CAPÍTULO 1 - ESTE NOSSO MUNDO DOS FRACOS
(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto,
FTD, São Paulo, 1996)
Um pensamento distorcido
Apenas os medíocres têm perspectivas de prosseguir, procriar - eles são
os homens do futuro, os único sobreviventes: "sejam como eles! Tornem-se
medíocres!", diz a única moral que agora tem sentido, que ainda encontra
ouvidos.
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, § 262
No dia 15 de outubro de
1844, na cidade de Rocken (antiga Prússia, atual Alemanha), nascia aquele que
se tornaria um dos pensadores mais importantes da contemporaneidade: Friedrich
Wilhelm Nietzsche.
Desprezado e incompreendido
em sua época, seu pensamento acabaria por ser distorcido, utilizado pelos
nazistas na Segunda Guerra Mundial como justificativa para "a purificação
de uma suposta "raça ariana". A que levou essa ideologia racista o mundo todo
soube através do massacre de milhões de judeus, comunistas, homossexuais,
deficientes físicos e mentais, considerados pelos nazistas como a escória da
humanidade. Infelizmente, Nietzsche
permaneceu confundido com o pensamento nazista até há pouco tempo. Só muito recentemente - e por iniciativa de
alguns pensadores franceses, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Pierre
Klossowski, entre outros - iniciou-se um processo de releitura dos textos
nietzschianos. Descobriu-se, então, que
Nietzsche havia sido um dos mais contundentes críticos do anti-semitismo
apregoado pelos nazistas. Em 1885/1886,
no aforismo 251 de Além do bem e do mal, ele
escrevera:
Os judeus são, sem qualquer
dúvida, a raça mais forte, mais tenaz e rnais pura que atualmente vive na
Europa; eles sabem se impor mesmo nas Piores condições (até mais que nas
favoráveis), mercê de virtudes que hoje se prefere rotular de vícios. [...] O
que eles desejam e anseiam, COM insistência quase importuna, é serem absorvidos
e assimilados na Europa, pela Europa; querem finalmente se tornar
estabelecidos, admitidos, respeitados em algum lugar, pondo um fim à sua vida
nômade, ao "judeu errante"; esse ímpeto e pendor (que talvez já
indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveria ser considerado e bem
acolhido: para isso talvez fosse útil e razoável expulsar do país os agitadores
anti-semitas.
A origem do mal-entendido
deveu-se a dois fatos distintos. O
primeiro deles é que a única irmã de Nietzsche, Elizabeth - ela sim, claramente
anti-semita -, deturpou vários dos seus textos, chegando mesmo a forjar
O segundo motivo do
mal-entendido deveu-se a incompreensões do próprio pensamento de Nietzsche,
notadamente de suas críticas aos rumos que havia tomado o mundo ocidental. Autor de uma obra assistemática por natureza,
ou, mais do que isso, avessa à idéia de sistema, escrevia por meio de aforismos,
o que dá margem a diferentes leituras, articulações, ângulos de visão.
Isso contribui para que cada
qual a utilize do jeito que bem entender.
Além disso, as noções controvertidas de nobre e de escravo ajudariam
a "colocar mais lenha na fogueira".
Embora seja muito difícil sintetizar seu pensamento, convém, pelo menos,
tentar esclarecer os mal-entendidos que cercam essas noções básicas.
Nietzsche via na cultura
judaico-cristã, dominante no mundo ocidental, uma preponderância de valores
fracos, escravos, em oposição aos valores fortes, nobres, sue haviam vigorado
em épocas passadas, notadamente na Grécia arcaica, na cultura trágica. Mas, para ele, nobre e escravo compunham dois tipos bastante característicos, bem
diferentes dos que comumente se entendem por esses termos.
O tipo nobre define uma forma de existir
capaz de dizer "sim" à vida integralmente, em todos os seus aspectos,
afirmando-a, criando valores e participando ativamente da produção de sentido
do mundo. Isso caracteriza uma maneira de
viver expandida, potente, onde estar-aí significa
acolher e amar a existência, com tudo o que ela traz de prazer, alegria, mas
também de dor, sofrimento, pois nessa perspectiva as imperfeições da vida -
geradoras de infelicidade - são a própria condição de o homem crescer,
Potencializar-se, tornar-se capaz de se vergar sem se despedaçar. Por isso,
esse tipo de vida implica fundamentalmente uma capacidade de esquecer: metabolizar as injúrias,
ofensas, transformando-as em proveito desse existir exuberante, que soe quer
pleno de riscos, de aventura, sabendo-se habitar em um mundo que não é feito de
permanência, mas de movimentos perenes de transformação. E, pois, uma vida que
se desdobra em morte e renascimento contínuos, em movimentos de destruição e de
construção, como parte do mesmo devir criador.
A vida denegrida
Dominância de valores
escravos queria dizer a propagação de uma forma de ser, ocupada apenas com a
sobrevivência, sem qualquer ambição de dar forma ao mundo. Por estar
atravessado por uma impotência
paralisante, aprisionado por um passado não-digerido, não-metabolizado, o tipo escravo vive perdido no tempo, incapaz de viver no presente e de criar qualquer
coisa que seja. Cultua uma memória prodigiosa que- não
lhe permite superar as amarguras, as humilhações, os ultrajes vividos, vivendo
amarrado a essas experiências. É, pois, incapaz de acolher e aceitar as
imperfeições da vida. Está
permanentemente buscando culpados por seus infortúnios, é puro ressentimento e
desejo de vingança. Assim, é incapaz de
caminhar por seus próprios pés. Vive à
deriva, à espera de uma redenção vinda de fora, de um Outro, concebido como
Poderoso, Absoluto e Perfeito, seja ele Deus, uma Sociedade Irrepreensível ou
uma Outra Vida, de preferência Eterna, Pois o escravo não tolera a fatalidade
da morte.
Resumindo, trata-se de uma
forma de vida alienada de sua potência criadora e culpada de existir. Essa alienação-tornada-impotência que, ao se
perpetuar como memória, envenena o mundo real para depois rejeitá-lo; esse
veneno que cresce e que se nutre com a ilusão de recompensas em mundos
imaginários, Nietzsche os via corno uma criação da sociedade de massas e de seus valores
morais corporificados especialmente nos valores
cristãos (tais quais expressos pelas máximas de São Paulo).
Se o cristianismo não
inventou os valores escravos, sem dúvida trouxe-lhes novo sangue, novas
justificativas, universalizando-os e refundando-os na idéia de Eternidade; com
isso, eles cresceram, alastraram-se, tornando-se os valores dominantes no mundo
ocidental. E por essa razão que
Nietzsche foi um dos mais contundentes críticos do cristianismo, embora se
preocupasse, em seus últimos escritos, em discriminar o cristianismo como
doutrina instituída, da figura de Jesus,
por quem até sentia alguma simpatia pois o considerava um homem adiante de sua
época, tendo sido capaz de ensinar aos homens como morrer com serenidade.
A utilização de Nietzsche
pelos nazistas imprimiu aos termos escravo
e nobre, fraco e forte conotações de cunho racial e político que eles
jamais tiveram. Ao se identificar a força
nobre com os valores arianos e com os poderes nazistas instituídos, invertia-se
totalmente o sentido que Nietzsche lhes dera, já que, em vez do amor
incondicional à vida que definia o nobre nietzschiano, o "nobre"
nazista fazia a apologia do ódio, do ressentimento, da busca de bodes
expiatórios para os infortúnios da humanidade, massacrando judeus, comunistas,
homossexuais, deficientes físicos e mentais.
Mas na época, e durante
muito tempo, essa deturpação não se fez visível. Isso veio lançar uma maldição sobre o
filósofo, somente revista a partir dos anos 60, quando se voltou a ler sua
obra. Ainda assim, essas questões estão
longe de qualquer consenso no moldo da filosofia.
Nietzsche continua até hoje
louvado por uns, execrado por outros. Uma coisa, entretanto, ninguém pode
negar: desde que seu nome voltou à baila, não cessam de proliferar admiração e
espanto diante de um pensamento cuja força demolidora só encontra equivalentes,
desde a Segunda metade do século XIX, na obra de um Marx e de um Freud. Uma
filosofia a marteladas, como ele costuma dizer. Na mira: os valores ocidentais
dominantes, que ele descreveu como valores escravos.
TEXTOS SELECIONADOS
1. A aurora de uma
contracultura
Aqui, o filósofo francês Gilles Deleuze, um dos mais importantes comentadores da obra
nietzschiana, traça a diferença de sentido, para o mundo contemporâneo, das obras de Marx,
Freud e Nietzsche.
Se perguntarmos o que é ou o
que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem é preciso se
dirigir. É preciso se dirigir aos jovens, que estão lendo Nietzsche, que estão
descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já
somos muito velhos na maioria aqui.
O que é que um jovem
descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha geração
descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados
a Nietzsche naquilo que fazem, embora não façam absolutamente uma música
nietzschiana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens
cineastas sintam-se ligados a Nietzsche?
O que acontece, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche?
A rigor, tudo o que se pode
explicar, olhando de fora, é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e
para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao
contra-senso. Não um direito qualquer,
aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao
contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz
com que não se trate de comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel.
Eu digo a mim mesmo: quem é
hoje em dia o jovem nietzschiano? Será
aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou bem será aquele
que, voluntária ou involuntariamente, pouco importa, produz enunciados
particularmente nietzschianos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma
experiência? Isso também acontece.
Pelo que conheço, um dos
textos recentes mais belos, mais profundamente nietzschianos, é o texto em que
Richard Deshayes escreve: "Viver não é sobreviver", exatamente antes
de receber uma granada durante uma manifestação. Talvez os dois casos não se
excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir, no
decorrer da experiência, enunciados nietzschianos.
Sentimos todos os perigos
que nos espreitam nesta questão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico ("os jovens
conosco..."). Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de
Nietzsche ... ). E em seguida, sobretudo, perigo de uma síntese
abominável. Toma-se como aurora da nossa
cultura moderna a trindade Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui
desarmado de antemão. Marx e Freud
talvez sejam a aurora de nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa,
ele é a aurora de uma contracultura. É evidente que a sociedade moderna não
funciona a partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases.
