Por Suely Rolnik
Como a mídia
aterroriza com o jogo entre subjetividade-lixo e subjetividade-luxo
A vida está na berlinda.
Mais precisamente, o que está na berlinda é a potência da vida enquanto força
de invenção, aquilo que é suscitado quando se produz um certo tipo de paradoxo
entre dois planos da subjetividade: de um lado, visível, o mapa das formas de
vida vigentes; de outro lado, invisível, o diagrama flexível das sensações que
percorrem o corpo por sua imersão na infinidade variável de fluxos de que são
feitos os meios em que vivemos.
O paradoxo acontece quando
a mudança no diagrama intensivo atinge um certo limiar, a partir do qual
inviabiliza-se sua figuração através das formas atuais. Tais formas tornam-se
então um obstáculo para integrar as conexões que provocaram a emergência de um
novo estado sensível e, com isso, deixam de ser condutoras de processo,
esvaziam-se de vitalidade, perdem sentido. O paradoxo entre esses dois planos
da vida subjetiva pressiona os contornos das formas vigentes e força a
subjetividade a redesenhá-los: é neste contexto que mobiliza-se a força de
invenção.
Uma tensão se instala entre o movimento de tomada de
consistência de uma nova pele e a permanência da pele existente, necessária até
que o processo de criação se complete. O paradoxo entre esses dois vetores, a
força de invenção que ele mobiliza e a tensão que disto decorre são portanto
próprios da vida em sua potência de variação: eles são constitutivos do
processo vital de individuação, que vai organizando e estabilizando novos
contornos, enquanto desestabiliza e desfaz outros.
No "capitalismo mundial integrado", como o
chama Félix Guattari, esse processo intensifica-se brutalmente. Para começar,
na existência globalizada que ele instaura, os fluxos a que está exposta a
subjetividade em qualquer ponto do planeta multiplicam-se cada vez mais e
variam numa velocidade cada vez mais espantosa. Isso acelera o processo de
engendramento de novas formas e encurta o prazo de validade das formas em uso,
as quais tornam-se obsoletas antes mesmo que se tenha tido tempo de
absorvê-las.
A conseqüência é que se vive constantemente em estado de
tensão, à beira da exasperação, o que atiça e fomenta a força de invenção. Para
completar, esse processo intensifica-se mais ainda pelo fato de que o capital
não apenas se nutre dessa tensão agravada e dessa força de invenção turbinada,
mas ambas constituem sua principal fonte de valor, seu mais rentável
investimento. Vejamos como.
A força de invenção turbinada, o capital a captura a
serviço da criação de esferas de mercado: territórios-padrão cuja formação é
dissociada do processo, substrato vital que havia convocado aquela força e
passa a ter como princípio organizador a produção de mais-valia, que
sobrecodifica o processo. Essa é base do aparelho de homogeneização que tem o
nome de "consenso", necessário para fazer funcionar o mercado. Todos
os elementos que constituem esses territórios são postos à venda, um kit de
mercadorias de toda espécie de que depende seu funcionamento: objetos, mas
também, subjetividades -modos de habitar, vestir, relacionar-se, pensar,
imaginar...-, em suma, mapas de formas de existência que se produzem como
verdadeiras "identidades prêt-à-porter"[1], facilmente assimiláveis,
em relação às quais somos simultaneamente produtores-espectadores-consumidores.
O kit vem acompanhado de uma poderosa operação de
marketing que faz acreditar que se identificar com essas estúpidas imagens e
consumi-las é imprescindível para que se consiga reconfigurar um território e, mais
do que isso, que este é o canal para pertencer ao disputadíssimo território de
uma subjetividade-elite. Isto não é pouca coisa, pois fora desse território
corre-se o risco de morte social - por exclusão, humilhação, miséria, quando
não por morte concreta-, como uma célula morta do corpo coletivo.
