sábado, 28 de setembro de 2013

hypomnemata 160

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 160, setembro de 2013.
Breves anotações sobre Estado, mercado e cultura.
A ditadura civil-militar instituiu, pela primeira vez no Brasil, uma política cultural. Se, desde a ditadura de Getúlio Vargas, os investimentos estatais na área da cultura eram difusos, em 1975 se estabelece a Política Nacional de Cultura, vinculada ao Ministério de Educação e Cultura, que objetivava fornecer as diretrizes para o incentivo à produção artística.
Além da criação ou reformulação de diversos órgãos, como a Funarte e a Embrafilme, esta política visava promover o financiamento de produções nas áreas de cinema, teatro, dança, música e artes plásticas por meio do repasse de dinheiro público sequestrado de cada um, sob a forma de imposto, e transmutado em verbas do tesouro nacional.
Determinou-se a necessidade do Estado de “estimular as concorrências qualitativas entre fontes de produção”.
A qualidade das produções se vincularia à precaução do que é denominado como “culto à novidade”, reiterando-se, com isso, a necessidade da censura prévia, executada por meio da Lei de Censura a Diversões Públicas de 1946.
Em meio ao milagre econômico, articulou-se a necessidade de criação de um mercado de cultura ajustado à política de segurança nacional, realizando o programa de instauração autoritária de uma racionalidade neoliberal.
Com a redemocratização, em 1985, foi criado o Ministério da Cultura. Em 1986, promulgou-se a Lei Sarney de Incentivo à cultura, primeira política de incentivo fiscal neste âmbito, substituída posteriormente, durante o governo Collor, pela Lei Rouanet, de 1991.
Em vigor até hoje, esta lei possibilita às empresas deduzir do pagamento de impostos o patrocínio à cultura.
Se durante a ditadura civil-militar estava em jogo a formação de um mercado, na democracia se explicita o vínculo entre Estado e empresas nesta área de investimento.
Em 2007, o então ministro da cultura Gilberto Gil propôs a implementação de um Plano Nacional de Cultura (PNC), que apontou novas diretrizes e estratégias de ação do Estado. Tendo como pressuposto a corresponsabilidade entre poder estatal e sociedade civil, ele foi elaborado através de seminários e encontros públicos tendo em vista uma “gestão pública e participativa” das produções culturais e artísticas.
As políticas compreendidas pelo PNC dizem respeito tanto ao incentivo fiscal, onde o Estado serve como intermediário entre empresa e artista, quanto ao fomento, em que o repasse de verbas do Fundo Nacional de Cultura é feito de forma direta.
Estado e mercado não estão separados. E não existe liberal, nem autoritário, que abra mão do Estado.
Fomentos, alternativas e empresários de si
Depois de décadas de reivindicações pelo comprometimento do Estado no financiamento à cultura, hoje os próprios artistas são convocados a participar na elaboração das políticas de fomento.
Os editais compõem um fluxo ininterrupto: sempre há um edital disponível para inscrição de projetos vinculados a temáticas variadas nos quais se pode propor espetáculos teatrais, performances, gravação de discos, publicação de livros, turnês, jam sessions, aulas de dança, exposições, ocupações, seminários, cursos, encontros, ações sociais, desfiles de moda, etc..
A noção de cultura, no interior das políticas de Estado, é cada vez mais elástica. Ela já não se restringe às produções artísticas, incluindo ano a ano novas categorias.
Hoje, interessa “ampliar a participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico sustentável”. É preciso que cada cidadão, além de produtor, se torne consumidor de cultura.
Se, por meio da Lei Rouanet, o investimento por parte dos empresários se dá preferencialmente sobre produções de grande abrangência e impacto comercial, as políticas de fomento possibilitam também o financiamento de ações locais voltadas a públicos mais reduzidos.
Não só o Estado, mas também empresas de capital privado promovem uma série de editais de financiamento. Há também as ferramentas colaborativas de financiamento online, o crowdfunding – o atual financiamento coletivo por intermédio da junção de múltiplas fontes, ou o eufemismo in english para uma das denominações de valor agregado capitalista para um produto.
Entre financiamentos estatais, empresariais, público-privados ou alternativos, há espaço para todos. Desde que o projeto responda aos interesses do proponente do edital ou consiga um número mínimo de seguidores dispostos a custeá-lo.
O que importa é que se produza cada vez mais, ocupando e entretendo tanto o público quanto os propositores de projetos.
Essas vias de financiamento apresentam lógicas similares e funcionamento complementar: submete-se uma proposta, contendo as devidas contrapartidas e inovações adequadas a cada caso. É possível se candidatar a uma ou outra destas modalidades, a depender dos interesses do propositor ou de suas necessidades financeiras.
Este trânsito permite que a produção seja m o d u l á v e l, contínua e inofensiva.
Se os artistas não dependem mais da indústria cultural, é preciso que se tornem empreendedores de si, aptos a formular projetos que articulem suas propostas aos interesses dos possíveis financiadores.