Ora, se considerarmos Marx e
Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, vê-se
que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa de recodificação:
recodificação pelo Estado, no caso do marxismo ("vocês estão doentes pelo
Estado, e serão curados pelo Estado", não será o mesmo Estado) -
recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família,
não a mesma família). E isso que
realmente constitui, no horizonte de nossa cultura, o marxismo e a psicanálise,
como as duas burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cujo
objetivo é operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não cessa de se
codificar no horizonte.
O caso de Nietzsche, ao
contrário, não é absolutamente esse. Seu
problema está em outro lugar. Através de
todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de
fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um
corpo em que isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra,
o do escrito...
(DELEUZE, Gilles.
"Pensamento nômade.",. In, Marton, Scarlett (org). Nietzsche hoje?
São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 56-7)
2. Nietzsche, o antiprofeta
O filósofo Eugene Fink, outro dos
importantes intérpretes do pensamento nietzschiano, fala das nuances, sutilezas
e artifícios que caracterizam o estilo literário e filosófico deste
antiprofeta, na sua missão demolira dos valores contemporâneos.
Com suas contradições, suas
máscaras e suas mudanças, quase não há pensador que dê lugar a múltiplas
interpretações como Nietzsche. Lê-se em
seus "Póstumos": "Sou o mais dissimulado entre todos os
dissimulados" e "Tudo o que é profundo ama a máscara". Toda exegese da obra de Nietzsche é empresa
arriscada e, no melhor dos casos, perspectiva.
Estilizaram o pensador como herói de lenda, celebraram suas
"conquistas psicológicas", e, graças à sua própria psicologia
desmascaradora, descobriram-no como um homem que sofre profundamente e sonha
com a riqueza de uma vida forte e sã; denunciaram-no como precursor o fascismo,
como anunciador do niilismo ascendente, etc.
Vários filosofemas tentaram
abusivamente invocá-lo e lhe impuseram desvios de sentido. Empresa facilitada por sua maneira de ser,
suas visões a mergulharem no coração mesmo do vivido, a coloração apaixonada e
o brilho inédito de suas formulações expressivas, sua habilidade em acionar
todos os registros de uma grande arte da linguagem, capaz no seu conjunto de
persuadir e convencer.
Essa multiplicidade de faces
provém de sua desconfiança frente ao rigor do conceito, à sua exatidão e força
petrificante, de sua recusa em sacrificar à universalidade do Logos o concreto
com seus meios-tons e suas nuances intermediárias e, sobretudo, do invocar
imagens sugestivas, figuras de visionário e falar por metáforas insólitas. Some-se a isso um estilo fragmentário, aforístico, imperioso, sedutor e
provocante.
Mas para compreender seu
pensamento é melhor partir de sua pessoa, de sua humanidade empírica, ou antes,
de preferência, considerar suas enunciações sobre a essência do homem? A fascinação que exerceu sua obra literária,
principalmente no começo do século; o encanto com que ela entreteve espíritos
de grande classe intelectual e uma juventude capaz de entusiasmo tudo isso
pertence ao passado. O duplo combate de
Nietzsche, contra a tradição ocidental e as "idéias modcrna.5"
perturbou, sem dúvida, o espírito do tempo; ele não o transformou em
profundidade.
A realidade efetiva da
tecnocracia, a racionalidade planificadora estendida a todo o planeta, a
influência crescente, nos dois hemisférios, do igualitarismo provindo da
Revolução Francesa - tudo isso os fatos confirmam, contra o sonho nietzschiano
do além-do-homem senhor da Terra. Hoje o
pathos dessa linguagem é para nós às
vezes intolerável, mesmo sendo necessário admitir que Nietzsche enriqueceu
maravilhosamente o potencial expressivo da língua alemã, que a tornou mais
sensível às ressonâncias afetivas do sublime, às nuances do pensamento e do
sentimento, que tornou seu ritmo mais leve.
É com uma mistura de
admiração e mal-estar que, presos ao aparelho de uma civilização racionalmente
tecnicizada, lemos hoje, impassíveis, as obras de um escritor que, para
descrever a situação e os problemas do homem, recorre quase sempre aos
conceitos românticos de natureza e paralelamente pratica o modo de pensar
desmistificador da filosofia das Luzes, ousa falar no estilo poético dos mais
altos mistérios, não teme o pomposo hieratismo e se faz de imitador da Bíblia
para voltá-la contra o cristianismo.
A consciência plena de
estilo de uma missão a cumprir, o prazer em aturdir e subjugar, o amor pela mise-en-scène, aí está o que desconcerta
e incomoda em Nietzsche. Ele domina com
virtuose os artifícios da sugestão, sabe destacar com vigor posições e
situações fundamentais diante do mundo e das coisas, delinear um retrato do homem
e conferir-lhe o esplendor de um ídolo.
(FINK, Eugene. "Nova
experiência do mundo em Nietzsche." In: Marton, Scarlett (org. ) Nietzsche hoje? São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 168-9)
3. Moral nobre
e moral escrava
Aqui, Nietzsche traça, com seu estilo direto e irreverente, as
características que demarcam os dois tipos de vida, representados pelas duas
morais: a nobre (ou dos senhores) e a escrava.
Numa perambulação pelas
muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e
continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam
juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos,
e uma diferença fundamental sobressaiu.
Há uma moral dos senhores e uma
moral de escravos; acrescento de imediato
que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também
tentativas de mediação entre as duas morais, e, com ainda maior freqüência,
confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes inclusive dura
coexistência até mesmo num homem, no interior de uma só alma.
As diferenciações morais de
valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou
agradavelmente cônscia da sua diferença em relação à dominada, ou entre os
dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso, quando os dominantes
determinam o conceito de "bom", sao os estados de alma elevados e
orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais
se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os
despreza. Note-se que, nessa primeira
espécie de moral, a oposição "bom" e "ruim" significa tanto
quanto "nobre" e "desprezível"; a oposição "bom"
e "mau" tem outra origem.
Despreza-se o covarde, o
medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o
desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie
canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo,
o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que so, o mesquinho, o
que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar
obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa
maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o mentiroso - é crença básica
de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós, verdadeiros"- assim se
denominavam os nobres da Grécia antiga.
É óbvio que as designações
morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de forma derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral
partem de questões como "por que foi louvada a ação
compassiva?". O homem de espécie
nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de
ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si",
sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores. Tudo o que
conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si.
Em primeiro plano está a
sensação de plenitude, de poder que quer elevada, a consciência de uma riqueza
que gostaria de ceder e presentear - também o homem nobre ajuda o infeliz, mas
não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela abundância de
poder.
O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre
si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer exerce rigor e dureza
consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro.
"Um coração duro me
colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa
expressão poética da alma de um orgulhoso viking. Uma tal espécie de homem se orgulha
justamente de não ser feito para a
compaixão: daí o herói da saga acrescentar, em
tom de aviso, que "quem quando jovem não tem o coração duro, jamais o
terá". Os nobres e bravos que assim
pensam estão longe da moral que vê o sinal distintivo do que é moral na
compaixão, na ação altruísta ou no desintéressement
[desinteresse]; a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical
hostilidade e ironia face à "abnegação" pertencem tão claramente à
moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o
"coração quente".
São os poderosos que entendem de venerar, esta é sua arte, o
reino de sua invenção. A profunda reverência pela idade e pela origem - todo o
direito se baseia nessa dupla reverência -, a fé e o preconceito em favor dos
ancestrais e contra os vindouros são algo típico da moral dos poderosos; e
quando, inversamente, os homens das "idéias modernas" crêem quase
instintivamente no progresso" e no "porvir", e cada vez mais
carecem do respeito pela idade, ia se acusa em tudo isso a origem não-nobre
dessas "idéias"
O que faz uma moral dos
dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, é o
rigor do seu princípio básico de que apenas frente aos iguais existem deveres;
de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-se
agir ao bel-prazer ou como quiser o coração", e em todo caso "além do
bem e do mal": aqui pode entrar a compaixão, e coisas do gênero. A capacidade e o dever da longa gratidão e da
longa vingança - as duas somente com os iguais -, a finura na retribuição, o
refinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos
(como canais de escoamento, por assim dizer, para os afetos de inveja,
agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas são características da moral nobre, que, como
foi indicado, não é a moral das "idéias modernas", sendo hoje difícil
percebê-la, portanto, e também desenterrá-la e descobri-la.
É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos,
prisioneiros, sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que terão em
comum suas valorações morais?
Provavelmente uma suspeita pessimista face a toda a situação do homem achará expressão, talvez uma
condenação do homem e da sua situação. O
olhar do escravo não é favorável às virtudes do poderoso: é cético e desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo
"bom" que é honrado por ele gostaria de convencer-se de que nele a
própria felicidade não é genuína.
Inversamente, as propriedades que servem para
aliviar a existência dos que sofrem são postas em relevo e inundadas de luz: a
compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a
diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as honras - pois são as
propriedades mais úteis no caso, e praticamente todos os únicos meios de
suportar a pressão da existência.
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de
utilidade. Aqui está o foco de origem da
famosa oposição "bom" e
"mau" - no que é mau
se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e força que
não permite o desprezo. Logo segundo a
moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores
e precisamente o "bom" que desperta e quer despertar medo, enquanto o
homem "ruim" é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge quando, de modo
conseqüente à moral dos escravos, um leve aro de menosprezo envolve também o
"bom" dessa moral - ele pode ser ligeiro e benévolo porque em todo
caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: é de boa índole, fácil de enganar, talvez um
pouco estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom
homem]. Onde quer que a moral dos
escravos se torne preponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras
"bom" e "estúpido".
Uma última diferença básica:
o ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo:
é de boa índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se torne
preponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e
"estúpido".
Uma última diferença básica:
o anseio de liberdade, o instinto
para a felicidade e as sutilezas do sentimento de liberdade pertencem tão
necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo da
veneração, da dedicação, sintoma regular do modo aristocrático de pensamento e
valoração.
Com isso, pode-se
compreender por que o amor-paixão - nossa especialidade européia - deve
absolutamente ter uma procedência nobre: é notório que ele foi invenção dos cavaleiros-poetas provençais,
aqueles magníficos, inventivas homens do gai
saber [gaia ciência], aos quais a Europa tanto deve, se não deve ela mesma.
(NIETZSCHE, Friedrich. Além do
bem e do mal, § 260. Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo, Companhia das
Letras, 1992, p, 172-5)
ATIVIDADES
1.
Procure, em um bom dicionário, o significado dos
verbetes nobre e escravo e compare os seus sentidos correntes com os que
Nietzsche lhes deu.
