domingo, 27 de abril de 2014

a.vida.na.caderneta

no dia 21 de abril de 2014 meu pai (Emílio José Diello), num golpeio lento e preciso da vida, retirou-se de si... retirou-se da vida física, mas seus versos transversam com tantos versos nas vidas de tanta gente que nem sei contar... muito da grandeza com que atravesso a vida de tantas gentes vem das coisas que com ele desaprendi ao longo da vida... meu pai foi um homem que nos condenou a nossa própria liberdade (e isso não é uma liberdade qualquer)... os referencias com que transpassava nossos viveres emergiam de seus existires silenciosos, de sua forma de não ser um exemplo para ninguém, de seu jeito simples e quieto de cruzar com precisão nossos imaginários... enfim, seu feito foi a simplicidade e seu jeito foi de não dizer por onde ou para onde deveríamos ir... cada um entendeu isso ao seu modo... mas o que é mais importante: mostrou-nos a luta feita de intensidade, precisão, força, perspicácia, sabedoria, calma, paciência, leveza, grandeza e tranquilidade... mostrou-nos a luta dos que vivem inventando a luta no correr dos seus aconteceres... nunca nos mostrou o desenho do que seja certo ou errado, mas nos ensinou, ao seu modo, a ver as coisas como elas são... e por aí cada um aprendeu a fazer o que quis e o que pôde com suas experimentações... com a vida anotada na caderneta e vivida ao compasso dos movimentos inventados e produzidos...
das heranças que meu pai me deixou, as que mais se fazem presentes são a barriga... o olhar transversado com o horizonte... as invencionices da conversa e da contação de causos... a alegria... a desimpedida poesia... a cara marota de quem inventou uma mentira bem do jeito de uma verdade... o desapego com as coisas materiais... a solidariedade... a generosidade... a experiência de bolicheira e moinheira*... a crença de que o fim nunca está próximo... e tantas outras coisas!
quando falo em experiência de bolicheira e moinheira me refiro a um modo de subjetivação... é um jeito de viver e trabalhar que passa por muitos afetos... afetos que meu pai tão bem nos ensinou... feito de uma ética inventada em sua relação com a vida e com o mundo, sempre fez reverberar na vida das gentes os tinires de suas ferramentas e, quando não as tinha, se podia inventava, mas se não podia, reconhecia sua limitação e tocava a vida... em seus fazeres políticos, transitava em vários campos dos existires da comunidade em que vivia e de muitas outras comunidades... então, nessa toada de ser bolicheiro e moinheiro, ensinou-nos a compartilhar as comidas e os saberes...
criei-me ouvindo uma expressão que diz que todo moinheiro seja ladrão e aí olho para a composição financeira e material feita por meu pai e por minha mãe, e vejo que os bens materiais que hoje fazem parte de seus viveres, são praticamente os mesmos de quando começaram a compor juntos suas vidas... e isso não é uma coisa qualquer... o bolicheiro vendia comida, aviação, perfumaria, coisas para a lida no campo, a querosene, a graxa de gado, a banha de porco, a corda, o fumo em corda (e depois veio também o fumo já picado), o chumbo, o chapéu, a pedra canforada, a noz moscada, o lacto purga, o melhoral e o fontol infantil, a terramicina, o bálsamo alemão, o fermento, a cachaça (em trago e em garrafa)... eu ainda seria capaz de reproduzir com precisão o bolicho em que vivi a minha infância... o setor dos chapéus, a farmácia (humana e veterinária), o setor dos alimentos secos, a grande geladeira comercial, as tulhas, o depósito, o balcão por trás do qual ficávamos para atender, a balança, o baleiro... e tantas outras coisas... ah! e os papeis de embrulho (nos quais fiz meus primeiros rabiscos e em que aprendi a calcular)... esses poéticos papeis em que aprendi a fazer anotações para usar depois e que dão o nome a este blog... enfim, o bolicheiro tinha que ter muito tino para prescrever o medicamento correto, para dar uma orientação bem cabida àqueles que lhe consultavam no balcão ou que lhe pediam uma palavrinha em separado, para expressar uma posição ética e política precisa sobre as coisas da vida, da comunidade e do mundo... e, além de tudo, era feito de uma generosidade e de uma solidariedade desenhada pelo desapego, garantindo a comida na casa das gentes, mesmo quando não havia dinheiro em seus bolsos... lembro de meu pai se desdobrando em mil, na negociação dos prazos de pagamento com os distribuidores, para garantir o fornecimento dos suprimentos no bolicho... isso era preciso, pois a caderneta era bastante imprecisa... nem sempre as pessoas tinham o dinheiro na data aprazada e mesmo assim, sempre se dava um jeito para garantir-lhes a boia em casa...
o bolicho já faz tempo que foi desativado, mas o moinho ainda está ativo... moinho de pedra, feito para moer e partilhar o grão, era como que um cerne da existência de meu pai... em seus últimos dias de vida, hospitalizado, em alguns momentos em que esteve "variando" (delirando) em função do agravamento de seu estado de adoecimento físico, fazia comentários e recomendações a quem estava lhe cuidando, com relação às moagens, à farinha, ao moinho, dizendo que não era para deixar faltar farinha para ninguém.
meu pai, em seus pensares e em seus fazeres, era a mais genuína expressão do que seja um político... atuante, vindo do tempo em que oficialmente só havia a arena e o mdb, foi um militante contumaz do mdb e depois do pmdb... no mais, era essencialmente um político... provocador de pensares e de fazeres na comunidade, era um protagonista estimulador de protagonismos... trasversava os seus movimentos com os movimentos de outras gentes... era de fazer acontecer e também era de acontecer... quando necessário, fazia desacontecer ou desacontecia... foi pela mão dele que participei dos primeiros movimentos pela emancipação de bom progresso e de tantos outros movimentos políticos... foi na conversa com ele que desenhei grande parte de meus pensares éticos e políticos (inclusive minha toada anárquica)...
assimassim, meu pai foi um homem que também cometeu erros e que tinha defeitos, mas em sua essência era um homem da vida, feito gente que inventa a vida todo dia... era um conversador... era e é um grande homem cujos afetos atravessam muitos existires e reverberam em muitos viveres... e é desse cerne que é feita a minha vida... uma vida que também atravessa e transversa com muitas outras vidas... taí a grandeza e a grandiosidade da vida das gentes... tá nessa coisa de que nossos sentires, nossos pensares, nossos fazeres podem reverberar na vida de tantas outras gentes que às vezes nem nos conhecem... nessa toada, ainda quero dizer que meu pai era e é um lindo!

