quarta-feira, 16 de julho de 2014

tramando versos, compondo filhos!

esta é uma carta feita das intencionalidades dos afetos... uma carta para compor filhos... neste tempo em que eu e minha companheira vivemos a invenção da maternagem e experienciamos as mais diversas (des)aprendizagens para aprender sempre outras coisas... neste tempo, aprendemos sempre outras coisas e outros afetos... vivemos uma das coisas mais lindas e grandiosas vendo os filhos se fazendo transversar com nossos quereres e nossos existires e, assim, compondo suas vidas... cada um compondo ao seu jeito, no seu tranco, na sua intensidade e na sua capacidade... falo de filhos, porque já não temos somente filhas... eram três meninas -uma mais intensa do que a outra-... agora mais uma menina e um menino nos aquecem as entranhas afetivas... podem nascer a qualquer momento... 

Cruz Alta, 14 de Julho de 2014

À Morada da Poesia
Vara da invenção e da Criação

Peço licença, para além das liturgias, (...), para dar a compor a poesia que nos inventa enquanto viventes:

Venho do campo das escritas e da contação de histórias, então, para dizer da vida, invento palavras e desenho afetos... para adentrar a (...) questão da adoção de nossos filhos, escolho dizer um pouco de mim e das vidas que a minha vida ajuda a compor... mas, antes de escrever sobre algumas coisas vindas do processo de adotar filhos, quero relembrar um escrito que fiz para meu pai, logo depois de sua partida de nosso convívio... retomo esse escrito, porque meu pai se foi num tempo em que eu, minha companheira e nossas filhas já gestávamos a possibilidade de termos mais filhos (e irmãos)... meu pai, apesar de ter uma formação humana e ética conservadora –moldeada ao seu tempo-, quando soube de minha opção sexual, levou algum tempo para acolher e respeitar isso, mas o fez com grandeza e, muito tempo depois dessa ocasião, quando conheceu as filhas que me vieram junto com minha companheira, acolheu-as como se sempre tivessem sido suas netas... e isso nos mostrou muito do que pensamos sobre a adoção... adotar uma criança/adotar um filho implica em inventar espaço para o cuidado, para o carinho, para o acolhimento, para a amorosidade, para o afeto, para a generosidade, para a solidariedade... inventar, nesta toada, significa criar... e só temos capacidade de inventar/de criar quando há disposição para isso... disposição para produzir vida, vitalismos e forças... enfim, queria que meu pai pudesse ver muito mais do que viu da boniteza de vida que me ajudou a inventar, mas, não podendo ver, vejo eu que isso também é ele!
Taí o escrito:
“no dia 21 de abril de 2014 meu pai (Emílio José Diello), num golpeio lento e preciso da vida, retirou-se de si... retirou-se da vida física, mas seus versos transversam com tantos versos nas vidas de tanta gente que nem sei contar... muito da grandeza com que atravesso a vida de tantas gentes vem das coisas que com ele desaprendi ao longo da vida... meu pai foi um homem que nos condenou à nossa própria liberdade (e isso não é uma liberdade qualquer)... os referencias com que transpassava nossos viveres emergiam de seus existires silenciosos, de sua forma de não ser um exemplo para ninguém, de seu jeito simples e quieto de cruzar com precisão nossos imaginários... enfim, seu feito foi a simplicidade e seu jeito foi de não dizer por onde ou para onde deveríamos ir... cada um entendeu isso ao seu modo... mas o que é mais importante: mostrou-nos a luta feita de intensidade, precisão, força, perspicácia, sabedoria, calma, paciência, leveza, grandeza e tranquilidade... mostrou-nos a luta dos que vivem inventando a luta no correr dos seus aconteceres... nunca nos mostrou o desenho do que seja certo ou errado, mas nos ensinou, ao seu modo, a ver as coisas como elas são... e por aí cada um aprendeu a fazer o que quis e o que pôde com suas experimentações... com a vida anotada na caderneta e vivida ao compasso dos movimentos inventados e produzidos...
das heranças que meu pai me deixou, as que mais se fazem presentes são a barriga... o olhar transversado com o horizonte... as invencionices da conversa e da contação de causos... a alegria... a desimpedida poesia... a cara marota de quem inventou uma mentira bem do jeito de uma verdade... o desapego com as coisas materiais... a solidariedade... a generosidade... a experiência de bolicheira e moinheira*... a crença de que o fim nunca está próximo... e tantas outras coisas!
quando falo em experiência de bolicheira e moinheira me refiro a um modo de subjetivação... é um jeito de viver e trabalhar que passa por muitos afetos... afetos que meu pai tão bem nos ensinou... feito de uma ética inventada em sua relação com a vida e com o mundo, sempre fez reverberar na vida das gentes os tinires de suas ferramentas e, quando não as tinha, se podia inventava, mas se não podia, reconhecia sua limitação e tocava a vida... em seus fazeres políticos, transitava em vários campos dos existires da comunidade em que vivia e de muitas outras comunidades... então, nessa toada de ser bolicheiro e moinheiro, ensinou-nos a compartilhar as comidas e os saberes...
criei-me ouvindo uma expressão que diz que todo moinheiro seja ladrão e aí olho para a composição financeira e material feita por meu pai e por minha mãe, e vejo que os bens materiais que hoje fazem parte de seus viveres, são praticamente os mesmos de quando começaram a compor juntos suas vidas... e isso não é uma coisa qualquer... o bolicheiro vendia comida, aviação, perfumaria, coisas para a lida no campo, a querosene, a graxa de gado, a banha de porco, a corda, o fumo em corda (e depois veio também o fumo já picado), o chumbo, o chapéu, a pedra canforada, a noz moscada, o lacto purga, o melhoral e o fontol infantil, a terramicina, o bálsamo alemão, o fermento, a cachaça (em trago e em garrafa)... eu ainda seria capaz de reproduzir com precisão o bolicho em que vivi a minha infância... o setor dos chapéus, a farmácia (humana e veterinária), o setor dos alimentos secos, a grande geladeira comercial, as tulhas, o depósito, o balcão por trás do qual ficávamos para atender, a balança, o baleiro... e tantas outras coisas... ah! e os papeis de embrulho (nos quais fiz meus primeiros rabiscos e em que aprendi a calcular)... esses poéticos papeis em que aprendi a fazer anotações para usar depois e que dão o nome a este blog... enfim, o bolicheiro tinha que ter muito tino para prescrever o medicamento correto, para dar uma orientação bem cabida àqueles que lhe consultavam no balcão ou que lhe pediam uma palavrinha em separado, para expressar uma posição ética e política precisa sobre as coisas da vida, da comunidade e do mundo... e, além de tudo, era feito de uma generosidade e de uma solidariedade desenhada pelo desapego, garantindo a comida na casa das gentes, mesmo quando não havia dinheiro em seus bolsos... lembro de meu pai se desdobrando em mil, na negociação dos prazos de pagamento com os distribuidores, para garantir o fornecimento dos suprimentos no bolicho... isso era preciso, pois a caderneta era bastante imprecisa... nem sempre as pessoas tinham o dinheiro na data aprazada e mesmo assim, sempre se dava um jeito para garantir-lhes a boia em casa...
o bolicho já faz tempo que foi desativado, mas o moinho ainda está ativo... moinho de pedra, feito para moer e partilhar o grão, era como que um cerne da existência de meu pai... em seus últimos dias de vida, hospitalizado, em alguns momentos em que esteve "variando" (delirando) em função do agravamento de seu estado de adoecimento físico, fazia comentários e recomendações a quem estava lhe cuidando, com relação às moagens, à farinha, ao moinho, dizendo que não era para deixar faltar farinha para ninguém.
meu pai, em seus pensares e em seus fazeres, era a mais genuína expressão do que seja um político... atuante, vindo do tempo em que oficialmente só havia a arena e o mdb, foi um militante contumaz do mdb e depois do pmdb... no mais, era essencialmente um político... provocador de pensares e de fazeres na comunidade, era um protagonista estimulador de protagonismos... trasversava os seus movimentos com os movimentos de outras gentes... era de fazer acontecer e também era de acontecer... quando necessário, fazia desacontecer ou desacontecia... foi pela mão dele que participei dos primeiros movimentos pela emancipação de bom progresso e de tantos outros movimentos políticos... foi na conversa com ele que desenhei grande parte de meus pensares éticos e políticos (inclusive minha toada anárquica)...
assimassim, meu pai foi um homem que também cometeu erros e que tinha defeitos, mas em sua essência era um homem da vida, feito gente que inventa a vida todo dia... era um conversador... era e é um grande homem cujos afetos atravessam muitos existires e reverberam em muitos viveres... e é desse cerne que é feita a minha vida... uma vida que também atravessa e transversa com muitas outras vidas... taí a grandeza e a grandiosidade da vida das gentes... tá nessa coisa de que nossos sentires, nossos pensares, nossos fazeres podem reverberar na vida de tantas outras gentes que às vezes nem nos conhecem... nessa toada, ainda quero dizer que meu pai era e é um lindo!
* como em tantas outras palavras desajeitadas pelo popular trato da língua portuguesa, utilizo a literária e poética expressão "moinheiro" (às vezes, munheiro), em vez de moeiro”.