2.
Assista a um capítulo de uma novela de televisão e
identifique, nas falas das personagens, valores escravos e valores nobres.
VAMOS REFLETIR
1.
Pelo que entendeu do texto, você acha que os valores
escravos e os valores nobres têm a ver com o poder aquisitivo das pessoas, com
as classes sociais, ou independem disso? Explique.
2. Descreva
as ressonâncias que estas afirmações de Nietzsche encontram em você, sem sua
vida: "quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da
razão, só pode sentir-se sobre a terra como um andarilho. [...] Bem que ele
quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo;
por isso não pode prender o seu coração com demasiada firmeza em nada de
singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria
na mudança e na transitoriedade" (Humano,
demasiado humano § 638)
3.
Comente a afirmação de Gilles Deleuze presente nos
textos selecionados: "toma-se como aurora de nossa cultura a trindade
Nietzsche, Freud, Marx".
4.
Nos eu modo de ver, é difícil viver segundo os valores
nobres apresentados por Nietzsche?
5.
Comente o texto de Nietzsche usado como epígrafe no
início deste capítulo.
CAPÍTULO 2 - UM SOLITÁRIO INCOMPREENDIDO
(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo
Naffah Neto,
FTD, São Paulo,
1996, pág. 21-35)
Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é
somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre a minha
vida; olhei para trás, olhei para a frente, nunca vi tantas e tão boas coisas
de uma vez. Não foi em vão que enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu
podia enterrá-lo9 - o que nele era vida está salvo, é imortal [...] Como não
haveria eu de estar grato à minha vida inteira? E por isso me conto minha vida.
Friedrich Nietzsche, Ecce homo, epígrafe
Nietzsche
nasceu numa família protestante: seus dois avós eram pastores e ele também
chegou a pensar em se tornar um.
Aos cinco anos perdeu o pai e o
irmão, restando-lhe somente a mãe e a irmão. A família mudou-se de Rocken para
Naumburg, onde Nietzsche cresceu e se educou. Em 1858, obteve uma bolsa de
estudos na então famosa Escola de Pforta, onde começou a se distanciar do
cristianismo. Freqüentou, entre 1864 e 1867, as Universidades de Bonn e de
Leipzig, de onde se originou seu interesse por filologia.
Filologia
- Reconstituição histórica da vida do passado por meio da linguagem e,
portanto, do estudo crítico de documentos literários
De filólogo a filósofo
Em 1869 foi
nomeado professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia, Suíça,
onde permaneceu por dez anos e escreveu boa parte de sua obra: O nascimento
da tragédia (l871), A filosofia na época trágica dos gregos (l873),
Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (l873),
Considerações extemporâneas (l873/74) e Humano, demasiado humano (l878/80). O desdobramento do filólogo em filósofo deveu-se
à leitura do livro de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que
exerceu grande influência sobre seus primeiros escritos.
É também desse
período sua amizade com Richard Wagner, a quem, de início, dedicou uma calorosa
admiração, especialmente porque via em obras como Tristão e Isolda ou O anel
dos Nibelungos uma espécie de reencarnação da tragédia grega, da cultura
dionisíaca. Essa admiração foi
arrefecida por volta de 1876, quando percebeu no amigo um prestigiador da
mediocridade cultural alemã, acalentado por um círculo de nacionalistas e
anti-semitas.
Em 1878, ao
receber o libreto de Parsifal, a última obra de Wagner, e notar que era
eivada de preconceitos e superstições cristãs, a amizade esfriou ainda mais,
redundando num distanciamento cada vez maior, que culminou nos famosos textos
em que denunciava a impostura wagneriana: O caso Wagner e Nietzsche contra
Wagner (l888). Apesar de não ter
lido os textos na época - até porque não estavam publicados -, Wagner percebeu
que ganhara um crítico de grosso calibre, tanto que proibiu, desde então, que o
nome de Nietzsche fosse pronunciado nos limites de Bayreuth, sob qualquer
alegação.
Richard Wagner - Compositor
alemão do século XIX, criou, em oposição à ópera tradicional, o que ele
denominou drama-musical, em que música e libreto formam uma unidade intrínseca
expressiva, articulando um trabalho orquestral extremamente refinado ao canto e
à ação cênica. Considerado o último compositor
romântico, criou grandes inovações na composição musical, um marco
revolucionário nesse sentido. Uma das
características dos seus dramas-musicais é a repetição e harmonização de vários
leitmotive - associados a personagens, acontecimentos ou temas -, o que lhes
imprime uma temporalidade em espiral, de múltiplos centros e anéis.
Solidão,
incompreensão e doença
Os primeiros dez
anos em Basiléia já revelaram a Nietzsche aquelas que seriam as tônicas de sua
vila: a incompreensão de seus textos por seus contemporâneos; a solidão,
somente quebrada por alguns poucos amigos; a saúde precária, cujos distúrbios
se manifestaram em 1873 com enxaquecas, dores na vista e problemas estomacais e
que evoluiriam para a perda da razão em 1889.
Na época, a doença não foi diagnosticada; depois, suspeitou-se de um
quadro degenerativo de origem sifilítica.
Foi em função da
saúde precária que Nietzsche se viu obrigado a pedir demissão da Universidade
de Basiléia, em 1879, e começou uma vida errante, percorrendo a Suíça, a
Itália, a França e a Alemanha; nesse período, o tempo maior que conseguiu parar
em algum lugar foi seis meses. Nessa
errância, que durou até a perda da razão, produziu o restante de sua obra: Aurora
(l880/1881), A gaia ciência (l881/82), Assim falou Zaratustra (l883/85), Além
do bem e do mal (l885/86), Genealogia da moral (l887), Crepúsculo dos ídolos (l888),
O Anticristo (l888), Ecce homo (l888), além de uma série de fragmentos e
notas que somente foram publicados após a sua morte.
Pedidos de
casamento recusados, interesses e afetos não-correspondidos teceram a vida
amorosa de Nietzsche. Dentre essas
recusas, destaca-se a paixão não-correspondida por Lou Andréas-Salomé - uma
jovem russa então em viagem com a mãe pela Europa -, que posteriormente seria
conhecida como psicanalista e colaboradora de Freud.
Nessa época, o
que se formou foi um triângulo amoroso entre Nietzsche, seu amigo Paul Rée e a
jovem viajante, entremeado por intrigas e pela oposição preconceituosa da
família de Nietzsche à relação amorosa. O episódio terminou com a união de Lou
e Paul Rée e o rompimento de Nietzsche com ambos e com a própria família. Já nessa época, ele usava os mais diferentes
tipos de drogas para aplacar seus sintomas: sais, soporíferos e haxixe. Após a desilusão com Lou Salomé,
perseguiram-no idéias de suicídio: por três vezes, ingeriu doses abusivas de
narcóticos.
Foi como um
solitário incompreendido que Nietzsche viveu até o fim de seus dias. Numa carta ao amigo Overbeck (Cf. MARTON, 1991: 75-6), ele assim se expressa:
Se eu
pudesse dar-lhe uma idéia do meu sentimento de solidão! Nem entre os vivos nem entre os mortos, não
tenho alguém de quem me sinta próximo.
Não se pode descrever como é aterrorizador; e apenas o treino em
suportar esse sentimento e o caráter progressivo de sua evolução desde a tenra
infância permitem-me compreender que não tenha sido totalmente aniquilado por
ele.
A incompreensão
da obra de Nietzsche por seus contemporâneos chegou ao ponto de o desinteresse
das editoras obrigar o filósofo a custear, do próprio bolso, a Publicação de
suas últimas obras. O reconhecimento só
viria no final da vida e, mesmo assim, só ganharia força total após a sua
morte. Com tudo isso, ele reconhecia, a partir do valor se suas obras, a
importância de sua trajetória existencial: "Como não haveria eu de estar
grato à minha vida inteira?", diz ele no início de Ecce homo.
Encarnando
cada um dos personagens
Das grandes
relações que Nietzsche manteve na vida, a maior e mais importante foi com um
fiel amigo-colaborador, que o acompanhou até o fim e que foi o responsável pela
compilação de todas as suas obras finais: Heinrich Koselitz, que Nietzsche
carinhosamente rebatizara com o apelido de Peter Gast (Pedro, o hóspede), por
razões desconhecidas para os seus biógrafos, e que assim ficou conhecido desde
então. Peter Gast era, além de tudo,
músico, o que o habilitou também a transcrever em partituras as Poucas e
desconhecidas composições musicais que Nietzsche produziu na vida. A ele se referiu o compositor Caetano Veloso,
numa de suas músicas:
Peter
Gast,
o
hóspede do Profeta sem morada,
O menino
bonito Peter Gast,
Rosa do
crepúsculo de Veneza.
Os
primeiros sinais de degeneração mental de Nietzsche aparecera em janeiro de
1889; a doença alastrou-.se, levando-o a uma total perda d identidade. A partir de então, ele se designava pelos
vários personagens d sua obra: Dioniso, Cristo e outros tantos com os quais se
identificara e algum momento da vida.
De qualquer
forma, independentemente da doença, talvez seja possível dizer que Nietzsche,
de fato, encarnou na própria pele cada um desses personagens, enquanto deles
falava. Nada de estranho, pois, que se
designasse por seus nomes no final da vida.
Nesse estado crepuscular, ainda viveu mais de dez anos sob custódia familiar,
primeiro da mãe e depois da irmã. As conseqüências funestas dessa custódia
foram a usurpação e deturpação de sua obra, já mencionadas anteriormente.
Morreu em 25 de
agosto de 1900, pouco tempo depois da virada do século.
TEXTOS
SELECIONADOS
1. À
superfície de um mar agitado
Nesta
descrição biográfica de um período da vida de Nietzsche, Daniel Halévy nos dá
uma idéia bastante sugestiva do fervilhar de acontecimentos que articulava a
sua existência naqueles primeiros tempos.
Esse segundo ano
de estudos em Leipzig é incontestavelmente feliz. Nietzsche goza plenamente da segurança
intelectual que o domínio de Schopenhauer lhe assegura. Escreve ao amigo Deussen:
Pedes-me uma
apologia de Schopenhauer? Direi
simplesmente isto- olho a vida de frente, com coragem e liberdade, desde que
meus pés encontraram um chão em que pisar.