Fabricar esses dois tipos de território é a tarefa básica
da mídia, ou melhor, fabricar "o" território, pois só há um, e
demarcá-lo insistentemente do resto, o esgoto do mundo, onde sobrevive no
limite tudo o que está fora dele. Imagens dessa demarcação saturam o visível,
dia e noite, num verdadeiro assédio cerebral: do lado de dentro, o glamour das
identidades prêt-à-porter de uma subjetividade-luxo; do lado de fora, a abjeção
das subjetividades-lixo em seus cenários de horror feitos de guerra, favela,
tráfico, seqüestro, fila de hospital, crianças desnutridas, gente sem teto, sem
terra, sem camisa, sem papel -boat people vagando no limbo sem lugar
onde ancorar. A única permeabilidade entre os dois campos é, do lado de dentro,
o perigo de cair para fora, na cloaca, às vezes irreversivelmente, que assombra
a subjetividade e a deixa permanentemente agitada e ansiosa numa busca
desesperada por reconhecimento; do lado de fora, a chance quase impossível de
passar para dentro, se ganhar a taça do glamour, como os sortudos que conseguem
emprego na "Casa dos Artistas" ou entre os "Big Brothers"[2], realidade tornada show,
um espetáculo de competição, cujo vencedor não por acaso é o mais abrutalhado
de todos.
É tão rara e tão cobiçada a
possibilidade de passar para dentro, que a imagem dessa passagem consegue
manter ligados, no grand finale da disputa, 76 de cada 100 televisores
existentes na cidade de São Paulo. Ela captura toda a atenção, a imaginação, o
sonho e o desejo desses milhares de espectadores e os mantêm como que
hipnotizados pela telinha sob o jugo do cenário patético que ela coloca no ar.
O êxito de audiência nesse momento preciso da passagem de
uma subjetividade-lixo para uma subjetividade-luxo indica o próximo passo no
aperfeiçoamento da estratégia: numa operação milionária que associa televisão e
indústria fonográfica cria-se um novo programa, muito oportunamente batizado de
"Fama", cujo foco será a própria passagem[3]. Os personagens que
habitarão a casa/cela/cena cuja crônica cotidiana ficará exposta ao espectador
são moradores da cloaca das subjetividades-lixo portadores de uma
força qualquer que possa ser utilizada como matéria-prima para a fabricação de
um cantor de sucesso.
O que será desvelado é o cotidiano desse laboratório de
metamorfose para a produção de um "clone de subjetividade-luxo"[4] - timbre de voz, forma de
falar, postura corporal etc., minuciosamente remodelados por esse misto
tecnológico de Big Brother e Pigmaleão eletrônico. Uma subjetividade totalmente
entregue à sua reconfiguração segundo uma identidade prêt-à-porter e uma
intimidade reduzida aos bastidores dessa entrega constituem o modo de ser que
se oferece como exemplar para o espectador. Processo de identificação que
reforça sua adesão cega à máquina capitalística de sobrecodificação do processo
vital. Como diz cinicamente uma das eminências pardas da bem sucedida TV Globo,
"descamisado é uma fórmula que funciona, dá retorno". [5]
O índice de audiência de um programa é garantia de
"retorno" não só por vender os produtos a ele associados e assim
também aumentar o preço do minuto publicitário -essa é apenas sua faceta mais
visível e até a mais inocente. Bem mais importante do que isso é que o alto
índice de atenção e, portanto, de potencial de identificação que um índice de
audiência implica, alimenta o funcionamento dessa máquina infernal de captura e
sobrecodificação da subjetividade que se tornou uma das principais engrenagens,
senão a principal, do capitalismo contemporâneo.
Afirmei acima que o capital intensifica e se nutre não só
da força de invenção turbinada, mas igualmente do estado de tensão que decorre
da desterritorialização em excesso de velocidade. Como se dá isso? A tensão
cria um ambiente propício para o assédio da mídia com seus territórios-padrão-mercadoria
que vendem apaziguamento instantâneo pela rápida reconfiguração prometida.
Operação que injeta nessa subjetividade fragilizada doses e mais doses de
ilusão de que a tensão pode apaziguar-se. Isso a mantém alienada do processo vital
de individuação que pede passagem, impedida de fazer o aprendizado do
desassossego, decorrência inelutável da pressão desse processo também
inelutável, seja ele acelerado ou não.
Em outras palavras, as identidades prêt-à-porter são uma
espécie de droga pesada que desconecta a subjetividade do processo vital e
anestesia a tensão, criando uma dependência brutal -verdadeira toxicomania
muito difícil de ser combatida. Essa subjetividade desterritorializada,
desconectada de seu substrato vital, é com freqüência tomada pela fissura da
abstinência que a lança angustiada numa corrida insana atrás de suas pequenas
doses de ilusão de pertencimento. Na vertigem da velocidade cada vez maior
desse processo, sobra cada vez menos chances de reencontrar as intensidades do
vivo, de escapar dessa dissociação. Não dá para parar de entregar-se ao assédio
"non-stop" dos estímulos, sob pena de deixar de existir e cair na
vala das subjetividades-lixo. O medo passa a comandar a cena.