Minha formação principal consiste em ser pescadora, bolicheira, conversadeira, inventadeira, poeteira, escrevinhadeira e curiosa (o que provoca pesquisamentos por causa do pouco conhecimento), e minha formação complementar, em ser psicóloga, especialista em ciência política, mestre em filosofia, trabalhadora pública na prefeitura municipal de cruz alta/rs e, também, arredo o banco pra trabalhar num canto não tão público ou em qualquer lugar para onde for chamada às conversas... dito isso, tenho que dizer ainda que o que me interessa mesmo é ser gente... gente feita de desassossegos e de alegrias, de coragens e de poesia, de desproposituras, de desacordos com o dado do mundo... gente feita de um inventamento que contagia outras gentes... gente feita para inventar capacidades... e é nessa toada que (des)invento e invento minha vida e, junto com minha companheira Valéria da Silva Zorzi, também a vejo a (des)inventar e inventar a sua vida, compondo assim o que seja a nossa vida... e isso tudo faz rizoma na vida de nossas filhas (que foram se tornando NOSSAS na medida em que a poesia faz ritornelo na existência de cada uma), e seus existires nunca mais serão os mesmos, pois é o movimento que lhes faz andar... é a beleza do movimento –cada uma ao seu tempo- que as faz inventar a lindeza de suas andanças... andanças que ora compõem passos com as nossas, ora são pura autonomia... e assim, escolhemos ter mais filhos...
Queríamos um bebê, porque gostaríamos de compor com ele o tramado da maior parte possível dos passos de sua existência, mas entendemos que podemos fazer isso em qualquer tempo, então fomos conhecendo aos poucos (...) aqueles que viriam a se compor em nossos filhos... e eles também forma conhecendo à nós... os afetos já nos juntam e nos encontram... já se fazem nossos filhos acolhidos em nossos quereres, em nossos pensares, em nossos fazeres, em nossos afetos, em nossas vidas... já se fazem irmãos de nossas filhas, principalmente porque foram elas que os escolheram por irmãos, antes de qualquer conversa... e assim, já compomos uma mesma poesia, porque nossos versos já se transversam e nossas vidas já se juntaram!
(...) 

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