As águas da perturbação, para me servir de uma metáfora, não me desviam
de meu caminho, porque não me abalam; sinto-me em casa nessas regiões obscuras.
Ano de recolhimento ativo e de
camaradagem. Nietzsche desinteressa-se das questões públicas, e com razão: elas
deixaram de ter qualquer grandeza. A
Prússia, mal conquistou sua vitória, retornou ao nível da vida cotidiana. os
falatórios da tribuna e da imprensa sucederam à ação dos grandes homens, dos
dois grandes, Bismarck e Moltke; Nietzsche retira-se.
"Que uma multidão de
cérebros medíocres se ocupe de coisas com importância e conseqüências
reais", escreve, "é um pensamento assustador." Talvez haja algum
remorso por se ter deixado seduzir por uma peripécia dramática. Acontece, de quando em quando, que a
intervenção de um gênio confira algum interesse, algum brilho à história. Mas trata-se apenas de um brilho artificial,
e a história só se transfigura por um breve momento. E esse o tema de uma nota manuscrita:
Será a história mais do que o
combate de interesses inúmeros e diversos, a lutarem pela existência? As grandes "idéias", onde muitos
julgam descobrir as forças diretrizes desse combate, não são mais do que reflexos
que passam à superfície do mar agitado.
Elas não têm nenhum efeito sobre o mar, mas dão muitas vezes uma bela
aparência às ondas, enganando assim aquele que as contempla. Pouco importa que essa luz emane de uma lua,
de um sol ou de um fiaria]: as ondas serão um pouco mais ou um pouco menos
brilhantes. Eis tudo.
Toma-se de paixão por seu mestre
Ritschl: "Esse homem é minha consciência científica", diz ele. Dirige, vigia de perto os estudos da
sociedade que fundou. Imagina mais
trabalhos do que é capaz de realizar, e propõe-nos a seus amigos. Guarda para si próprio o exame das fontes de
Diógenes Laércio, esse compilador a quem devemos tantas informações valiosas
sobre os filósofos da Grécia.
Em abril, organiza e redige suas
notas: tarefa árdua; não quer
escrevê-las à maneira dos eruditos, que ignoram o
sabor das palavras, o equilíbrio das frases.
Quer escrever, no o difícil e clássico do vocábulo:
Finalmente percebo a
verdade. Vivi por muito tempo num estado
de inocência estilística. O imperativo
categórico "Deve-se escrever, tens de escrever" me despertou. Tentei escrever bem. É um trabalho que eu
havia esquecido desde que saí de Pforta, e a princípio a pena falseou-me entre
os dedos. Sentia-me impotente, irritado. Resmungavam em meus ouvidos os
princípios da boa linguagem estabelecidos por Lessing, Lichtenberg,
Schopenhauer. Lembrava-me pelo menos, e
era esse o meu consolo, que essas três autoridades são acordes em dizer que é
difícil escrever bem, que nenhum homem escreve naturalmente bem, e que, para
adquirir um estilo, é preciso muito trabalho e persistência... Antes de tudo,
quero seduzir com meu estilo alguns espíritos felizes; dedicar-me-ei a essa
tarefa como me dedico às minhas teclas, e pretendo executar, por fim, não
apenas trechos aprendidos, mas livres fantasias, livres na medida em que isso é
possível, ainda que sempre lógicas e belas.
Ocupação e alegria de um outro
gênero: ligou-se a um aluno de Ritschl, Erwin Rohde, espírito forte e laborioso
que tem uma brilhante carreira pela frente.
Nietzsche punha muito ardor em suas amizades. Seus colegas de Pforta se
haviam dispersado: Gersdorff em Goettingen, Deussen em Berlim; Nietzsche não os
esquecia, escrevia-lhes com freqüência.
Mas as cartas trocadas não satisfaziam sua necessidade de comunicação
constante, íntima. Erwin Rohde
tornou-se, e continuou sendo por muito tempo, o seu maior amigo. Nietzsche admirou-o, atribuindo-lhe
generosamente uma genialidade que nele era apenas o reflexo de um outro.
Todas as noites,
depois dos dias cansativos, os rapazes voltavam a se encontrar. Nos meses de bom tempo, percorriam a cavalo
os arredores de Leipzig. Na volta,
entravam na Universidade com botas e de chicote na mão, e os colegas admiravam
esses formosos atletas, líderes em tudo.
"Pela primeira vez" escreve Nietzsche, "experimento o
prazer de uma amizade que se constrói sobre um pano de fundo moral e
filosófico. Ocorrem discussões
calorosas, pois discordamos em muitos pontos.
Mas basta que nossas conversas assumam um aspecto mais profundo, e 1090
os pensamentos discordantes desaparecem e instala-se entre nós um calmo e total
acordo." Eram ambos schopenhauerianos.
Em agosto, com a chegada das
férias, deixam Leipzig e vão explorar, de mochila às costas, as colinas
arborizadas que se elevam nos confins da Boêmia e da Saxônia. Vão de albergue em albergue, sempre andando e
sempre conversando. Julgam com
severidade os recentes trabalhos dos filólogos alemães, dominados pela
minúcia. O que se esqueceram de
estudar? O ablativo em Tácito, a evolução
do gerúndio nos autores latinos da África, a língua da Ilíada em seus
aspectos mais particulares. Mas a beleza
da Ilíada é única, ela era sentida por Goethe, e eles a ignoram. É
chegado o momento de pôr termo à pesquisa erudita. Isso, convêm eles, será tarefa da nossa
geração. Melhor instruída do que Goethe,
mas guardando fidelidade ao seu gênio, ela se há de apoderar do legado
transmitido pelo passado e colherá os seus frutos. A ciência, também ela, deve estar a serviço
do progresso.
Após um mês de
peregrinações, abandonam as florestas e dirigem-se para Meiningen, pequena
cidade em que os músicos da escola pessimista davam uma série de
concertos. Uma carta de Friedrich
Nietzsche nos conservou a crônica desse festival metafísico: "O padre
Liszt presidia os trabalhos. Executou-se
um poema sinfônico de Hans de Bülow, Nirvana, cuja explicação era dada
no programa por meio de máximas schopenhauerianas. Mas a música era terrível. Liszt, no entanto, soube encontrar, de
maneira notável, o caráter desse Nirvana indiano em algumas de suas
composições religiosas, por exemplo, em suas Beatitudes". (Sobre
Wagner, nenhuma palavra. No entanto o seu dia se aproxima.) Nietzsche e Rohde
separam-se logo após essas festas, e voltam para suas famílias.
(Halévy,
Daniel. Nietzsche - uma
biografia. Trad. Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro, Campus, 1989, p. 41-4)
2. O andarilho e o círculo
Neste fragmento, Lou Andréas-Salomé faz
uma analise da obra de Nietzsche, articulando-a à sua vida. Rompimentos, separações e voltas funcionam aí
ligados à imagem do círculo, no eterno retorno: .uma eterna mudança, numa
eterna repetição ".
A primeira
metamorfose que Nietzsche realizou em sua vida situa-se no crepúsculo de
sua infância ou, pelo menos, de sua puberdade. E o rompimento com a fé na
Igreja cristã. Em suas obras, raramente
se menciona essa ruptura.
Não obstante,
ela pode ser considerada o ponto de partida de suas metamorfoses, porque, com
ela, já se esclarece a característica peculiar de sua evolução. Suas
declarações sobre o assunto, que ambos discutimos de forma especialmente
detalhada, diziam respeito sobretudo às causas que produziram o rompimento de
sua fé. Aliás, a maioria dos homens de
inclinação religiosa só é impelida por motivos intelectuais, e em conflitos
dolorosos, a renegar seus conceitos sobre a fé.
Mas, em casos
raros, onde o primeiro alheamento parte da própria vida emocional, o processo é
pacífico e indolor: a razão apenas decompõe o que já estava previamente morto
um cadáver.
No caso de
Nietzsche ocorreu um cruzamento singular dessas duas modalidades: não foram
apenas os motivos intelectuais que, originalmente, o libertaram dos conceitos
inculcados, tampouco deixara a velha fé de corresponder às necessidades de sua
índole. Pelo contrário, Nietzsche, repetidamente acentuava que o
cristianismo da paróquia paterna se assentava à sua essência interior
"liso e suave como uma pele sã", e que, para ele, o cumprimento de
todos os seus mandamentos se tomara tão fácil como a observância de uma
tendência própria. Considerava esse
"talento", por assim dizer, nato e inalienável, para qualquer
religião, uma das causas da simpatia que lhe dispensavam cristãos sérios, mesmo
quando já estava deles separado por um profundo abismo espiritual.
O instinto obscuro que, pela
primeira vez, o expulsou dos círculos de idéias que encarecia e amava,
despertou justamente nesse sentimento de bem-estar, desse cálido "estar em
casa', pelo qual sua essência se sentia envolvida. Para chegar a si mesmo, numa evolução plena,
seu espírito precisava de lutas psíquicas, dores e abalos; era preciso que seu
gênio se separasse desse tranqüilo estado de paz, pois sua força criativa era
dependente da emoção e da exaltação de seu interior. Aqui, pela primeira vez, nos defrontamos na
vida de Nietzsche com o fenômeno da exigência de dor na natureza
decadente".
Em
circunstâncias pacíficas, o guerreiro agride a si mesmo" (Além do bem e
do mal, 76) e exila-se num país de idéias estrangeiras onde, doravante,
está fadado a um eterno vagar, sem descanso.
Doravante, em seu desassossego, Nietzsche abriga uma ânsia insaciável
que aspira pelo paraíso perdido, enquanto a evolução de seu espírito o força, o
tempo todo, a dele se afastar em linha reta.
No diálogo sobre as metamorfoses
que deixara para trás, Nietzsche certa vez expressou um pouco jocosamente o
seguinte:
Sim, desse modo começa agora a
marcha e desse modo prossegue; mas até onde?
Se tudo já está percorrido, para onde se corre nesse caso? Se estivessem esgotadas todas as
possibilidades de combinação, o que sucederia então? de que modo? Não
deveríamos retornar à fé? Talvez uma fé
católica?
E o
pensamento secreto oculto nessa declaração revelou-se nestas palavras,
acrescentadas com gravidade: "Em todo caso, o círculo seria mais provável
que a paralisação".
Um
movimento que retrocede sobre si mesmo, que nunca pára eis, na verdade, o
distintivo de toda a mentalidade de Nietzsche.