Nesse regime, no
entanto, o aumento de tensão e a intensificação da força de invenção não
favorecem a construção de territórios singulares em consonância com o que pede
o processo vital, como se poderia supor. E isso não porque a potência de
criação seja demonizada como acontecia até os anos 1970; pelo contrário, a
partir dos anos 1980 do neoliberalismo triunfante, essa força passa a ser
seduzida, celebrada, sustentada e,como vimos, até turbinada pelo capital, mas
para fazer dela um uso perverso, ou seja, cafetiná-la a serviço de seus
interesses. Força de invenção capturada e vida como processo, sobrecodificada,
são o combustível de luxo do capitalismo mundial contemporâneo, seu
protoplasma.
Se esse regime alimenta-se de força de criação, é
evidente que a arte não escapa dele e, mais do que isso, ela é certamente um de
seus principais mananciais. Como fica então a arte nesse cenário? A captura da
criação pelo capital se instalou igualmente na arte, como no conjunto da vida
social, de forma mais assustadora ainda. A arte vem sendo cada vez mais instrumentalizada
pelo mercado, o que contribui para reiterar a fetichização de seus produtos[6]
O modo mais óbvio de
instrumentalização são as megaexposições, onde práticas estéticas se
desconectam integralmente do processo vital e tornam-se produtos comercializáveis,
bens de consumo da indústria do "fast food" cultural, avaliados
exclusivamente pelas catracas e o espaço que ocupam na mídia. Mas não é somente
como produção de obras/mercadorias que a arte é instrumentalizada pelo capital
-talvez esse seja inclusive seu uso menos rentável e até o mais inofensivo.
Outros usos que vem sendo amplamente praticados são mais perversos e certamente
mais rentáveis. A subjetividade-elite ganha um plus de valor como identidade
prêt-à-porter quando se trata de imagens daqueles que fazem a cena cultural,
que inclui evidentemente o seleto grupo de VIPS que freqüentam seus salões
mundanos. Esse é um território-padrão de altíssima desejabilidade, com grande
poder de sedução e portanto de suscitar identificação, até por parte dos próprios
artistas, que tendem a se entregar à captura de sua força de invenção. Muitos
artistas inclusive, já criam para ocupar essa cena, oferecendo-se
voluptuosamente ao sacrifício, numa espécie de auto-colonização. Mas não é só
por essa via que a glamurização da cultura rende: a arte tem sido mais e mais
investida como instrumento de estratégias de marketing empresarial ou
turístico, vinculado muitas vezes à lavagem enobrecedora de capital ilegalmente
acumulado. Basta associar um produto artístico suficientemente glamurizado a um
logotipo de empresa, de empresário ou até de cidade, para que o logo se
impregne automaticamente de sua aura. Isso gera uma mais-valia de glamour e de
imagem politicamente correta que tornam empresa, empresário e cidade mais
atraentes não só para o consumo de seus produtos (que no caso da cidade é o
turismo e seus desdobramentos comerciais), mas também para o investimento dos
capitais que sobrevoam a cena multinacional à cata das melhores oportunidades
onde aterrissar e ali ficar enquanto render. Nesse contexto, não tem
importância que obras sejam invendáveis, pois essas outras formas de
investimento na arte são nitidamente mais sutis e compensadores. Por isso é
ingênuo continuar propondo, como no século 20, estratégias que impeçam a reificação
do objeto de arte enquanto mercadoria. É que o capital não só já incorporou
essa proposta, abrindo espaços para a criação de objetos invendáveis (como
instalações, performances etc.), mas foi mais longe na inteligência de
estratégias para reduzir as práticas estéticas a seu valor de troca, para delas
extrair mais-valia e esvaziá-las de seu valor de uso, ou seja, de seu valor
vital. Nessa nova ordem, o artístico não só tornou-se o vendável, mas também e
principalmente aquilo que ajuda a vender ou a se vender.
