sexta-feira, 27 de junho de 2014

FOUCAULT: CORPOS DÓCEIS

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“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” – Foucault, Vigiar e Punir
O homem moderno nasceu no fim do séc. XVIII e já está para morrer, disse Foucault. Mas como nasce o homem que conhecemos hoje? Como se dá vida a este ser? Durante a era moderna, o poder descobriu o detalhe, o absolutamente ínfimo, aquilo que antes passava despercebido. Até um pouco antes da revolução francesa, e a partir daí com cada vez mais força, o homem se tornou algo que se fabrica, o poder age em cada indivíduo para fabricar corpos dóceis. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (Foucault, Vigiar e Punir).
O corpo se tornou alvo do poder, descobriu-se que ele podia ser moldado, rearranjado, treinado e submetido para se tornar ao mesmo tempo tão útil quanto assujeitado. O corpo foi dobrado pelo poder, através de várias técnicas de dominação. Não que esta criação seja inédita, as relações de força agem e agiram desde sempre, mas com a modernidade o corpo passa a ser dividido, separado, medido, investigado em cada detalhe. Mais uma peça na grande máquina de produção. E como qualquer produto de produção em massa, o corpo humano passa por vários estágios até estar acabado: família, escola, quartel, fábrica; ou sua versão moderna: família, escola, faculdade, escritório. Caso alguma coisa dê errada, hospital, hospício, cadeia.
“A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças dos corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) [...] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada” – Foucault, Vigiar e Punir
O poder separa o homem de si mesmo. Ele não reprime, ele produz, ele cria corpos, exercita habilidades, capacita, conduz. Isso se dá em várias esferas da sociedade, uma alimentando a outra, são linhas de força que entram em ressonância, não há um senhor rico e poderoso manipulando tudo, estão envolvidos políticos, padres, ricos, pobres, enfim, a sociedade como um conjunto de interesses e forças. Foucault descreve quatro mecanismos disciplinares na formação de corpos dóceis:
Arte das distribuições: a produção de um corpo dócil só é possível através de uma distribuição no espaço. Arte dos arranjos. Um quadro onde cada um ocupe um lugar e se possa tirar o máximo de cada indivíduo. A arquitetura geral passa a ter o modelo dos conventos e dos monastérios, espaços individuais; um universo isolado (ilhas de disciplina), mas enumerado e localizável. Nas fábricas, nas escolas, os corpos são distribuídos de maneira a regular os fluxos, as relações, as afecções. As ligações são ordenadas e delimitadas: cada aluno no seu lugar, cada operário devidamente posicionado na linha de montagem. Otimização do tempo e do espaço, organização do múltiplo para impor-lhe uma ordem. A massa confusa torna-se corpo de trabalho eficiente.
Controle das atividades: o relógio se tornou o grande senhor do nosso tempo. Já tratamos da Ditadura do Tempo (veja aqui). Durante séculos, as ordens religiosas foram as grandes especialistas neste campo dos ritmos e atividades regulares. Hoje encontramos isto em quase todas as instituições: grade horária, relógio de ponto, sinal de entrada, saída, intervalo. O tempo é precioso, deve ser usado com destreza, o corpo dócil deve ficar concentrado, puro, firme, agir com destreza através das várias etapas. Nada de ociosidade, nada de distrações e vagabundagem. “Define-se uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento” (Foucault, Vigiar e Punir). O tempo possui o corpo dócil, impõe precisão, exatidão, ritmo perfeito. É preciso extrair, arrancar mais tempo do tempo, e mais força de cada segundo conquistado. Através do cálculo infinitesimal, divide-se o tempo até o infinito, submetendo também infinitamente o indivíduo.
Organização das gêneses: a organização do espaço e do tempo leva diretamente à acumulação de  saberes, e também dominação e sujeição. O indivíduo a ser docilizado passa por várias etapas de formação, seu processo é dividido em classes, medido por provas, melhorado por exercícios. Uma série de estágios devem ser ultrapassados até que a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até os mais complexos. O poder disciplinar concentra-se nos detalhes, acumula-se na repetição. Assim o homem “progride”, torna-se útil. A técnica que o funcionário domina é o atestado de sua submissão. O importante é o exercício, a repetição cria o “bom estudante” e o “funcionário exemplar”. Novamente vemos a ascese das práticas religiosas, cuja salvação deriva da dor. “O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca terminou de se completar” (Foucault, Vigiar e Punir).
Composição das forças: todo treinamento converge para um ponto máximo onde a composição de forças gera o máximo de eficiência, uma massa amorfa de indivíduos se torna agora um único corpo maquinal para guerrear, produzir, exibir conhecimento. A soma é maior que as partes individuais, mas a organização é sempre exterior, superior, quase transcendente. O sinal do professor, do supervisor ou do coronel deve ser respeitado e obedecido imediatamente. Brevidade maquinal, moral de obediência. A máquina articulada não permite refletir, o corpo treinado se acopla e reproduz.
O poder produz indivíduos, age na subjetividade e nos corpos: separa, codifica, exercita, posiciona, organiza, acumula, compõe, prescreve. Age na anatomia, mecânica e economia dos corpos. Não surpreende a escola parecer tanto com o quartel. A técnica de guerra é importada ao estado. Mas já não escutamos o barulho ensurdecedor de bombas, tiros, gritos e gemidos de dor; apenas o barulho cinza dos carros, aparelhos eletrônicos e máquinas registradoras acompanhando o silêncio mórbido dos olhares mortos de corpos dóceis.
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