As possibilidades de combinação não são de modo algum infinitas; são, ao
contrário, muito limitadas, pois o ímpeto que o leva para a frente, que o faz
ferir-se a si próprio e que não deixa os pensamentos repousarem, brota
integralmente de sua singular personalidade interna: por mais distante
que os pensamentos pareçam divagar, permanecem, contudo, sempre ligados aos
mesmos processos psíquicos que continuamente os forçam a voltar ao domínio de
suas necessidades predominantes.
Veremos
até que ponto a filosofia nietzschiana descreve, com efeito, um círculo, e
como, por fim, o adulto, em algumas de suas vivências mais íntimas e
secretas, se reaproxima do menino, de modo que, para o andamento de sua
filosofia, valem suas próprias palavras: "vejam um rio que, depois de
meandros, flui de volta à nascente" (Assim falou Zaratustra, "Da
virtude amesquinhadora", 1, III, 23).
Não é por acaso que, em seu último período criativo, Nietzsche tenha
chegado à sua mística doutrina de um eterno retorno: a imagem do círculo, de
uma eterna mudança numa eterna repetição, figura como um símbolo
maravilhoso e como um sinal secreto sobre a porta de entrada às suas obras.
(Andréas-Salomé,
Lou. Nietzsche em suas obras. Trad.
José Carlos Martins Barbosa. São Paulo, Brasiliense, 1992, p.
62-5)
3. O
romântico decadente
Neste
aforismo, Nietzsche fala de sua relação com Richard Wagner segundo ele um
romântico de origem francesa que se corrompeu ao identificar-se com os
ideais alemães (representados no texto pelo carola, o bonachão).
Aqui, onde falo
das recreações de minha vida, preciso de uma palavra para exprimir minha
gratidão por aquilo que nela foi, de longe, o que mais profundamente e mais de
coração me recreou. Foi, sem dúvida
nenhuma, o trato mais íntimo com Richard Wagner. Deixo barato o resto de minhas relações
humanas; por nenhum preço eu cederia, de minha vida, os dias de Tribschen, dias
da confiança, da serenidade, dos sublimes acasos - dos instantes profundos...
Não sei o que outros viveram com Wagner; por sobre nosso céu nunca
passou uma nuvem.
E com
isso, mais uma vez, volto à França - não tenho razões, tenho apenas um ricto de
desdém nos lábios contra os wagnerianos e hoc genus omne que acreditam
honrar Wagner achando-o semelhante a si. Assim como sou, em meus mais
profundos instintos, estrangeiro a tudo o que é alemão, a tal ponto que já a
proximidade de um alemão atrasa - assim o primeiro contato com Wagner foi
também a primeira vez em minha vida em que pude respirar: senti que o venerava
como país estrangeiro, como oposto, como o protesto encarnado contra
todas as "virtudes alemãs".
Nós, que fomos
crianças no ar pantanoso dos anos cinqüenta, somos necessariamente pessimistas
quanto ao conceito de "alemão"; não podemos ser senão revolucionários
- não admitiremos nenhum estado das coisas, em que o carola esteja por
cima. Para mim, é perfeitamente
indiferente que ele hoje use outras cores, que se vista de escarlate e envergue
uniformes de hussardo... Pois bem!
Wagner era revolucionário - fugia dos alemães...
Como artista não
se tem nenhuma pátria na Europa fora Paris: a délicatesse de todos os
cinco sentidos artísticos, que a arte de Wagner pressupõe, os dedos para nuances,
a morbidez psicológica encontram-se somente em Paris. Em nenhum outro lugar se tem essa paixão em
questões da forma; essa seriedade na mise-en-scène - é a seriedade
francesa par excellence. Na Alemanha
não se tem nenhum conceito da descomunal ambição que vive na alma de um artista
parisiense. O alemão é bonachão - Wagner
não era nada bonachão...
Já enunciei
suficientemente (em Além do bem e do mal, aforismo 256) onde é o lugar
de Wagner, em que ele tem seus parentes mais próximos: é o romantismo francês
da última fase, aquela espécie de artistas de alto vôo e alto arrebatamento,
como Delacroix, como Berlioz, com um fond de doença, de incurabilidade
em seu ser, puros fanáticos da expressão, virtuoses de ponta a ponta...
Quem foi o
primeiro adepto intelligent de Wagner?
Charles Baudelaire, o mesmo que foi o primeiro a entender Delacroix,
esse típico décadent, em quem uma geração inteira de artistas se
reconheceu - ele foi também, talvez, O último... O que nunca perdoei a
Wagner? Ter condescendido com os
alemães - ter-se tornado alemão do Reich... Até onde a Alemanha
alcança*, ela corrompe a civilização.
(Nietzsche, Friedrich. "Por que sou tão esperto", § 5 Ecce
homo. ln: Nietzsche - Obras. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Abril, 191-8, p. 371-2.)
* O
adjetivo reichsdeutsch ("alemão do Reich") refere-se ao Reich alemão
do período 1871-1938, com suas conotações políticas e ideológicas: não
bastaria, portanto, traduzir simplesmente por "cidadão da Alemanha".
-
"Até onde a Alemanha alcança" (So weit Deutschiand reicht) é um
trocadilho entre essereich e o verbo reichen - "ir",
"estender-se (uma região)". (N. do T.)
4. Aprendendo
a amar o destino
Neste aforismo, Nietzsche realiza uma daquelas
famosas inversões de valores em que as pequenas coisas do cotidiano ganham a
importância e o relevo até então atribuídos às "grandes causas ": as
questões da alma, da virtude, do pecado, da verdade, etc. cedem lugar às da
alimentação, do lugar, do amor-próprio.
E, no final do texto, o filósofo danos uma das mais belas definições do
que ele denominava amor fati (amor ao destino).
Essas pequenas
coisas - alimentação, lugar, clima, recreação, a inteira casuística do
amor-próprio são, para além de todos os conceitos, mais importantes do que tudo
a que se deu importância até agora. Aqui
precisamente é preciso começar a reaprender. Aquilo que até agora a
humanidade ponderou seriamente nem sequer são realidades, são meras imaginações
ou, dito mais rigorosamente, mentiras provenientes dos piores instintos
de naturezas doentes, perniciosas no sentido mais profundo - todos os conceitos
"Deus", "alma", "virtude", "pecado",
"além", "verdade", "vida eterna"... Mas procurou-se
neles a grandeza da natureza humana, sua "divindade"...
Todas as questões da política, da
ordem social, da educação foram falsificadas pela base e pelo fundamento por se
tomarem os homens mais perniciosos por grandes homens - por aprenderem a
desprezar as "pequenas" coisas, quer dizer, as disposições
fundamentais da própria vida... E, se me comparo com os homens que até agora
foram honrados como os primeiros dos homens a diferença é palpável. Nem sequer tenho esses pretensos çç
primeiros" em conta de homens em geral - são para mim vômito da humanidade,
aborto de doença e instintos vingativos: são apenas funestos, no fundo
incuráveis monstros inumanos, que tomam vingança da vida... Disso quero ser o
oposto: minha prerrogativa é ter a suprema finura para todos os signos de
instintos sadios.
Falta em mim qualquer traço
doentio; mesmo nos tempos de mais grave doença, nunca me tornei doentio; é em
vão que se procura em meu ser por um traço de fanatismo. Em nenhum instante de
minha vida se poderá apontar um gesto pretensioso ou patético. O pathos das atitudes não pertence à
grandeza; quem em geral necessita de atitudes é falso... Cuidado com os
homens pitorescos!
A vida se tornou para mim leve,
levíssima, quando reclamava de mim o mais pesado. Quem me viu nos setenta dias desse outono, em
que eu, sem interrupção, só fiz coisas de primeira ordem, que nenhum homem pode
repetir - ou imitar, com uma responsabilidade por todos os milênios depois de
mim, não terá percebido nenhum traço de tensão, mas antes um transbordante
frescor e serenidade. Nunca comi com
mais gosto, nunca dormi melhor.
Não conheço nenhum outro modo de
tratar com grandes tarefas, a não ser o jogo: isso, como sinal de
grandeza, é um pressuposto essencial.
A mínima coação, a expressão sombria, algum tom duro na garganta,
tudo isso são objeções contra um homem, quanto mais contra sua obra!... Não é
permitido ter nervos... Também sofrer com a solidão é uma objeção -
sempre sofri somente com a "multidão"... Absurdamente cedo, aos sete
anos, eu já sabia que nunca me alcançaria uma palavra humana; alguém já me viu
atribulado com isso?
Ainda hoje tenho
a mesma afabilidade para com todos, e até mesmo trato com toda distinção os
mais inferiores; em tudo isso não há um grão de petulância, de desprezo
secreto. Quem eu desprezo adivinha que é desprezado por mim: revolto por
minha mera existência tudo que tem sangue ruim no corpo... Minha fórmula para a
grandeza do homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para
diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o
necessário, e menos ainda dissimulá-lo - todo o idealismo é mendacidade diante
do necessário -, mas amá-lo...
(Nietzsche, Friedrich. "Por que sou tão esperto", § 10
Ecce Homo. ln: Nietzsche - Obras
incompletas. Trad.
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril, 1978, p. 373-4)
ATIVIDADES
1. Pesquise
e descubra alguma poesia que fale do sentimento de solidão. Analise-a .
2. Escreva
um comentário sobre como você foi tocado afetivamente ao ler esta pequena
biografia de Nietzsche
3. Depois
de ler os textos complementares, faça duas colagens com recortes de fotos de
jornais e revistas mostrando o que é viver a vida intensamente para você e para
Nietzsche
VAMOS
REFLETIR
1. Você
acha que a solidão pode ser uma experiência de vida importante?
2. Por
que você acha que os gênios são sempre incompreendidos na época em que vivem?
CAPÍTULO 3 - O ELOGIO AO MUNDO TRÁGICO
(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo
Naffah Neto,
FTD, São Paulo, 1996)
Como é
possível? Como pôde isso acontecer a cabeças como as nossas, nós de ascendência
aristocrática, homens afortunados, bem constituídos, da melhor sociedade, de
nobreza e virtude?" - assim se perguntou durante séculos o grego nobre, em
face das atrocidades e cruezas incompreensíveis com que um dos seus iguais se
havia maculado. "Um deus deve tê-lo enlouquecido , dizia finalmente a si mesmo, balançando a cabeça... [...] Dessa
maneira, os deuses serviam para, até certo ponto, justificar o homem também na
ruindade; serviam como causas do mal.