Assim descrita, a situação parece apocalíptica. No
entanto, a perversão não é tão tiranicamente poderosa. Se o capitalismo
contemporâneo atiçou a força de invenção ao fazê-la trabalhar a serviço da
acumulação de mais-valia, em seu avesso a mobilização dessa força no conjunto
da vida social criou as condições para um poder de afirmação da vida como
potência de variação sem medida de comparação com outros períodos da história
-uma ambigüidade constitutiva do capitalismo contemporâneo, seu ponto vulnerável.
Pela brecha dessa vulnerabilidade vem se avolumando a
construção de outras cenas, regida por outros princípios, num movimento que
escova a contrapelo (que arrepia -meu) essa situação perversa: um
"povo que falta", como o nomeia Gilles Deleuze, ganha contorno;
agitam-se as forças heterogêneas, acentradas e centrífugas da
"multidão", como o nomeia Toni Negri.
Redes, às vezes minúsculas, às vezes maiores, efêmeras ou
duradouras, que se formam entre aqueles que, pressionados pelo intolerável,
decidem simplesmente desertar esse regime. Numa espécie de devir-animal,
começa-se a cultivar a habilidade para farejar os signos que pedem passagem,
primeira circunscrição de um diagrama intensivo. Coloca-se a força de invenção
a serviço da criação de territórios orientados por esse diagrama, para
inseri-los na cartografia atual da existência. Um vasto rizoma de geometria
variável traçado por esse modo etológico de construção de território amplia-se
a cada dia.
Que funcionamento nesse modo de subjetivação dominante é
desmontado quando a força de invenção consegue recolocar-se a serviço da vida,
escapando de sua cafetinagem? Basicamente, o funcionamento regido pelo medo da
morte social e pela fé no poder de reinserção de que seriam portadoras as
identidades prêt-à-porter; medo e fé alimentados pela poderosíssima máquina
midiática global que faz de todos os habitantes do planeta produtores e
consumidores em potencial do narcotráfico de identidade.
Para desviar esse modo de subjetivação, é preciso
dissolver o medo, modular ritmos, abrir intervalos de desaceleração; não como
uma finalidade em si mesma, simples oposição à aceleração, mas sim como
condição para escutar o rumor sutil das intensidades. Aprender a sustentar-se
na metaestabilidade, no vórtice da tensão do paradoxo entre estar atravessado
pela tomada de consistência de novos territórios e ter que se situar ainda
através dos territórios em perda de consistência.
Instalar-se no olho do furacão dos fluxos que atravessam
a subjetividade, mantendo sempre como norte a proteção da vida em seu processo
infinito de diferenciação, processo difícil, mas muito generoso. Descobrir que
a tensão é parte do movimento da vida e que apenas momentaneamente ela se
apazigua, mas que isso só acontece de fato quando se faz um território singular
que absorve as intensidades e se oferece como forma para seus signos, ainda que
fugazmente. Muito diferente dos territórios-padrão do capitalismo, que, por
mais atraentes, são vazios de vida, o que faz com que a tensão nunca se
apazigue, pois persiste a sensação de não participar da construção da
existência, de não pertencer a nada e de que a vida não tem sentido.
Diante deste quadro, constatamos que já foi o
tempo em que aquilo que é próprio da arte, a força de invenção, era confinado
numa esfera especializada, problema que desde as vanguardas do começo do século
20 os artistas buscaram enfrentar. Restabelecer a ligação entre arte e vida
constituiu uma das principais metas da utopia da arte moderna, processo onde se
inscreveram inúmeras de suas estratégias e ao qual a arte contemporânea deu
continuidade, radicalizando seu alcance, ampliando suportes e dispositivos.
É verdade que tampouco
podemos dizer que a dissociação entre arte e vida deixou de existir. Pelo
contrário, a cisão não só continua na ordem do dia, mas tornou-se mais
complexa, assim como mais refinada e poderosa tornou-se sua perversão. Ela se
deslocou da fronteira entre a esfera da arte e as demais esferas da existência
humana, espalhou-se por toda parte e conhecê-la passou a depender de um
olhar transdisciplinar. A questão coloca-se hoje em outros termos: a
dissociação entre arte e vida a ser combatida não se situa mais no visível, na
fronteira entre esferas especializadas no mapa de um tipo de existência humana
departamentalizada, ficando de um lado a esfera da arte onde se exerce a
criação e, de outro, a esfera da vida. O capitalismo foi mais veloz na
eliminação dessa fronteira; como vimos ele não só ativou a potência de criação
por toda parte, mas colocou-a no cerne de sua produção e fez dela sua principal
fonte de valor.
