segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Das máquinas de consolo

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Ela dadeira, dando sempre até a morte. A cuidadeira, carinhosa, trepadeira. Já a programação do macho é outra: ele não se move muito
Por Fabiane M. Borges | Imagem: Gustaf Klimt, Três idades de mulher (1905)
Ela precisava de carinho, mas ele continuava com seu auto-centramento habitual, falando das suas misérias, das injustiças da vida, das esperanças remotas mas ainda existentes — que lhe aqueciam nos dias mais frios. E aquele dia era um dos mais frios de São Paulo. Ela se retorcia toda, se enroscava pela mesa, pelas patas da mesa, colocava a bunda mais próxima ainda da ponta da cadeira, para poder fazer carinho naquele cara. Ela queria que ele fizesse aquele gesto, porque ela estava carente, desolada, queria que ele se retorcesse e passasse delicadamente a mão no meio dos seus olhos, entre suas sobrancelhas, que insistisse nesse pequeno gesto até que aquela coisa ruim dentro dela se dissipasse, mas isso não seria possível sem um pedido explícito, que poderia vir talvez com algum tom de reclamação, seguido de um mal estar, que originaria uma briga e causaria uma sensação de frustração completa e cansaço. Então ela o acariciava sem pedir nada em troca.
Eram os gestos de amor programados nela desde criancinha. Ela foi educada para acariciar seu homem, abraçá-lo, lambê-lo, lhe fazer cafuné, passar a mão na sua testa, nos seus lábios, nas suas armaduras. Ela sabe o poder que tem quando lhe esfrega as têmporas e consola sua dor. Ela fica convocando com a mão aquele lugar onde ele se entrega, reconhece coisas que não conseguiria reconhecer em um ambiente mais hostil, mais gelado. Esse lugar poderia ser o restaurante, onde todo mundo senta e come, mas as mãos milagrosas das cuidadeiras são capazes de transformar qualquer lugar em outro lugar mais afável.
A cena clássica da programação de gênero. A mulher consoladora, ouvinte, companheira, a que dá carinho, a que se dobra pra se encaixar na posição do macho, da que destrambelha o caminhar, o sentar na cadeira, modifica suas posturas corporais para encontrar a face, o peito, o pé do seu macho, que além de ter nascido para ser amado, precisa mais que tudo, de consolo ininterrupto, e não foi educado pelas mídias, pelo cinema, pela literatura, pela História, pela família a ser recíproco nisso. Ela dadeira, dando sempre até a morte. A cuidadeira, carinhosa, trepadeira, a máquina de consolo.
A programação do macho é outra. Estão acostumados com uma cultura geral que lhes diz que precisam de cuidados especiais porque são eles que sofrem, eles que habitam os domínios do demasiado, são eles que chegam da guerra, eles chegam da aventura, eles chegam das confusões do mundo, e ali está a figura da mãe, da avó, da mulher, da parceira, que vai lhe abrir os braços e acariciar. Ele não se move muito, não se destrambelha tanto, não se atira em contorcionismo para alcançar o rosto dela, o pulso dela, o pescoço dela, a sobrancelha dela de forma gratuita. Esses gestos só são produzidos na intimidade do lar, da cama, do sexo. Daí se sobrepõe nesse desejo toda uma outra produção semiótica, comportamental, que a industria pornográfica sabe bem como conduzir. O macho na cama, do pau duro e grande, o comedor, fodedor, o que tem os buracos do seu corpo parcialmente fechados, o que não pode fazer certos gestos na cama, pois isso o faria bicha, brocha ou pior que tudo, mulherzinha.
Ela continua precisando de carinho enquanto pensa tudo isso, mas já se consola sozinha, não vai pedir mais, não vai reclamar mais, não vai colocar a mão dele em sua nuca e torcer os dedos dele para lhe ensinar a acariciar, imaginando que se soltar a mão, ele vai continuar lhe fazendo carinho por mais algum tempo, sem parar. Ela já sabe que não vai ter isso nem do pai, nem do filho, nem do marido, nem do amante, nem do irmão. A máquina de produção de cuidado caiu para lado do gênero dela, ela tem que fazer nos outros os carinhos que gostaria ela própria de receber.
O cuidado, o carinho, a carícia poderiam ser tratados como elemento fundamental da sociedade. Os trabalhos voltados para o cuidado deveriam ser os mais valorizados; mas ao contrário disso o que vemos é um consolo químico, farmacêutico, cada vez mais atrelado ao processo industrial, que se afasta radicalmente do chazinho carinhoso das mãos prontas para acarinhar. O carinho perde para o ansiolítico, o consolo é um comprimido, o cuidado se compra nas salas de massagem. E no casal hétero-normal, é ela que tá lá, bunda estreita na cadeira, lhe dando a carícia.
Saí do restaurante pensando que os homens poderiam aprender a ser mais carinhosos, fazer carinho, acariciar, consolar e cuidar.

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