Friedrich
Nietzsche, Genealogia da moral, Segunda dissertação, § 23
Vivemos num
mundo eminentemente racional. Tudo tem de ter sua lógica, a sua razão de
ser. Entretanto, como já disse
Shakespeare, "há mais mistérios entre o céu e a terra do que pode sonhar a
nossa vã filosofia".
Houve um tempo,
anterior à criação da "vã filosofia", em que os homens realmente
partilhavam dessa visão de mundo. Mais
do que isso: respeitavam esses mistérios.
Trata-se do mundo trágico, que se constituiu na Grécia antiga, entre os
séculos vi e V a.C., e que teve seu declínio justamente a partir do século V
a.C., corn a criação da filosofia socrática, a afirmação crescente do direito e
a universalização de toda a racionalidade que nos atravessa até os dias de
hoje.
Responsabilidade e culpa
O mundo trágico
assinala um período de transição da aristocracia para a democracia, da cidade
regida pelos privilégios dos laços de sangue para a cidade regida pelo direito.
Para nós, é muito difícil imaginar um mundo sem leis válidas para todos os
cidadãos, pois mesmo nos casos de golpes de Estado, ditaduras ou guerras, não é
que as leis não existam; elas simplesmente são suspensas, anuladas ou, então
elaboradas para favorecer a classe dominante/dirigente.
são suspensas,
anuladas ou, então, elaboradas para favorecer a classe dominante/dirigente.
Entretanto, no
mundo trágico, nem a noção de responsabilidade existia totalmente
formada, com todo o peso que tem para nós hoje em dia. Os gregos viviam num mundo povoado de deuses
e heróis, onde - e eles acreditavam nisso! - potências divinas podiam, muitas
vezes, possuiria alma de um homem, enlouquecê-lo, tirá-lo de si, fazendo-o
cometer os atos mais desatinados: crimes, roubos, assassinatos, etc. Ora, como alguém pode ser considerado responsável
pelos atos que cometeu sob a inspiração ou sob o mando de um deus? Não faz nenhum sentido.
Também nessa
época, o direito já procurava instituir uma nova ordem, a do sujeito
responsável, distinguindo crimes cometidos "de bom grado" dos
cometidos "de mau grado", ou seja, na ignorância ou com conhecimento
de causa. Dessa forma, no universo
trágico a avaliação da responsabilidade oscilava entre duas interpretações
diferentes: por um lado, associava-se à noção de falta (hamártema = "erro"
de espírito, polução religiosa, em que o ser humano é tornado por forças
sinistras que o arrastam e enlouquecem); por outro, era engolfada pela noção
legal de delito (adíkema = delito intencional, que deve ser punido, a
ser distinguido de atýchema, acidente imprevisível, não passível de
punição).
Assim, quando um
herói trágico como Édipo fura os próprios olhos ele sem dúvida o faz ao
descobrir que - no mais puro desconhecimento e realizando um oráculo do deus
Apolo - havia matado o seu pai e partilhado o leito de sua mãe, como esposo,
cometendo os crimes de parricídio e de incesto.
Se existe hamártema (uma vez que Édipo realiza esses crimes por
um "erro" de espírito, polução advinda de uma maldição ligada aos
seus descendentes, destino comandado por um oráculo), não se trata, entretanto,
de um adíkema. O herói é,
aí, vítima de um atýchema, não cabendo, pois, interpretar o ato de
cegar-se como motivado por qualquer sentimento de culpa. Ocorre, simplesmente,
que esses olhos não guardavam mais qualquer utilidade diante de um mundo que se
tornara pura desolação, ruína, vergonha. É o que dizem as palavras de Édipo, na
peça Édipo-rei (cf. Sófocles,
1989: 88):
Foi Apolo. Foi Apolo, sem, meu
amigo!
Foi Apolo o autor de meus
males,
De meus males terríveis; foi
ele!
Mas fui eu quem vazou os meus
olhos.
Mais ninguém. Fui eu mesmo, o
infeliz!
Para que serviriam meus olhos
Quando nada me resta de bom
Para ver? Para que serviriam?
Aquém e além dos deuses
No universo
trágico, quem cometia hýbris era todo aquele que, através de um ato,
ultrapassasse a medida humana, seja em direção à dimensão ilimitada de um deus,
seja em direção à dimensão irrefletida de um animal. Édipo, por exemplo, ao
cometer parricídio e incesto ultrapassa essa medida, dado que esses crimes são
prerrogativas dos deuses ou da inconsciência animal. É verdade que seus atos
não tiveram caráter intencional, que foram marcados pelo puro desconhecimento:
ele matara um velho ao entrar em Tebas, porque fora provocado e açoitado por
ele, sem saber que era Laio, rei de Tebas e seu pai; da mesma forma, recebera a
mão da rainha Jocasta como prêmio por ter decifrado o enigma da Esfinge livrado
a cidade do monstro. Entretanto, apesar
do desconhecimento, há uma hýbris que atravessa todo o seu percurso, tal qual
aparece na tragédia Édipo-rei, de Sófocles: o orgulho, a prepotência, que o
acompanham desde a saída de Corinto e o levam até o final da trama, a tentar
descobrir o assassino do rei Laio, sem suspeitar que ele pudesse ser o
assassino, sem sequer imaginar que Laio pudesse ser seu pai. Embora oficialmente Édipo fosse filho dos
reis de Corinto, ele sabia da possibilidade de ser apenas filho adotivo, pois,
certa vez, um cortesão embriagado jogara-lhe essa ofensa no rosto. Também havia consultado o Oráculo de Delfos,
santuário do deus Apolo, e recebido a previsão de que mataria seu pai e
partilharia o leito de sua mãe. Foi
então que se desviou de Corinto e tomou o caminho de Tebas, imaginando que,
assim, escaparia da previsão. Opera, pois, aí, uma prepotência que desconsidera a força do oráculo, que se
imagina acima das injunções do destino humano, imune à circunstâncias capazes
de produzir desgraça e infortúnio, como se não habitasse este mundo, feito de
surpresas e acasos inesperados, como se a vida não fosse meramente No final de tudo, ao se perceber completamente cego à
trama que determinara sua vida, Édipo cega-se de fato, furando os olhos: na
escuridão, deverá aprender a "ver" o mundo invisível das
forças que ele desconsiderara até então, aquele que opera sob o mundo das
formas visíveis e que os gregos chamavam de moîra (= destino).
Roberto Calasso em seu livro As núpcias de Cadmo e
Harmonia mostra que, na Grécia arcaica, a noção de culpa carregava
um sentido completamente diverso daquele que, mais tarde, o mundo ocidental lhe
daria: estava associada à idéia de delito, mas como algo que pertence à vida,
não sendo depositada em ninguém em especial.
Por essa razão, deslocava-se sempre por vários supostos
"sujeitos", sem nunca se centrar numa pessoa. Assim, culpada foi a faca que matou o boi; ou
culpado foi o próprio boi, que comeu o bolo oferecido aos deuses e foi então,
morto por um camponês enfurecido - segundo um mito que nos conta a origem dos
sacrifícios de animais aos deuses. Nesse exemplo, o camponês pode livrar-se
facilmente da culpa, deslocando-a apra seres que, não tendo o Dom da palavra,
não sabem se defender, como a faca ou o boi.
No mundo trágico, a cosia era um pouco diferente, mas
não inteiramente. Se já se podia acusar o autor de um crime por adíkema, nunca
se podia ter certeza de que ele não fora de alguma forma comandado por uma
potência religiosa, de que não cumprira o desígnio de algum deus. Assim, por
exemplo nas Eumênides de Ésquilo, após ter assassinado sua mãe (como
vingança pela morte de seu pai, que ela e o amante haviam apunhalado), Orestes
poderá justificar seu crime dizendo que foi ordenado por Apolo, acabando por
ser absolvido por Palas Atenas. Todos esses deslocamentos serviam para afastar
a culpar apara esferas distantes, desconhecidas, libertando o homem do seu peso
moral.
Essa possibilidade de projetar em forças religiosas a
responsabilidade por seus desvarios era uma das grandes vantagens que Nietzsche
via no mundo trágico, uma vez que, por meio do sentimento de culpa, o homem
moderno se volta contra si próprio e ataca, desqualifica, uma dimensão
fundamental de seu ser: a agressividade, além de outros afetos considerados
pouco "dignos", tais como ódio, ciúme, inveja. Ora, o homem trágico
sabia, muito mais do que qualquer um de nós, respeitar esse lado escuro da
alma, ele sabia que, quando era tomado por certos impulsos vitais sob a
possessão de um deus e ficava fora de si, ocorriam desgraças.
Entretanto, em outras circunstâncias esses mesmos
impulsos, quando bem dirigidos, eram forças importantes, seja de criação, seja,
pelo menos, de apoio vital: a agressividade como força transformadora (em
processos de autodefesa); o ódio (como um aliado da agressividade, nesses
mesmos processos; o ciúme e a inveja como forças de auto-sustentação, em
momentos em que a nossa existência está alienada de si própria, só capaz de
desejar o que fantasiamos que o outro recebe ou possui.
Esse respeito
integral às forças vivas, nos trágicos, advinha do fato de não conceberem as
ações como totalmente centradas nos "egos", de postularem um
universo múltiplo e polivalente, pelo qual os homens eram atravessados de ponta
a ponta. Os crimes, os delitos, tinham origem justamente no que eles denominavam hýbris
(que significa desmesura), ou seja, em estados em que os indivíduos se
centravam em si próprios, fechando-se no próprio poder, inflando-o para aquém
ou além da medida, dos limites da condição humana, e esquecendo-se das forças
misteriosas que os dominavam. Nesses
estados, ficavam à mercê dessas forças, fora de si, cegos, advindo daí atos de
conseqüências imprevisíveis (hamártema).
Quando
voltavam a si, tinham uma dívida a resgatar com aqueles seres atingidos por
esses atos, e essa dívida se transmitia a seus descendentes. Então, sofriam as punições - impostas pelos
deuses ou pelos homens - e choravam suas dores, num castigo diretamente
provocado pelo seu orgulho, pela ausência de uma avaliação correta de seu
tamanho, de sua medida, por terem se esquecido de que erram apenas homens e
aspirado à condição divina, ilimitada.
Quão nefastas
eram, pois, as conseqüências quando os homens se colocavam como centro do
mundo, no puro esquecimento das forças do destino, invisíveis,
misteriosas e transcendentes!