A dissociação agora se situa entre o visível e o
invisível: de um lado, o exercício da vida enquanto potência de invenção e, de
outro, o processo vital que convoca esses exercícios, diagrama intensivo
invisível que pede passagem para o visível. Tal cisão constitui uma engrenagem
essencial da máquina que submete o exercício da força de invenção ao princípio
da acumulação de capital.
Esse tipo de dissociação entre arte e vida implica uma
operação de grande complexidade e que pode incidir sobre diferentes etapas do
processo de criação. Numa ponta, a operação se dá no momento mesmo em que a
força de invenção é mobilizada, incidindo sobre o próprio exercício dessa
força. Este é clivado do processo vital que o havia convocado, para ser
diretamente orientado pelas demandas de consumo rastreadas pelas tecnologias de
pesquisa de mercado que se sofisticam a cada dia.
Na outra ponta do processo, a operação se dá no momento
em que a força de invenção já engendrou seus produtos, isto é, formas de
realidade objetiva e/ou subjetiva. Nesse caso, o exercício da criação mantém-se
orientado pelas demandas do processo vital e, como vimos, ele é até
estimulado nessa direção, mas então a operação de dissociação irá incidir sobre
seus produtos. Estes é que serão clivados de sua origem vital, transformados em
matrizes de clones de modos de existência, a serem fabricados e veiculados pelo
mercado capitalista mundial.
O problema que se coloca para a arte hoje
está portanto na política de semiotização dominante: a captura da força de
invenção para a produção de capital. Não se trata de recusar a capilarização do
exercício da criação, sua reinserção na vida social; pelo contrário trata-se de
aceitá-la, afirmá-la e mesmo intensificá-la, levando às últimas conseqüências
esse processo deslanchado pelo capital que dissolve as fronteiras que separavam
a cultura numa esfera específica, gueto em que havia sido confinada a força de
invenção. Mas afirmar a disseminação dessa potência, desertando sua subserviência
ao comando tirânico pelo aparelho de homogeneização, desfazendo tanto a
dissociação que orienta seu exercício quanto a reificação de suas criações em
cada uma das atividades humanas, inclusive e talvez antes de mais nada no
exercício da própria arte. Criar alianças entre práticas que desertam
ativamente a máquina de sobrecodificação e inventam outras cenas, colocando em
rede sua sinergia e ativando sua potência de singularização; inserir-se no
movimento de reativação da força de invenção a contrapelo de seu esvaziamento
vital, da neutralização de seu poder crítico - nessa direção inscrevem-se
algumas das práticas estéticas mais radicais da atualidade. Para tais
propostas, prática estética é processo no tempo, ou processo que é tempo, e não
apenas seu produto, o objeto no espaço, mesmo que virtual, condição à qual a
arte tem sido reduzida. Inventam-se "dispositivos espaço-temporais de um
outro estar-junto"[7], através de estratégias de
inserção sutil e precisa num feixe de fluxos que compõe uma seqüência do
processo de existencialização, para desobstruí-lo dos coágulos de espaço que o
emperram, favorecer a individuação no tempo, o devir. Práticas estéticas a
serviço da reconexão com a experiência do intensivo, condutoras de processo,
produtoras de acontecimento, ou melhor acontecimento elas mesmas. Arte como
servidora das forças que pedem para ganhar forma no mundo, processo de criação
em conexão on-line com o movimento vital.
Talvez seja mais preciso chamar de "ato
estético" esse tipo de prática, para enfatizar seu caráter performático:
performance de uma potência criando um cenário singular para os signos que se
apresentam na experiência das intensidades; ritual que propicia identificação
com o exercício de conexão com o processo vital e de criação de cenários para
seus signos, no lugar da identificação com seus produtos, reificados,
empalhados, mortos; qualidade de presença que promove um desvio efetivo no modo
de subjetivação dominante.
Sem esse caráter performático, o dispositivo corre o
risco de ser imediatamente engolfado no poderosíssimo circuito dos
objetos/imagens, que o capturam e o esvaziam de sua consistência vital, para
fazer dele mais um clone de subjetividade a ser oferecido no mercado, mais uma
identidade prêt-à-porter que renderá dividendos comerciais e simbólicos.
