segunda-feira, 11 de julho de 2016

hypomnemata188

hypomnemata188
Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.188, junho de 2016.

O que se fala e o que se evita dizer
Só crianças brincando. Entre texturas e quenturas. Juntos, descobrindo seus corpos. A escritora e poeta, taxada de obscena, narra o encontro de peles tenras desnudas. E os adultos se acostumaram a dizer às crianças que é feio ficar pelado. Os pequenos sussurram entre si, em meio às minúsculas e imensas descobertas: “e a lagarta? ela não está pelada?”
O nome disso? O que não tem juízo (...).
Até que...
Só uma criança brincando... E, de repente, os gritos. Só uma criança existindo, e em seguida a surra, o palato queimado, os dedinhos mutilados, os braços com ranhuras de unhas.
E, na economia política da pena, os pais ou responsáveis são enquadrados como autores de “maus-tratos”.
No exercício do pátrio-poder, ou como autoridade superior, eles têm o direito de castigar “desde que não imoderadamente seus filhos ou crianças sob sua responsabilidade a fim de educá-los”.
Um desconhecido é punido por “lesão corporal” diante da identificação de indícios e materialidade do “fato”.
O nome disso? Linguagem penal.
O inominável disso? Um dos inumeráveis começos da cultura do castigo.
Até que...
Apenas um bebê dormindo. E, de repente... Pela terceira vez, na mesma semana, ele dá entrada no hospital, com o períneo rompido. Falam que caiu da cadeira em todas as ocasiões.
Na economia política da pena, “exibir conteúdo impróprio a menores de idade prevê uma punição maior do que a um profissional de saúde e ou educação que não denuncie o abuso de criança e adolescente às autoridades competentes diante de indícios e materialidade do fato”.
O nome disso? Higienização da moral pública.
O inominável disso? Um dos inumeráveis começos da cultura do castigo.
Até que... Até que... Até que... Até que...
B a s t a !
Meninos e meninas são cotidianamente pi-ca-dos em suas casas pelo papai e pela mamãe, pelo padrasto e pela madrasta, pelo parente próximo e distante, pelo agregado e comunitário, pelo aditivo e adjacente, pelo familiar e conhecido.
É assim que se gesta e se consolida uma cultura do castigo.
Não é preciso esperar pelas futuras relações violentas produzidas sobre outros corpos e sobre si mesma para que uma criança acostumada a isto naturalize o autoritarismo.
Enquanto isso, corroborando o “combate à cultura do estupro”, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro acaba de lançar o Dossiê-Mulher 2016 (relativo ao número de violências cometidas no estado em 2015).
Nele se destaca que, proporcionalmente, os alvos preferenciais de violências sexuais são crianças e as jovens no interior da família.
Não surpreende que na publicação não haja uma palavra a respeito de tal prática exercida sobre os corpos de meninos e garotos, que, afinal, também são, respectivamente, crianças e jovens.
Esta é apenas uma ínfima constatação de que a mesma cultura do castigo que violenta os corpos de crianças e jovens é nutrida por mulheres e homens que amam oespetáculo da denúncia.
Os eternos itinerários que perpetuam as trocas de sinais recíprocos entre vítimas e algozes para abastecer o lugar cômodo da santa indignação e da assepsia dos tratamentos degradantes.
Enquanto isto...
Alardeiam-se as estatísticas em torno de “estupros” de “mulheres”.
Avolumam-se relatórios, dossiês, mapas georreferenciados, projetos e programas, processos judiciais, organizam-se marchas e protestos para denunciar o que passam a chamar de “cultura do estupro”.
Não há cultura alguma do estupro.
Esta é apenas a denominação inerente a uma linguagem crédula na existência da natureza ontológica do crime.
O “estupro” nada mais é do que uma terminologia que tipifica um crime.
Assim como o “estupro de vulnerável” é tão somente a variedade em torno do mesmo tema como condição agravante na lógica penal.
Quase todos e todas estão tão absorvidos por esta linguagem e criaram tanto amor a ela que sequer notam um pequeno, um ínfimo, detalhe imenso.
Na mesma proporção crescente que mais se “fala” da cultura do estupro exercida sobre meninas, garotas e mulheres, quase ninguém quer tocar ou dizer coisa alguma sobre os meninos e os garotos que são proporcionalmente alvos preferenciais de violências sexuais que já começam em casa.
Isto não é um tema a ser aferido estatisticamente em termos absolutos ou relativos para os afeitos à lógica da ponderação, das penalizações e das violências.
É, simultaneamente, uma constatação óbvia diante do que se evita dizer.
Questão a ser colocada para o pretendido consenso em torno da cultura do castigo que é produzida e sustentada tanto por homens quanto por mulheres que se acostumaram ao amor-moral; ao amor-direito; ao amor-dever; ao amor-juízo por ela.
            E basta de falarem que falta Amor.
Amor é o que não falta, como afirmou um homem corajoso e inclassificável, no século XIX, ao escrever algumas considerações provisórias sobre o Estado fundado no amor, quando situou, também, que entregar-se à ideia de Amor é uma das formas mais “Belas” de se aniquilar a vida.

