terça-feira, 18 de junho de 2013

hypomnemata 156

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 156, maio de 2013.
 

Idade penal: medidas, medições e um tom fora da métrica pequena questão menor
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) emergiu sob a égide da formação do futuro cidadão, e lá se vão 23 anos.
O ECA trouxe uma figura que não existia até então, a do advogado da criança e do adolescente.
Afirmava-se que defender uma criança ou jovem é diferente de defender um adulto.
Entretanto, os jovens, na maioria pretos e quase pretos, pobres, seletivamente enredados pelo processo de apuração de ato-infracional, submetidos a alguma medida e representados por advogados dativos sabem que:
O barato é louco, o processo é lento e o advogado é do Estado!
Um filósofo combativo, certa vez, ao situar as revoltas na prisão que atravessaram os anos 1970, e suas lutas contra ela, relembrava as palavras diante do tribunal de um prisioneiro combativo, que não pretendia reformar o cárcere nem a justiça:
eu não quero um advogado que venha aqui me defender, eu quero um advogado que venha aqui gritar, xingar.
Afirmar a vida livre não cabe em protocolos formais ou informais da boa ou má conduta esperada, tampouco, na representação da vontade, do desejar.
Mas, quem, em algum instante por menor que fosse, interessou-se em perguntar a estes meninos que são tragados pelo sistema penal, mesmo sob o ECA, o que eles querem?
Esta é uma pergunta que na vida não tem medida, nem espaço de medições.

medidas e medições
Não é de hoje que volta à baila a redução da idade penal no país. Alertamos anteriormente em hypomnemata especial novembro de 2003http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=52 ; hypomnemata 53 http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=53 ;hypomnemata 89 http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=102 ; hypomnemata 155 http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=186 .
Há alguns anos, muitos apregoam a necessidade da psiquiatria, em especial a psiquiatria forense, para ampliar seu escopo. Hoje em dia isso está sendo chamado de novo paradigma: neurociência forense.
A questão se desloca para a fomentação de arsenais que conjuguem medidas e medições neuropsíquicas de crianças e jovens, pela conexão entre uma convenção acerca do amadurecimento cerebral e da chamada conduta responsável, subsidiando novas referências de julgamento para os processos nos tribunais.
Neste duplo inserem-se de forma sucinta, dentre outras, as relações:
          Mente e corpo
          Genética e ambiente
          Livre arbítrio e determinismo
Na psiquiatria estas relações não são novas, entretanto é pela construção de verdade do duplo configurado como amadurecimento cerebral e conduta responsável que se renova a importância firmada pela psiquiatria a respeito do córtex pré-frontal.
Pelas neurociências, imprime-se a este, o estatuto de novo órgão da moral como o responsável pelo controle da impulsividade.
São os estudos atuais sobre as variações de grau de amadurecimento do cérebro respaldando os argumentos a favor do rebaixamento da idade penal.
É na travessia dos escrutínios das medições cerebrais que se encontra a relação inversa do argumento abolicionista “cada caso é um caso”, para impor as medições de déficits individualizados administrados de maneira universal pelo que é inerente à linguagem penal.
Reforçam-se assim os argumentos em torno da medida de segurança que, paradoxalmente, serviu de balão de ensaio recente para a criação de novas medidas, novas unidades e subunidades de internação.
Como o trancafiamento de jovens em unidades de internação especial, com a criação em 2007, no interior da Fundação Casa, da Unidade Especial de Saúde inaugurada com um único interno: o Champinha. (Ver flecheira libertária 13 http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira13.pdf )
Cresce cada vez mais no país a avalanche de novos testes, novas escalas, novos exames, novas medições em crianças e jovens considerados infratores, principalmente nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, que sediaram os projetos pilotos iniciais para sua futura disseminação. (Ver nota reproduzida e divulgada no ágora do site do Nu-Sol em 2008, caveirão psiquiátrico avança sobre o cérebro da moçada http://www.nu-sol.org/agora/agendanota.php?idAgenda=111) 
Amplia-se hoje em jovens considerados infratores a utilização das tomografias e ressonâncias cerebrais magnéticas, acopladas à psiquiatria e neurociências, à chamada Escala Hare, também denominada de PVL-YV e PCL-R, articulando psicologia, psiquiatria e neurociências. (Verhypomnemata 79 http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=92 )
A escala Hare foi transcrita para o país por meio de tese defendida em 2003 e, mesmo sob o repúdio de vários setores regionais de psicólogos, seu uso foi subscrito pelo Conselho Federal de Psicologia.
Ela advém dos estudos realizados desde a década de 1970 por Robert Hare, especialista em psicopatologia de crianças e jovens, e volta-se às medições para aferir o grau de psicopatia em uma pessoa e a capacidade de reincidir em condutas desfavoráveis.
Em visita recente ao país, Robert Hare, declarou em uma entrevista que suas metas com esta escala são modestas, funcionando como um redutor de danos.
Por meio desta escala se redimensiona o que antes era atribuído à construção da esquizofrenia, como indiferença e incapacidade de afetividade, para variações de grau em tendências leves, moderadas e severas de psicopatia.
Objetiva-se, ainda, por meio dela projetar capacidade de reincidência criminal e, simultaneamente, adequar as construções do portador de transtorno de personalidade e portador de conduta antissocial pelo ápice psiquiátrico da construção da personalidade psicopata.
Tenta-se equacionar entre estas construções a validação de seu próprio estatuto de verdade.
As aferições não param.
E quase ninguém diz nada.
Ninguém mais entra nos cárceres para jovens no país.
Ninguém? Não!
As prisões para jovens agora servem como profícuos laboratórios para entrada seletiva e inserção de especialistas usarem os jovens que lá se encontram a fim de validar a consistência de novas medições cerebrais e de conduta responsável.
Estes pesquisadores respondem às formalidades burocráticas dos protocolos éticos de responsabilidade em pesquisa científica com utilização de seres vivos.
As aferições não param.
Foi no estado de São Paulo, em 2011, que um importante psiquiatra, um dos chefes responsáveis pelos laudos psiquiátricos emitidos sobre os jovens na Fundação Casa, obteve seu título de doutorado, dispondo dos jovens lá internados para testar a consistência definitiva da escala Hare no país.
Durante o estudo, ao uso da escala Hare foi conjugada a utilização de aparelho subjacente conectado aos corpos dos jovens que media o suor de suas mãos a cada questão apresentada.
Conclusão da pesquisa: a escala Hare tem consistência, mas não só, “sua tradução brasileira demonstrou consistência para prever a reincidência criminal na amostra estudada”.
As inquirições do julgamento moral se perpetuam e os jovens permanecem internados.
Eles são as cobaias vivas preferenciais no recôndito inacessível da prisão para jovens.
Eles servem de aquecimento e forja para a manutenção e distensão do tribunal da verdade que jamais se apartará do castigo. 