Falsos problemas têm sido colocados pela arte
contemporânea em sua busca de situar-se na complexidade da situação presente.
De um modo geral, eles dizem respeito a um só e mesmo equívoco: manter o foco
na assim chamada esfera do "cultural", tanto na circunscrição do
problema quanto nas estratégias para enfrentá-lo. Enxerga-se apenas no campo da
cultura a presença do aparelho de captura da força de criação instalado pelo
capital, deixando-se inclusive de perceber o papel que a arte desempenha no
funcionamento desse aparelho no conjunto da vida coletiva.
Da mesma maneira, limita-se aos espaços da cultura, a
invenção de estratégias estético-políticas que problematizem essa situação. Com
isso passa-se ao largo da disseminação dessa política de semiotização operada
pelo capital, quando é exatamente no amplo espectro dessas práticas
sobrecodificadas que atravessam a cena social como um todo que a arte deve
encontrar suas vias de inserção crítica. O perigo é inventar uma política de
resistência/criação nas práticas estéticas sem poder algum de deslocamento
efetivo e, com isso, facilmente instrumentalizáveis pelo capital.
As estratégias que melhor têm driblado esses falsos
problemas são as que buscam cultivar o exercício sutil de uma etologia de construção
de territórios, diferente da construção perversa desse mundo de clones de
subjetividade sob o império do capital. No lugar de uma
subjetividade-capitalística, seja ela de luxo ou de lixo, uma
subjetividade-estética começa silenciosamente a roubar a cena.
Conferência
realizada nos colóquios "Theaters of Life", Performance Studies
International (PSi), Department of Performance Studies, Universidade de Nova
York e Hemispheric Institute for Performance Studies (Nova York, 12/04/02);
"Theater der Welt 2002" e Bundeszentrale für politische Bildung
(Colónia, 27/06/02); "Global Dance 2002 Aesthetics of Diversity",
World Dance Alliance Festival (Düsseldorf, 26/08/02).
[1] Cf. Rolnik, Suely, "Toxicomanes dldentité", in "Documenta X,
100 Tage - 100 Gaste" (Kassel, 1997), www.documenta.de ou
http://www.universes-in-universe.de/doc/e_ver.htm, e "Viciados em
Identidade: Subjetividade em Tempo de Globalização", in "Cultura e
Subjetividade" (Saberes Nómades, org. Daniel
Lins, ed. Papirus, 1997).
[2] "Reality Shows" da televisão brasileira que têm índices de
audiência elevadíssimos e ocupam espaços significativos nas páginas na
imprensa.
[3] "Fama" é um "reality show" em novo formato, em que os
participantes, todos com alguma espécie de carreira artística incipiente, são
submetidos a um treinamento intensivo para se tornarem estrelas da mídia. É o
cotidiano desse treinamento que os telespectadores acompanham. O vencedor, ou
seja, aquele que resta após todos os demais terem sido eliminados da casa, e
portanto de cena, tem sua carreira garantida, já previamente articulada
[4] Cf. Rolnik, Suely,
"Despachos at the Museum: Who Knows What May Happen..."e
"Despachos no Museu: Sabe-se Lá o Que Vai Acontecer..." in "The
Quiet in the Land. Evereday Life, Contemporary Art" and
"Projeto Axé; A Quietude da Terra. Vida Cotidiana, Arte Contemporânea e
Projeto Axé", org. France Morin, Museu de Arte Moderna da Bahia (Salvador,
2000) e in "Stretcher"
-http://www.stretcher.org/essays/suely/despachos.html (San Francisco, 2001).
[5] Declaração de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o "Boni",
citada pela "Revista da Folha", de 7 de abril de 2002.
[6] No caso específico do Brasil essa tendência é favorecida pelo Estado, que
declinou em grande parte sua responsabilidade em relação à cultura para entregá-la
ao setor privado. Como se não bastasse, o Estado criou condições para reduzir
praticamente a zero o custo do investimento em arte, através de uma lei que
permite deduzi-lo dos impostos e pagá-lo portanto com dinheiro público.
Resultado: a cultura continua sendo indiretamente bancada pelo Estado, mas
instrumentalizada pelo capital privado, integralmente à mercê de seus
interesses.
[7] Jacques Rancière, entrevista inédita a
Hans-UIrich Obrist.
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