, novos reservatórios, tratar mais água. Pensa-se sempre em novas obras, e no entanto há muita brecha para a racionalização. Temos que chegar ao ponto em que 100% do que é produzido possa ser reciclado, mas isso demanda uma mudança cultural inimaginável.
Essa mudança é compatível com o capitalismo?
Não, a lógica do capitalismo é expandir, crescer. Isso poderia fazer algum sentido num mundo inesgotável e infinito, mas já sabemos que não é mais o nosso. Um novo modelo de desenvolvimento implica uma dificílima e demorada transformação nas nossas vidas. Ela virá com mais ou menos dor. A questão que os capitalistas colocam é: se vamos consumir menos, para onde vai o trabalho e a atividade humana? Uma resposta é que o trabalho pode migrar da área de produção de bens de consumo para áreas como educação, cultura, serviços. A aspiração das populações, hoje, é por bens de consumo, roupas, automóveis. A mudança cultural necessária é passarmos a valorizar bens não materiais. Educação, esporte, música, ciência são atividades humanas que não consomem tanto o planeta e preenchem mais a alma do que a busca desesperada pela reposição de bens, que é uma das principais razões pelas quais se trabalha e se vive, hoje.
Ao longo da história, vários movimentos sociais lutaram pela liberdade. Você acha que a liberdade ainda é uma questão?
Claro que é. A plena liberdade política é desfrutada por apenas uma parcela da população mundial. Mas, mais do que a liberdade de influir nas decisões que afetam a própria vida, a pobreza é o maior limitador da liberdade humana. Sem justiça social não há liberdade, e a injustiça social ainda é dominante no planeta. Em todos os países encontraremos diferenças entre ricos e pobres, maiores ou menores, mas não há lugar onde a diferença seja tão grande quanto no planeta Terra como um todo. A diferença entre países com altas taxas de consumo e países sem margem para desfrutar de alguma autonomia é mais brutal do que qualquer diferença interna entre os que têm e os que não têm. Um país que consome sozinho 25% dos recursos do mundo inexoravelmente estará tolhendo a liberdade de outros.
Que outros direitos e valores há a serem conquistados, hoje?
Creio que a noção de que somos parte de uma mesma humanidade e de que dependemos um do outro, que afetamos a vida do outro, precisa ser mais bem compreendida. Mais do que nunca, estamos todos conectados. A dona Kátia Abreu [senadora pelo PSD-TO, líder da bancada ruralista do congresso] ainda não entendeu que a expansão das fronteiras agrícolas na Amazônia, que ela defende, vai gerar seca e derrubar a produção de soja de sua fazenda em Campos Lindos, no Tocantins.
Ao mesmo tempo em que descobrimos essa interdependência, vivemos um individualismo exacerbado.
Pode parecer paradoxal, mas não creio que a busca de uma identidade ou da própria individualidade seja conflitante com a noção de pertencer a uma grande comunidade global. Todos queremos ter uma cara, deixar de ser invisíveis, mas ao mesmo tempo vejo mais pessoas engajadas em lutas e num pensamento de cardume. A compreensão de que somos uma só espécie passa pelo autoconhecimento.
Como você vê as próximas gerações coexistindo nesse planeta cada vez menor?
Menor e mais rápido, vale lembrar. Meus netos irão viver num mundo muito diferente do meu. Passei a infância em um mundo natural ainda em expansão, onde a manteiga era feita na fazenda e a fruta, colhida no pé. Onde meu avô dizia que “desde que o mundo é mundo as coisas são assim e assim ficarão”. Meus netos vão viver num mundo onde as transformações acontecem a cada bimestre, um mundo que é como uma aldeia, totalmente conectado e sem muitas fronteiras, onde a busca pelo crescimento perderá o sentido. Segundo o último Censo, a população brasileira parou de crescer e já começa a envelhecer.
Sem população em crescimento, o esforço para suprir bens e alimento para quem está chegando deve ser deslocado para o esforço de distribuir melhor os bens, alimentos e energia já disponíveis. Nessas condições, me parece mais fácil organizar a sociedade. Mas a possibilidade de termos que conviver com populações refugiadas da fome, da falta de água, do aumento do nível do mar, assim como os desafios para mudarmos nossa matriz energética ou conseguirmos manter a produção de alimentos com menos água, coloca no futuro variantes tais que qualquer tentativa de previsão se torna quase um exercício de adivinhação.
Ha outro aspecto, a velocidade do novo mundo. Quando penso em futuro sempre me sinto enganado. Prometeram que a tecnologia iria libertar o homem, dar-lhe mais tempo para cuidar do espírito e para o lazer, mas aconteceu o contrário. Viramos prisioneiros das máquinas. Antes eu saía do trabalho às 7 da noite e só voltava no dia seguinte. Hoje, conectado, me vejo respondendo emails e trabalhando em qualquer hora e lugar. Todo mundo recebe solicitações de trabalho durante o almoço, nos finais de semana. A tecnologia nos transformou em trabalhadores compulsivos. Nem nas férias nos desconectamos dessas maravilhas tecnológicas.
Mas talvez o trabalho fosse mais separado do lazer.
No meu caso, trabalho e lazer são praticamente a mesma coisa. Mas sei que sou um caso raro e, mesmo assim, gostaria de ter um tempo em que pudesse virar o disco. Para quem tem funções que exigem mais esforço e menos criatividade, a tecnologia realmente veio para diminuir os prazos e roubar o tempo que se tem para desfrutar da vida e ser feliz.
Você vê a possibilidade de uma governança global?
Será inevitável. O rio Ganges ou o Amarelo, e a população que eles alimentam, não dependem de decisões da Índia ou da China para continuarem a correr. Eles dependem do corte e emissão de carbono no mundo todo, da preservação das florestas que ainda existem, de modo que o planeta não se aqueça mais e as geleiras do Himalaia, que os alimentam, continuem a se formar anualmente. Como esses, há muitos outros exemplos de problemas cujas decisões nacionais, nos países onde podem ser tomadas, não conseguem mais dar conta. Creio que tentativas de governança global como a do Mercosul ou da Zona do Euro são ensaios para um mundo em que as decisões precisam ser compartilhadas. A ONU não funciona muito bem porque os Estados Unidos, apesar de serem seu maior financiador, não respeitam muito suas decisões. Mas a tendência é cada vez mais organizações globais passarem a ter mais influência no mundo. Precisamos urgentemente de organizações que regulem as questões ambientais no planeta. Nada mais razoável, dada a nossa interdependência.