Se não está mais em jogo apenas a produção artística voltada para uma elite cultural, interessa a universalização do acesso à cultura como a garantia e condicionalidade regulamentar de cidadania.
A cultura funciona hoje como uma importante via de fortalecimento do Estado. É uma prioridade, articulada com a segurança, na agenda de ações voltadas para os denominados ambientes degradadospopulações vulneráveis.
pacificação e diversão
Nas favelas do Rio de Janeiro o que não falta é entretenimento e diversão patrocinados por parceiros da atual política de pacificação.
Todos os dias há um evento para ocupar, em especial, crianças e jovens. Afinal, agora é necessário atender à demanda de uma nova parcela consumidora que foi ampliada com a pacificação, e que se articula aos investimentos políticos, econômicos, sociais, culturais derivados dos empreendimentos voltados ao protagonismo e ativismo juvenil.
Os moradores ocupam seu tempo, investem em seu capital humano e fortalecem seu vínculo com a comunidade; os turistas – dos gringos às patricinhas da zona sul – podem entreter-se com a criatividade e a alegria desse lugar exótico, e depois voltar para casa.
Para que cada perfil encontre o programa perfeito, um jornal de grande circulação oferece um Guia Mensal com as melhores opções de lazer nas favelas “pacificadas”.
Passeios turísticos, festinhas badaladas, shows ecléticos – do funk à música clássica (inclusive da bandinha da polícia) –, exposições, sessões de cinema 3D, peças de teatro, espetáculos de dança, circo, colônia de férias, recreações, oficinas de artesanato, circuitos de mountain bike e festinha de aniversário da UPP. Essas são algumas “dicas culturais e de entretenimento” do Guia.
O presidente de uma das associações de moradores diz que este guia proporciona ao leitor a oportunidade de conhecer o lado mais bonito do que nomeia como “comunidades pulsantes”, isto é, sua cultura.
Entre esse e aquele entretenimento, a FLUPP (Feira Literária Internacional das UPPs) leva às favelas uma variedade de gente famosa e descolada para falar sobre literatura. Uma espécie de FLIP para quem não vai à Paraty.
A Feira procura formar novos leitores e autores a partir de encontros que acontecem previamente ao evento oficial, compondo a sessão que recebe o nome de FLUPP Pensa.
Seu objetivo é aproximar população e polícia, lembrando os policiais que é preciso abandonar o velho modelo de tratar favelados para passar a reconhecer a humanidade e complexidade de tal espaço.
Quem levará a questão à Academia da Polícia Militar será um conhecido cientista político, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Sobre o que falará? A respeito do processo civilizatório que diz estar chegando às favelas. De academia em academia, fortalece-se a autoridade do Estado.
Esses entretenimentos compõem políticas sociais governamentais, privadas ou ambas – as chamadas parcerias público-privadas.
Funcionam a fim de estabelecer certa aproximação entre Estado e população, de maneira que este vínculo alimente a crença na solução de problemas via instituições e intervenções, ditas pontuais e ambientais, do Estado.
A variedade de programas atrativos levados às favelas faz com que a população indesejada circule menos no asfalto. E grande parte da população pobre se satisfaz.
A mediocridade os faz crer que todo pobre tem seu lugar.
Ao combinar-se diversão, integração e polícia, mina-se a revolta e compõe-se a articulação da velha prevenção geral, que sempre se inicia por crianças e jovens, voltada agora não para o que capitalismo, Estado, proprietários e comunidades chamaram um dia de ‘meio marginal’, mas para o que passam a denominar de ambientes vulneráveis, atravessados pelo carcomido conceito de crime do qual nenhum Estado, nenhum proprietário abre mão.
Está em jogo formar jovens cordatos e comandados: protagonistas governáveis.
O que antes era considerado como manifestações marginais, como o rap e o funk, torna-se capitalizável pelo mercado para ser consumido dentro e fora da favela. Dissemina-se a cultura do gueto – onde, por meio da identidade, a raiva se transforma em amor pela chamada comunidade.
Cada coisinha dessas, que entretém, ocupa e diverte, fortalece a política de pacificação, justificada também pela responsabilidade em levar lazer para os morros.
Enquanto isso, no asfalto da cidade maravilhosa, grandes festivais e variados eventos para outro público, os mesmos assujeitados.
no rock in rio
A realização de grandes festivais, antes promovidos por empresas privadas, hoje se mostra cada vez mais como um interesse também estatal. Trata-se de um eficiente meio de publicidade – tanto para empresários quanto para governos –, além de uma forma de movimentar a economia.
A articulação entre Estado e empresas, e a própria constituição do Estado como uma empresa intensifica a produção desse tipo de evento no Brasil.
Nessa onda, ocorreu neste mês a quinta edição da versão repaginada do Rock in Rio, que de festival local tornou-se uma franquia planetária de entretenimento.
Para além dos patrocínios milionários e dos ingressos salgados, a marca-festival conseguiu a captação de R$8,8 milhões em dedução de impostos via Lei Rouanet.