fora da métrica, uma questão menor
Diante da discussão sobre a redução da idade penal brota uma questão direta e simples:
Para que serve isso que chamam de idade penal?
Não será, também, sob ela que repousa a lógica da linguagem que tece o ponto similar de encontro entre o que procuram distinguir como Estado Social, Estado Penal e Estado Policial?
Não será, também, sob a aceitação naturalizada da cultura do castigo com sua linguagem recíproca, que a redução da idade penal não deixará de ser apenas um de seus pequenos grandes quinhões?
Não será, também, por ela que se explicita a confluência de fortalecimento entre o Estado que jamais deixará de ser penal, seja qual for sua conformação, a sociedade civil organizada e participativa por sólidas comunidades reativas e se corrobora o atual cidadão-polícia, simultaneamente, ressentido e colaborativo?
Não será, também, sob ela que subsistem os campos de negociação, acordos e acertos em torno das reformas e renovações de velhas palavras que refazem a lógica das medidas, do castigo e dos tribunais?
Como não experimentar um breve e minúsculo tom fora?
A ontologia do crime não existe, então, para que serve isto que chamam de idade penal?
Arrefecer diante dos bramidos por ela é participar, consentir e validar os lucrativos negócios político-criminais aconchegados no amplo escopo do mercado das comoções e emoções.
E é de seu odor e clamor, também, que a instrumentalização psiquiátrica da linguagem, a racionalidade neoliberal e uma educação boçal e autoritária se nutrem e se abastecem.
Reduzir o quê? São as mesmas crianças e os mesmos jovens picados, triturados, surrados, torturados, amansados, domados, dopados, domesticados, violentados, monitorados, mutilados, escaneados, que são e serão virados do avesso em nome do direito punitivo reformado, de sua justiça e da covardia de cada um que avança estúpido ou cuidadoso sobre eles.
E que ninguém se faça de oitiva informal, a grande orelha, para reciclar e oxigenar seu discurso apodrecido porque cada vez que se interna provisoriamente um jovem é a proteção desta estupidez do governo da moral e do castigo que defendem.
Estejam com 18 anos, mais ou menos, segundo a lei, eles permanecerão enredados nos mesmos procedimentos seletivos, científicos, morais, torturantes, mesquinhos e sorrateiros que governam a educação pelo castigo e as instituições de reeducação aos chamados infratores.
Sejamos mais simples e corajosos e sigamos adiante na luta pela abolição da prisão para jovens.

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