* como em tantas outras palavras desajeitadas pelo popular trato da língua portuguesa, utilizo a literária e poética expressão "moinheiro" (às vezes, munheiro), em vez de moeiro.

Um comentário:

  1. Este escrito que atravessa um tempo onde as doenças raramente precisavam de um doutor, pois para a maioria delas havia o fontol, o melhoral, o lacto purga ou o ‘inalante de iatropan, receitado pela minha avó, chega até mim e me traduz. Aquele tempo dos problemas econômicos resolvidos pelo bolicheiro, numa espécie de ‘homeostasia’- palavra que empresto da área médica para referir-me ao equilíbrio-Aquele tempo de pais e filhos envolvidos em atividades que eram de sobre- vivência onde a vivência de cada quem se entralaçava com as vivência de outras gentes.onde as interconexões eram humanas-filosóficas-econômicas-socias. Me vejo também traduzida nesse tempo, e incorporada a um acontecer de vida que instiga a pensar que cada indivíduo não é mais que soma de afetos. Na marcha atropelada do tempo que nos trouxe até a contemporaneidade foram-se reduzindo os espaços onde o homem podia ’ser’, podia sentir-se à vontade para entrar num bolicho ( paralelamente bar, farmácia, supermercado, consultório)e conversar sobre sua dor, sua alegria, seu medo, sua angústia, ou seu pão, saindo Dalí pelo menos com um sorriso nos lábios, a alma lavada e o pão nas mãos. Já não há tempo para isso.
    A generosidade que vinha do desapego não garantia apenas o pão na mesa de muitos, garantia algo mais interessante: saberes generosos. A comadre, a benzedeira, o bolicheiro não detinham o conhecimento no saber acadêmico: era o olhar, o tom de voz, a complacência ou a dureza das palavras e vários outros aspectos que hoje encontramos ‘robotizados’ ao acudir espaços de convivência comum. Hoje os homens são cada vez mais seres isolados, como se não formassem parte de um sistema.
    O afeto como regulador de nossa vida humana extingue-se dando lugar à ‘comprovação científica’. É ritalina regulando agitação de criança, é rivotril fazendo dormir, é fluoxetina para tirar o choro e o nó na garganta, é sertralina para permitir o equilíbrio e por aí vamos. O que nos aproxima da verdade dos fatos hoje é o que está comprovado pela ciência reduzindo nosso regime de saberes à biologia. Não buscamos mais saber o que somos ou o que sentimos, buscamos nomes de doenças que possam ser tratadas.O humano de hoje é apenas um ser fisiológico desconsiderado em sua integridade e complexidade, o humano hoje é um ser tecnológico que sente-se muito mais à vontade atrás de uma tela de computador que cara a cara. Nas crianças de hoje vejo máquinas crescendo integradas às redes sociais, caminhando rumo à uma espécie de ‘coisificação’.Não podemos prescindir da tecnologia, mas talvez possamos pensar numa forma de integração onde nossos filhos possam re-configurar suas potências conhecendo e reconhecendo uma forma de vida onde indivíduo- sociedade- máquina estejam cada qual no seu lugar, onde um estranho e frio aparelho não seja sua maior fonte de calor e de afeto. Onde a história de vida atravesse mais que a história de uma telenovela, resgatar espaços invioláveis onde o mecânico e o tecnológico não tenham acesso. Voltar àquela condição humana da vida na caderneta.

    ResponderExcluir