Violência penal
Uma garota é violentada por mais de 30 homens.
Pelo que se sabe, todos são mais ou menos de seu ciclo de convivência, partilham de uma sociabilidade fundada no sucesso, na conquista e na ostentação embalada pelo ritmo do funk.
Em várias destas músicas todos são celebrados como os melhores, os mais sagazes e avassaladores.
Falam que meninas e meninos são hiper-sexualizados.
Em pouco tempo, abriu-se mais uma discussão acalorada e midiatizada em vários círculos de ativistas e protagonistas para rapidamente chegar a mais uma inovação: “cultura do estupro”.
Seria a música funk culpada?
A violência e o mistifório dos trinta não seria apenas a expressão de uma conduta milenar que habita os gestos, desejos e poderes de cada um sob o signo da cultura patriarcal?
Quando ocorre uma violência inominável e insuportável, nomeá-la imediatamente e submetê-la a explicações definidoras, estabelecendo motivações e culpados, nada mais é que inscrevê-la na lógica penal e, com isso, torná-la, de alguma maneira, palatável.
Assim, responde-se a uma violência com outra, mais insidiosa, racionalizada e abonada, que é a violência do sistema penal.
Ao estabelecer um ou mais culpados, institui-se motivações, formas de vingança, ações preventivas, contabilizam-se dados e estatísticas, pacificam-se racionalmente algo que é, por si, revoltante, inaceitável, insuportável.
E assim a sociedade vomita suas próprias criações como dejetos derivados de uma sociabilidade autoritária e efeitos diretos da cultura do castigo que se reproduz pela relação vítima-agressor.
Se há um culpado, se há um grupo a ser identificado e punido, se há uma conduta a ser criminalizada e perseguida, a sociedade se defende, livrando-se da sua iminente incomôda criatura.
Até que a próxima vítima apareça, ou melhor, seja denunciada, pois na maioria das vezes os violentados são silenciados.
Esta mesma sociedade da moral exemplar e das punições regulares só se reproduz pelo manto silencioso que pousa solene sobre os violentados.
Expostos pelas denúncias eles estarão estigmatizados para sempre. Sobre eles, indelevelmente recairá certa culpa na inocência. E isso não se restringe ao sistema penal formal.
E para outras condutas criminalizadas ou criminalizáveis não faltarão os justiceiros das hordas de linchadores reais e virtuais; as listas de potenciais perigosos que devem ser identificados e punidos; as pessoas que devem ser policiadas por todos e todas, incluindo os defensores de direitos abstratos.
A violência penal não existe por si, ela está incrustada na sociedade.
Ela produz, ordinariamente, seus corpos a serem malhados, executados, esquartejados, picados e moídos.
A potência que habita corpos menores é o alvo privilegiado da cultura do castigo, seja pelo seu aparato formal ou informal.
Assim também ocorre quando a polícia, profissional da execução e da perseguição dá cabo da vida de um franzino pequeno corpo de um garoto de 10 anos.
A opinião pública se apressa em pedir punição, em cobrar apuração das autoridades, em corrigir eventuais abusos e excessos policiais.
Mas ela também conta com uma parte significativa que sai em defesa da polícia em nome da segurança de seus bens a serem protegidos e da necessidade de matar, mesmo que seja um garoto de 10 anos que furtou um automóvel.
Em meio à rotina do procedimento protocolar de “reconstituição da cena do crime”, a boa sociedade aparece para dar vazão ao seu desejo de vingança e sangue.
Algumas dezenas de pessoas, aproximadamente trinta, cercam o procedimento criminal levado a cabo pela polícia civil, para demonstrar seu apoio aos policiais que haviam cravado um balaço no peito daquele menino de 10 anos.
Afinal, tratava-se de uma vida desprezível, um perigo perambulante, um virtual assassino, um potencial estuprador: tanto melhor que vá o quanto antes.
A violência, desde suas manifestações mais ordinárias e toleráveis, até suas formas mais espetaculares e chocantes, é o alimento da cultura do castigo e das recompensas.
A nossa cultura é assim, ora mais autoritária, por vezes totalitária, ou mesmo democrática. É a cultura patriarcal repaginada há séculos que se reproduz pela adesão dos súditos.
Seus alvos prediletos são os corpos de mulheres, crianças, jovens e todos os que têm a coragem de ser diferente.
A diferença que vaza e implode o condutor soberano e a ficção pluralista.

