quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A POESIA VIVA

pessoas, o Folhetim Republicano, em sua quarta edição, já saiu do forno com quatro escritos:
Poesia Viva - p. 3/ Educação e Emancipação - p. 5/ Manifesto da Costa Rica - p. 7/ Lenço no pescoço - p. 9... aqui.
o Poesia Viva é uma escrevinhadura minha e está na página 3.
logologo coloco aqui o link da publicação oficial, que poderá ser encontrada, também no sítio do Instituto Missioneiro de Teologia.
aí vai o escrito...
A POESIA VIVA
Foucault, brincando ou não, afirmou que um dia o século ainda haveria de ser deleuziano. Disse isso, não antevendo a cronificação dum novo pensamento dominante –até porque, isso contrariaria o próprio pensamento de Deleuze-, mas sim, antevendo a perspectiva da ruptura com o ideário consolidado no imaginário das gentes, provocando uma certa liberação ao viver inventivo, ao viver poético.
O pensamento dominante e ortodoxo criou e sustentou modos de vida e campos teóricos esterilizantes. Em nossa formação cultural, aprendemos a cultivar misérias, dor, desamor, raiva, ódio, guerra; aprendemos, também, a cultivar o ideal do amor romântico que exclui todas essas coisas (entenda-se aqui, o amor romântico enquanto afeto geral e não endereçado a um campo específico); assim, aprendemos que só há um ou outro campo e que os dois se excluem... mas a vida, a vida corrente é feita não dessa condição binária e dicotômica, e sim, de transversas situações e condições. A vida inclui as belezas e também as feiezas, as consolidações e as rupturas, as situações as mais diversas, as mais transversas... enfim, é feita de campos de encontro, de desencontro, de entrecruzamentos, de descruzamentos... é feita de descontinuidades... e é nessas condições que outras linhas se criam e se recriam.
Quando olhamos para a vida enquanto invenção poética, a vemos como a condição vital que anima todas as nossas lidas do cotidiano. Não se trata dos versos modulados na exatidão do encontro da (mili)métrica rima das palavras ditas e das palavras escritas; não se trata dos versos impressos e tingidos nos pergaminhos guardados em nossas bibliotecas. Falo do verso que se modula como interioridade, superfície e face de nosso ser e de nosso existir, e que expressa aquilo que criamos em nossos viveres (tanto nos viveres na vida mais recolhida e reservada, quanto nos viveres públicos)... falo do verso enquanto expressão da singularidade.
O viver inventivo, feito da poesia viva (não como condição soberana e profunda do viver e do fazer-se sujeito, mas como modo de vida aberto, fluído e intempestivo), nos movimenta a compor a vida a partir duma ética própria ao sujeito, com suas reentrâncias, com suas dobras, com suas livres escolhas, com suas idealizações, com suas imperfeições, com seus quereres, com seus desejos mais profundos ou os mais superficiais, enfim, a ética, diferente da moral, é feita das escolhas da pessoa (sejam escolhas feitas a partir de imposições, sejam escolhas feitas a partir do seu livre fluir); trata-se de olhamos para nossos modos de vida como escolhas éticas e inventivas, desenhadas por um fazer político... não há escape, pois toda a nossa atuação constitui-se num fazer político, visto que estamos irremediavelmente incluídos nos aconteceres da polis –seja com nossos fazeres e pensares, seja com nossos não-fazeres ou desfazeres e não-pensares-.
Falo aqui, dos viveres, dos fazeres e dos quereres que não cabem no Lattes... de existires compostos de muitas vidas (e não somente da nossa e de uma única vida)... falo aqui, dos nossos fazeres enquanto gente que vive e que trabalha... falo aqui, de compor a vida enquanto poesia viva... falo aqui, de aprender a olhar as gentes com que trabalhamos, como se entidades fossem, dirigindo-lhes um delicado olhar feito de esquizo-lucidez, que nos permita cartografar/ajudar a cartografar as densidades, as levezas e as intensidades dos viveres que não são somente do outro, mas também são nossos.
É preciso aprender a cartografar... é preciso aprender a olhar a vida para além do pensamento acadêmico clássico... é preciso aprender a escrever a escrita das vidas... é preciso aprender a escrever a escrita composta na poesia das vidas... é preciso aprender a olhar os versos com que transversamos nossos versos... é preciso boniteza no olhar e no pensar... é preciso não querer impor às gentes com que fazemos nossas lidas cotidianas, uma moldura acadêmica à qual teriam que se ajustar para podermos lhes ver... é preciso coragem para ver e sentir a vida do outro (e por conseqüência, a nossa)... é preciso grandeza para reconhecer que nossas andanças acadêmicas e teóricas nos servem para alumiar nossa ignorância e para nos ensinar a inventar ferramentas e dispositivos que nos ajudem a andar com as gentes e compor seus existires e suas andanças.