Em quatro horas, os ingressos foram esgotados com uma média de 1.200 compras por minuto, atraindo milhares de pessoas sedentas por consumir as atrações que figuram – ou um dia figuraram – nas paradas de sucesso do Brasil e do mundo. E postar tudo no facebookinstagram e similares, em tempo real.
Dentre suas atrações principais, o mega evento trouxe a diva texana Beyoncé.
Em sua perfomance espetacular, a cantora trocou de figurino diversas vezes, montou e desmontou cenários e exibiu, ao longo do show, trechos de um vídeo produzido e protagonizado por ela.
No vídeo, Mrs. Carter, como a cantora gosta de ser chamada de modo a lembrar de seu maridão, o bem sucedido rapper Jay-Z (Mr. Shawn Corey Carter), interpreta a si mesma em sua ascensão de jovem sofrida e desmotivada à rainha sedutora e autoconfiante.
Beyoncé desponta em meio ao pop como figura feminina empoderada. Ela vende esse empoderamento com hits como Runthe world (girls) no qual canta: “Quem comanda o mundo? Garotas!” e o associa a um poder de sedução. Algo não muito distante da “buceta é o poder” das funkeiras cariocas do proibidão.
No entanto, Beyoncé comanda a ala das bitches de família. Produzida em meio ao machismo do hip hop e à ostentação da sensualidade aos moldes machistas das cantoras pop estadunidenses, vende uma imagem sensual e provocativa, mas a qual não abre mão de uma conduta sexual muito bem regrada e socialmente aceita.
Casada, fiel e poderosa ela canta, em um de seus maiores hits Single ladies (put a ringon it), “Se você gostava, então deveria ter colocado uma aliança”.
Afeita às causas humanitárias, Mrs. Carter se diz realizada ao final do vídeo, exibindo imagens suas em missões na África e entre refugiados.
No ano passado, Beyoncé causou polêmica ao vender um show privé a Mutasim-Billah, filho do ditador libanês Muammar Kadafi, por cerca 1,2 milhão de libras. Diante da pressão da imprensa e de alguns de seus fãs, doou o dinheiro para o Haiti.
Adepta à causa das mulheres, Beyoncé se calou diante da prisão das integrantes da Pussy Riot – acontecimento que causou furor entre artistas ao redor do planeta.
Ou seja: a benevolência também faz parte do negócio gerenciado por artistas e seus empresários, preocupados com a consolidação de sua marca.
arruinando mercado e Estado
A banda punk Pussy Riot com seus concertos punks em lugares “ilegais” – públicos e privados – recusa a autoridade do Estado e as investidas da indústria fonográfica e seus shows espetaculares.
Ninguém paga para ver um show das Pussy Riots. Suas músicas estão todas disponíveis na internet. Tudo é pensado e feito por elas, sem financiamentos, patrocínios, empresários... sem negócios!
O uso das ruas russas como lugar para o fazer artístico não é algo novo. Antes das pussies, os integrantes do grupo Voina (ao qual também foram associadas algumas integrantes da Pussy Riot) já praticavam uma ação anarquista artística de rua.
O Voina atacou museus, galerias e exposições de arte. Pichou um pau enorme em uma ponte, em São Petesburgo, ao lado da rua dos escritórios da KGB. Virou uma viatura da polícia para pegar uma bola, chutada por um menino para debaixo do carro. Cantou um punk rock, dentro do tribunal, durante um julgamento em Moscou.
Integrantes da Pussy Riot e do Voina são alvos da polícia russa e odiados pela parte boa da população do país. Alguns deles estão presos, outros respondem a processos na justiça. Uma delas iniciou, em 23 de setembro, uma greve de fome para expor o trabalho forçado ao qual foi submetido junto das internas, na Colônia Penal nº 14, utilizadas na produção de fardas para o exército russo.
No entanto, continuam a viver sua arte livre, contra o Estado e contra o mercado.
Desde a década de 1980, o movimento punk e algumas de suas vertentes inventaram formas de resistir ao Estado e ao mercado.
Deste tanto inventado pelos punks, uma parte acabou servindo ao Estado e ao mercado a partir de redimensionamentos menos combativos e mais afeitos a negociações, como algumas bandas que figuraram no Rock in Rio.
Hoje, há punks tocando em eventos organizados e financiados pelo Estado. Há punks envolvidos com ONGs, coletivos de alternativos empreendedores e uma ou outra “empresa do bem”.
Mas há punks que escapam tanto à nostalgia das décadas passadas quanto à independência alternativa.
Não só com o punk, mas outras práticas de associações livres produzem e divulgam fanzines, revistas, shows, gravações musicais, vídeos de forma autogestionária. A produção estética sempre foi uma prática importante para dar forma à combatividade anarquista.
Diante da convocação à criatividade para se produzir inovações que ocupem e entretenham a população, aperfeiçoem e movimentem o mercado e fortaleçam o Estado, libertários experimentam, pelo planeta, novas práticas que arruínam o Estado e o capitalismo, por meio de invenções livres.

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