As forças do destino
De acordo com a mitologia grega, o destino é
representado pelas Moîras, as três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) que fiam
dobram e cortam o fio da vida.
Personificam a "porção" de vida, felicidade e desgraça que
cabe a cada um neste mundo. Tanto as
entidades tecelãs como o destino que elas tecem possuem o mesmo nome (moîra).
Mesmo diante de
todos os castigos e sofrendo inúmeras dores, o homem trágico estava livre da
pior delas: a auto-acusação, a autoflagelação ou seja, aquilo que denominamos sentimento
de culpa.
Um distanciamento estético
A tragédia
ensinava uma sabedoria de viver isenta de qualquer conotação moral. Ao deslocar a hýbris e os
acontecimentos nefastos que dela decorriam para a vida de um herói, criando um
distanciamento estético, a tragédia mantinha essas forças atuante e visíveis,
ao mesmo tempo que evitava sua perigosa destrutividade. Assim, em vez de ser
atravessado por elas de forma descontrolado, o
homem grego podia presenciar o herói nessa condição e aprender através
das suas desgraças. A tragédia funcionava, assim, como uma escola de vida.
É
importante lembrar, aqui, que a tragédia grega era um acontecimento público,
encenado em grandes estádios. Havia concursos de tragédias, com encenação das
vencedoras em grandes festivais. A tragédia originalmente envolvia a música, o
canto e a dança, além da representação teatral (que, por sua vez, pressupõe a
poesia e as artes cênicas); reunia, nesse sentido todas as formas artísticas
entrelaçadas numa mesma manifestação.
O grande elogio
mundo trágico, Nietzsche o realizou em seu primeiro livro, o nascimento da tragédia. Aí ele descreve a tragédia
como união de dois impulsos básicos da natureza: o impulso apolíneo e o impulso apolíneo.
Ao impulso
dionisíaco, assim nomeado em referência o deus Dioniso, pertencem todas as
forças que estão presentes ira vida sob a forma de êxtase, união cósmica com a
natureza em alegria ou sofrimento, expansão, intensidade, fecundidade, eterna
transmutação.
Dioniso é o caos
originário, o sem-fundo proliferante a partir do qual se produzem todas as
formas; o conjunto das forças do mundo em eterno movimento de expansão e de
intensificação,
prenhe de virtualidades,
aspirando a alguma forma possível.
Ao impulso
apolíneo, que faz referência o deus Apolo, pertencem as forças ligadas a
processos de dar forma, limites, contornos, individualidade, clareza e direção
a impulsos originalmente caóticos. A tragédia realiza, pois, essa união dos
dois impulsos, ao dar forma estética às profusões transbordantes da vida.
Entretanto, a
angústia diante dos perigos desse caos originário, dionisíaco, levou o homem
grego a achar que não bastava disfarçá-lo, sob o manto da bela forma apolínea:
era preciso discipliná-lo, ordená-lo, dividindo-o em verdades e falsidades,
em categorias de Bem e de Mal. Era preciso substituir esse saber
intuitivo, artístico, por um conhecimento racional, capaz de permitir o
controle do mundo.
Isso foi
realizado pela metafísica e pela moral, a primeira fundando um
mundo verdadeiro por meio da razão; a segunda fundando um mundo
bom por meio do imperativo moral.
Mas, ao fazer isso, o homem grego passava a selecionar, filtrar os
impulsos da natureza: doravante somente aqueles disciplináveis e ordenáveis em
termos de valores de Verdade e de Bem passariam na seleção. E a vida, que para os trágicos era
integralmente justificada, passou a ter uma parte considerada falsa e outra má,
portanto ambas repudiáveis.
Com a
filosofia socrática nasciam os valores metafísicos e os valores
morais, transferindo o l6gos (= razão) e a dikê (= justiça),
que para os trágicos eram imanentes ao cosmos, para a esfera das habilidades e
decisões humanas, dando forma, então, às noções de inteligência,
responsabilidade e culpa. O homem, finalmente, ocupava o centro do mundo,
esconjurando todas as forças misteriosas que um dia aprendera a respeitar. Rapidamente, a tragédia declinou e
desapareceu.
A Ésquilo,
Sófocles e Eurípedes (que Nietzsche já considerava um trágico decadente)
seguiram-se Sócrates, Platão, Aristóteles.
A vida perdia sua fecundidade e sua profusão cósmica em formas
disciplinadas, ordenadas.
A intensidade cedia lugar ao
meio-termo; o mundo real, multiproliferante, ao mundo ideal - o mundo das
Idéias platônicas, o universo dos conceitos e da lógica aristotélicos - à
medida que esse segundo mundo, o ideal, tornava-se critério do primeiro,
passando a avaliá-lo, discriminá-lo selecioná-lo, hierarquizá-lo, ou, num só
termo, a controlá-lo a partir de critérios metafísicos e morais, quer dizer, de
critérios racionais.
Quando surgiu o
cristianismo, mais tarde, ele só veio reforçar e dar forma a esse ascetismo,
através da noção de pecado, que se sobrepôs à de culpa. O homem radiante, inocente, puro esplendor,
que já se tornara responsável e culpado, torna-se, então, pecador, num mundo
gerador de pecado, só lhe restando renunciar à vida terrena, "má", e
ao mundo real g@ pecaminoso", por uma vida eterna, "boa", e um
mundo imaginário, "redentor".
Estava fundada a cultura ocidental.
TEXTOS SELECIONADOS
1. A
cidade fazendo-se teatro
Dois
dos mais renomados helenistas da atualidade, Jean-Pierre Vernant e Pierre
Vidal-Naquet, traçam a fisionomia do contexto em que a tragédia se desenvolveu, das tensões e
ambigüidades que a atravessam como expressão artística.
A tragédia surge na Grécia no fim do século VI a.C.
Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se tinha esgotado e
quando, no século IV, na Poética, procura estabelecer--lhe a teoria,
Aristóteles não mais compreende o que é
o homem trágico que, por assim dizer, se tornara estranho para ele.
Sucedendo à epopéia e à poesia lírica, apagando-se no
momento em que a filosofia triunfa, a tragédia, enquanto gênero literário,
aparece como a expressão de um tipo particular de experiência humana, ligada a
condições sociais e psicológicas definidas. Esse aspecto de momento histórico,
localizado com precisão no espaço e no tempo, impõe certas regras de método na
interpretação das obras trágicas.
Cada peça constitui uma mensagem encerrada num texto,
inscrita nas estruturas de um discurso que, em todos os níveis, deve constituir
o objeto de análises filológicas, estilísticas e literárias adequadas. Mas esse texto não pode ser compreendido
plenamente sem que se leve em conta um contexto. É em função desse contexto que
se estabelece a comunicação entre o autor e seu público do século V e que a obra
pode reencontrar, para o leitor de hoje, sua plena autenticidade e todo seu peso
de significações.
Mas o que entendemos por contexto? Em que plano da realidade o situaremos? Como veremos suas relações com o texto? Trata-se, em nossa opinião, de um contexto
mental, de um universo humano de significações que é, consequentemente,
homólogo ao próprio texto ao qual o referimos: conjunto de instrumentos verbais
e intelectuais, categorias de pensamentos, tipos de raciocínios, sistemas de
representações, de crenças, de valores, formas de sensibilidade, modalidade de
ação e do agente.
A esse propósito, poder-se-ia falar de um mundo
espiritual próprio dos gregos do século V, se a fórmula não comportasse um grave risco de erro. Ela, com efeito, faz supor que existiria em
algum lugar um domínio espiritual já constituído e que a tragédia apenas teria
que apresentar, à sua maneira, um reflexo dele.
Ora, não há universo espiritual existente em si, fora das diversas
práticas que o homem desenvolve e renova continuamente no campo da vida social
e da criação cultural. Cada tipo de
instituição, cada categoria de obra possui seu próprio universo espiritual que
é preciso elaborar para que se constitua em disciplina autônoma, em atividade
especializada, correspondente a um domínio particular da experiência humana.
Assim, o universo espiritual da religião está
plenamente presente nos ritos, nos mitos, nas representações figuradas do
divino; quando se edifica o direito no mundo grego, ele toma sucessivamente o
aspecto de instituições sociais, de comportamentos humanos e de categorias
mentais que definem o espírito jurídico, por oposição a outras formas de
pensamento, em particular às religiosas.
Assim, também com a cidade desenvolve-se um sistema de instituições e de
comportamentos, um pensamento propriamente político. Ainda aí é nítido o contraste com as antigas
formas míticas de poder e de ação social que a pólis substituiu
juntamente com as práticas e a mentalidade que lhes eram solidárias.
Não é diferente o que se dá com a tragédia. Ela não poderia refletir uma realidade que,
de alguma forma, lhe fosse estranha. É ela própria quem elabora seu mundo
espiritual. Só há visão e objetos
plásticos na pintura e pela pintura. A
própria consciência trágica nasce e se desenvolve com a tragédia. É
exprimindo-se na forma de um gênero literário original que se constituem o
pensamento, o mundo, o homem trágicos.
Então,
utilizando uma comparação espacial, poderíamos dizer que o contexto, no sentido em que o entendemos, não se
situa ao lado das obras, à margem da tragédia; está não tanto Justaposto ao
texto quanto subjacente a ele. Mais que
um contexto, constitui um subtexto que uma leitura erudita deve decifrar na
própria espessura da obra por um duplo movimento, uma caminhada alternada de
idas e vindas.
É preciso, em primeiro lugar, situar a obra, alargando
o campo da pesquisa ao conjunto das condições sociais e espirituais que
provocaram a aparição da consciência trágica.
Mas é preciso, em seguida, concentrá-lo exclusivamente na tragédia,
nisso que constitui sua vocação própria- suas formas, seu objeto, seus
problemas específicos. Com efeito,
nenhuma referência a outros domínios da vida social - religião, política,
direito, ética - poderia ser pertinente, se também não se mostrar como,
assimilando um elemento emprestado para integrá-lo à sua perspectiva, a
tragédia o submeteu a uma verdadeira transmutação.
Tomemos um exemplo: a presença quase obsessiva de um
vocabulário técnico do direito na língua dos Trágicos, sua predileção pelos
temas de crime de sangue sujeitos à competência de tal ou tal tribunal, a
própria forma de julgamento que é dada a certas peças exigem que o historiador
da literatura, se quer apreender os valores exatos dos termos e todas as
implicações do drama, saia de sua especialidade e se torne historiador do
direito grego. Mas no pensamento
jurídico ele não encontrará luz capaz de iluminar diretamente o texto trágico
como se este fosse apenas um decalque daquele.