Costumamos escrever pouco sobre os vastos territórios das existências que transitam nos campos das políticas públicas ou nos campos mais privados... escrevemos pouco sobre nossas experimentações, sobre nossos pensares e nossos fazeres... escrevemos pouco sobre as vidas com que transversamos nossos versos... cartografamos muito pouco nossas andanças e as daqueles com que andamos... não nos é dado olhar para a escrita de nossos fazeres que fica inscrita na vida das gentes... tai a escrita de que mais gosto... a escrita da vida... as formas com que a vida se escreve dentro e fora de cada um... isso que chamo de versos que transversam com outros versos.
Os caminhos e descaminhos traçados na geografia das ruas e na geografia das vidas das gentes, não têm linhas fixas... nos mostram as andanças lá por dentro das entranhas dos existires e dos viveres das gentes tortas que não cabem nas exatidões da ciência, da academia ou do olhar com que muitos olham para a vida dos viventes... é com um olhar maiúsculo dirigido às vidas minúsculas, que tornamos maiúsculos esses existires. É preciso ampliar, em vez de reduzir ou fixar. É preciso aprender a desconhecer, para se permitir olhar para além das molduras e quiçá, um dia, vir a conhecer.
Foucault nos mostra muito bem esse pensar e esse fazer visceral, quando da exumação dos arquivos do internamento do Hospital Geral e da Bastilha, na França, fuçando nas entranhas dos prontuários e das vidas abnegadas à sólida entidade chamada loucura (e ele faz isso, na perspectiva de mostrar a vida vista e vivida fora do conceito, fora da moldura; em seu escrito A Vida dos Homens Infames, entoa que: “Este não é um livro de história. A escolha que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção, o riso, a surpresa, um certo assombro ou qualquer outro sentimento, do qual teria dificuldade, talvez, em justificar a intensidade, agora que o primeiro momento da descoberta passou.// É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos (...) nesses textos, a condensação das coisas ditas, que não se sabe se a intensidade que os atravessa deve-se mais ao clamor das palavras ou à violência dos fatos que neles se encontram. Vidas singulares, tornadas, por não sei quais acasos, estranhos poemas, eis o que eu quis juntar em uma espécie de herbário (...). Se eu o fiz então é sem dúvida por causa dessa vibração que sinto ainda hoje, quando me ocorre encontrar essas vidas ínfimas que se tornaram cinzas nas poucas frases que as abateram (...). Não é uma compilação de retratos (...): são armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas cujas palavras foram os instrumentos. Vidas reais foram ‘desempenhadas’ nestas poucas frases; não quero dizer com isso que elas ali foram figuradas, mas que, de fato, sua liberdade, sua infelicidade, com frequência sua morte, em todo caso seu destino foram, ali, ao menos em parte, decididos. Esses discursos realmente atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras (...). Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro lugar”1.
A poesia viva é como lamber as palavras (no pensar de Manoel de Barros)... é como fornicar com o pensamento... copular com as existências ... procriar com os existires... a poesia viva é aquilo que inventamos sem saber que estamos inventando... é aquilo que se sente nas vísceras... é o verso que passa por dentro de cada um e dos outros... não se faz poesia viva sozinho... é sempre com o outro, seja o o outro enquanto presença física, seja o outro enquanto presença imaginária!
Taí a vida que não cabe no Lattes e nem nas gramáticas. Taí a vida cujo registro encontramos nos existires de cada um e em suas intensidades ... é nesses transversamentos sem emolduramentos, que vemos e sentimos a visceralidade que é a vida corrente de quem não subtrai da existência nem o mais duro, nem o mais difícil, nem o mais dorido... remexe no interior de suas dobras...... pharresia, incorpora a coragem da verdade como a espinha do seu dorso... verdade da vida nua, vida feita poesia que dilacera suavidades, vida cortante, vida do jeito que ela é. Imprecisa. Poética. Descompassada. Desemparelhada. É a vida que transborda.

Maria Luiza Diello – Venho dos descampados da existência, feito cheios de precisões para serem desfeitas; pescadora, bolicheira, moinheira, mulher-da-vida, conversadeira, inventadeira, poeteira, escrevinhadeira e curiosa (o que provoca pesquisamentos por causa do pouco conhecimento), no mais, Psicóloga, Especialista em Ciência Política, Mestre em Filosofia, Trabalhadora Pública e, também, arredo o banco pra trabalhar num canto não tão público, com as gentes que se recolhem um pouco ao conversatório (que a maioria chama de consultório).

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