O consentimento
30 homens aceitaram violentar uma mulher. Grande parte destes homens, senão todos, consentiram que a situação era justa ou justificável para eles.
A maioria forte consente uma prática violenta sobre a mais fraca.
O consentimento justo da maioria sobre uma mulher escancara a quem quiser a ilusão e o maniqueísmo das práticas por maioria.
A reação imediata da sociedade é a de horror e exige punição, por meio de uma dura pena justa, justificável.
O castigo é o meio pelo qual se obedece antes de tudo na família. O soberano da casa é o proprietário de sua prole.
As crianças, posteriormente, aprendem o dever de obedecer na rua, na escola, entre os vizinhos, com a polícia, com o comando, o partido.
O castigo não é uma violência exclusiva de uma classe econômica pobre.
Está em qualquer camada social, em todas as instituições, organizações e empresas e se expressa, por meio de nuances, mais ou menos aceitáveis.
A violência das penas nem sempre parece justa aos corpos submetidos, mas eles se acostumam às regularidades e as justificam.
Muitos meninos e meninas se acostumam, todos os dias, a terem seus corpos invadidos por milhares de mãos que o fazem para o seu bem, em nome do melhor interesse, ou para o bem da sociedade.
— É assim! E assim, perpetuam os beliscões, os tapas, as surras, a invasão dos sexos.
Aprende-se que desta maneira se reconhece a superioridade de outro: são os mais fortes, os mais poderosos, as autoridades, os donos da grana, os que têm legitimidadepara meter a mão, o pau, o pé, o cano.
O alvo é a mulher diante do macho, a criança diante do adulto, o marginal diante da polícia e do Estado, o único diante do grupo (ou da comunidade).
E, na primeira oportunidade, na primeira inversão de status, os que eram alvos se escoram em uma aparente ou provisória vantagem para dar continuidade ao ciclo de violências.
As relações balanceadas pela covardia são a regra.
Qualquer sugestão de insubordinação é contida a duras penas.
É esta a educação pelo Estado. É esta a educação pela família de bem. É esta a prática da “sociedade civil” e das empresas por dentro e por fora no chamado crime organizado.
Mulheres são violentadas.
Homens são violentados.
É a perpetuação de um ciclo que é coerente com a existência do Estado.
Milhares de meninos e meninas são violentados, agora, e silenciados.
(...)
Em uma escola qualquer, em uma cidade qualquer, um dia desses, no Brasil: uma jovem se relaciona sexualmente com um grupo de jovens, de maneira consensual.
A brincadeira é filmada, o vídeo compartilhado na escola e entre os vizinhos.
A jovem Geni é removida da escola e da região.
A brincadeira prazerosa é condenada como conduta sexual inadequada para uma mulher.
Começa aí a violência sobre o seu sexo. Seu corpo agora é alvo. Passa pelas mãos e olhos dos pais, dos diretores, coordenadores, conselheiros, psicólogos, etc.
São dedos que apontam, são línguas que cospem venenos, são olhares que reprovam e devoram: é a culpa que faz minguar o prazer, são variadas ameaças que pretendem garantir conformação da boa conduta no governo do sexo.
É por isso que o corpo livre para o sexo de uma mulher, em segundos pode se tornar sinônimo de corpo disponível, desfrutável, por qualquer um. O seu livre prazer deve ser punido.
O corpo que experimentou livremente seu prazer deve ser enjaulado nos invisíveis compartimentos escusos de seu inconsciente, da moral, dos diagnósticos que justificam sua conduta inadequada e condenável.
São as mãos autorizadas de especialistas que se infiltram bloqueando os toques prazerosos ambicionando cicatrizar cada lembrança em mancha para nomear a suposta superação do escândalo ressignificado como trauma.
A liberação do corpo de crianças e jovens para o seu próprio prazer é inconcebível.
O sexo liberado, na sociedade contemporânea, deve ser regulado, repaginado ou servir de mote para conter a violência relacionada a tudo o que vaza das relações conjugais.
E as práticas liberadoras do sexo hoje são aceitáveis, em grande medida, quando reguladas pelo redimensionamento aceitável das famílias.

Polícia é polícia
Há mais de trinta anos foi implantada em São Paulo a primeira delegacia da mulher, inaugurando o rol de delegacias especializadas que procriaram por todo o Brasil para atender as chamadas vítimas vulneráveis.
A instituição da delegacia especializada pelo Estado está fundamentada na prestação de serviço centrada no suposto atendimento diferenciado e humanitário, para acolher, assistir e proteger vítimas de mazelas e violências.
Os profissionais, delegados, delegadas, agentes e escrivães devem estar aptos, capacitados, reciclados em cursos presenciais ou à distância que os sensibilize e conscientize dos direitos humanos universais para garantir aos que procuram uma delegacia especializada que ali se encontra lisura e segurança destinadas a proceder à punição humana e exemplar do violentador.
Governantes, ativistas, “operadores do direito” e outros tantos, querem fazer acreditar nas recomendações de amor ao próximo, em práticas de acolhimento, em direito à diferença, assegurando que a delegacia especial é uma delegacia social.
Com cursos de capacitação, reciclagem ou não, polícia é polícia.
A delegacia especializada é destinada aos diferentes, geralmente indesejados, pobres e miseráveis, e ela é repressiva e punitiva como as outras.
Seu papel é monitorar os grupos vulneráveis, receber denúncias, governar a violência e colaborar para o extenso discurso sobre suas causalidades sob o princípio da excelência da punição.

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