Para o intérprete, trata-se apenas de algo prévio que finalmente deve
levá-lo de volta à tragédia e ao seu mundo a fim de explorar-lhe certas
dimensões que, sem esse desvio pelo terreno do direito, ficariam dissimuladas
na espessura do texto.
Nenhuma tragédia, com efeito, um
debate jurídico, nem o direito comporta em si mesmo algo de trágico. As palavras, as noções, os esquemas de
pensamento são utilizados pelos poetas de forma bem diferente da utilizada no
tribunal ou pelos oradores. Fora de seu
contexto técnico, de certa forma, eles mudam de função e, na obra dos Trágicos,
misturados e opostos a outros, vieram a ser elementos de uma confrontação geral
de valores, de um questionamento de todas as normas, em vista de uma pesquisa
que nada mais tem a ver com o direito e tem sua base no próprio homem: que ser
é esse que a tragédia qualifica de deinós, monstro incompreensível e
desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lúcido e
cego, senhor de toda a natureza através de seu espírito industrioso, mas
incapaz de se governar a si mesmo? Quais
são as relações desse homem com os atos sobre os quais o vemos deliberar em
cena, cuja iniciativa e responsabilidade ele assume, mas cujo sentido
verdadeiro o ultrapassa e a ele escapa, de tal sorte que não é tanto o agente
que explica o ato, quanto o ato que, revelando imediatamente sua significação
autêntica, volta-se contra o agente, descobre quem ele é e o que ele realmente
fez sem o saber? Qual é, enfim, o lugar
desse homem num universo social, natural, divino, ambíguo, dilacerado por
contradições, onde nenhuma regra aparece como definitivamente estabelecida,
onde um deus luta contra um deus, um direito contra um direito, onde a justiça,
no próprio decorrer da ação, se desloca, gira sobre si mesma e se transforma em
seu contrário?
A
tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela
fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos
políticos e judiciários. Instaurando sob
a autoridade do arconte epônimo, no mesmo espaço urbano e segundo as mesmas normas
institucionais que regem as assembléias ou os tribunais populares, um
espetáculo aberto a todos os cidadãos, dirigido, desempenhado julgado por
representantes qualificados das diversas tribos, a cidade se faz teatro; ela se
toma, de certo modo, como objeto de representação e se representa a si própria
diante do público.
Mas se a
tragédia parece, assim, mais que outro gênero qualquer, enraizada na realidade
social, isso não significa que seja um reflexo dela. Não reflete essa
realidade, questiona-a. Apresentando-a
dilacerada, dividida contra si própria, torna-a inteira problemática. O drama traz à cena uma antiga lenda de
herói. Esse mundo lendário, para a
cidade, constitui o seu passado - um passado bastante longínquo para que,
entre as tradições míticas que encarna e as novas formas de pensamento
jurídico e político, os contrastes se delineiem claramente, mas bastante
próximo para que os conflitos de valores sejam ainda dolorosamente sentidos e a
confrontação não cesse de se fazer.
A tragédia nasce,
observa com razão Walter Nestle, quando se começa a olhar o mito com olhos de
cidadão. Mas não é apenas o universo do
mito que, sob esse olhar, perde sua consistência e se dissolve. No mesmo instante o mundo da cidade é
submetido a questionamento e, através do debate, é contestado em seus valores
fundamentais. Mesmo no mais otimista dos
Trágicos, em Esquilo, a exaltação do ideal cívico, a afirmação de sua vitória
sobre todas as forças do passado tem menos o caráter de uma verificação, de uma
segurança tranqüila que de uma esperança e de um apelo onde a angústia jamais
deixa de estar presente, mesmo na alegria das apoteoses finais. Uma vez apresentadas as questões, para a
consciência trágica não mais existe resposta que possa satisfazê-la plenamente
e ponha fim à sua interrogação.
(VERNANT, Jean-Pierre e NAQUET, Pierre-Vidal.
"Tensões e ambigüidades na tragédia grega." In: Mito e tragédia na
Grécia antiga. São Paulo, Duas
Cidades, 1977, p. 17-20)
2. Uma
noite medonha
Neste
fragmento, Nietzsche nos dá a sua
interpretação de duas tragédias de Sófocles: Édipo-rei e Édipo em Colono, num
belíssimo exemplo de como atuam o impulso dionisíaco e o impulso apolíneo, na constituição de uma obra trágica.
Tudo o que na
parte apolínea da tragédia grega chega à superfície, no diálogo parece simples,
transparente, belo. Nesse sentido, o
diálogo é a imagem e o reflexo dos helenos, cuja natureza se revela na dança,
porque na dança a força máxima é apenas potencial, traindo-se porém na
flexibilidade e na exuberância do movimento. Assim, a linguagem dos heróis
sofoclianos nos surpreende tanto por sua
apolínea precisão e clareza, que temos a impressão de mirar o fundo mais íntimo
de seu ser, com certo espanto pelo fato de ser tão curto o caminho até esse fundo.
Se
abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se
torna visível - o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa lançada
sobre uma parede escura, isto é, uma aparência de
uma ponta a outra -, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses
espelhamentos luminescentes, perceberemos então, de repente um fenômeno que tem
uma relação inversa com um conhecido fenômeno óptico.
Quando, numa
tentativa enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos Ofuscados, surgem
diante dos olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente,
as luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara,
são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na
natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. Só nesse sentido devemos acreditar que
compreendemos corretamente o sério e importante conceito da "serena
jovialidade grega"; ao passo que, na realidade, em todos os caminhos e
sendas do presente, encontramo-nos com o conceito falsamente entendido dessa
serenojovialidade, como se fosse um bem-estar não-ameaçado.
A mais
dolorosa figura do palco grego, o desventurado Édipo, foi concebida por
Sófocles como a criatura nobre que, apesar de sua sabedoria, está destinada ao
erro e à miséria, mas que, no fim, por seus tremendos sofrimentos, exerce à sua
volta um poder mágico abençoado, que continua a atuar mesmo depois de sua
morte. A criatura nobre não peca, é o
que o poeta profundo nos quer dizer: por sua atuação pode ir abaixo toda e
qualquer lei, toda e qualquer ordem natural e até o mundo moral, mas exatamente
por essa atuação é traçado um círculo mágico superior de efeitos que fundam um
novo mundo sobre as ruínas do velho mundo que foi derrubado.
É o que o
poeta, na medida em que é ao mesmo tempo um pensador religioso, nos quer dizer:
como poeta, ele nos mostra primeiro um nó processual prodigiosamente atado, que
o juiz lentamente, laço por laço, desfaz, para a sua própria perdição; a
autêntica alegria helênica por tal desatamento dialético é tão grande que, por
esse meio, um sopro de serenojovialidade superior se propaga sobre a
obra inteira, o qual apara por toda a parte as pontas dos horríveis
pressupostos daquele processo.
Em Édipo em
Colono nos deparamos com essa mesma serenojovialidade, porém elevada a uma
transfiguração infinita; em face do velho, atingido pelo excesso de desgraça,
que, a tudo quanto lhe advém, é abandonado como puro sofredor - ergue-se
a serenojovialidade sobreterrena, que baixa das esferas divinas e nos dá a
entender que o herói, em seu comportamento puramente passivo, alcança a sua
suprema atividade, que se estende muito além de sua vida, enquanto sua busca e
empenho conscientes apenas o conduziram à passividade. Assim vão-se desatando lentamente, na fábula
de Édipo, os nós processuais inextrincavelmente enredados aos olhos dos mortais
- e a mais profunda alegria humana nos domina diante dessa divina contraparte
da dialética.
Se com essa
explanação fizemos justiça ao poeta, ainda assim se poderá sempre
perguntar se com isso se esgotou o conteúdo do mito: e aqui se evidencia que
toda a concepção do poeta nada mais é senão aquela imagem luminosa que a
natureza saneadora nos antepõe, após um olhar nosso ao abismo. Édipo, o
assassino de seu pai, o marido de sua mãe, Édipo, o decifrador do enigma da
Esfinge! O que nos diz a misteriosa
tríade dessas ações fatais?
Há uma
antiquíssima crença popular, persa, sobretudo, segundo a qual um sábio mago só
podia nascer do incesto, o que nós, em relação a Édipo, o decifrador do enigma
e desposante de sua mãe, devemos interpretar imediatamente no sentido de que lá
onde, por meio das forças divinatórias e mágicas, foi quebrado o sortilégio do
presente e do futuro, a rígida lei da individuação e mesmo o encanto próprio da
natureza, lá deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa
transgressão i da natureza - como era ali o incesto; divinatórias e mágicas, foi quebrado o sortilégio do presente e do
futuro, a rígida lei da individuação e mesmo o encanto próprio da natureza, lá
deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgressão da
natureza - como era ali o incesto; pois como se poderia forçar a natureza a
entregar seus segredos, senão resistindo-lhe vitoriosamente, isto é, através do
inatural?
Esse conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa
tríade do destino edipiano: aquele que decifra o enigma da natureza - essa
esfinge biforme [corpo de leão e face humana] -, ele mesmo tem de romper
também, corno assassino do pai e esposo da mãe, as mais sagradas ordens da natureza. Sim, o mito parece querer murmurar-nos ao
ouvido que a sabedoria, e precisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror
antinatural, que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo da
destruição há de experimentar também em si próprio a desintegração da natureza.
"0 aguilhão da sabedoria se volta contra o sábio;
a sabedoria é um crime contra a natureza" - tais são as terríveis
sentenças que o mito nos grita: o poeta helênico, porém, toca qual um raio de
sol a sublime e temível coluna mnemônica do mito, de modo que este de súbito
começa a soar - em melodias sofoclianas!
(Nietzsche, Friedrich. O nascimento da tragédia - helenismo e
pessimismo, § 9. Trad. Jacob Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992,
p. 63-9)
3.
O descomunal
ganha medida
Num aforismo de seu último período Nietzsche sintetiza
o sentido do dionisíaco e do apolíneo no interior da tragédia.
Com
a palavra dionisíaco é expresso um ímpeto à unidade, um remanejamento radical
sobre pessoa, cotidiano, sociedade, realidade, sobre o abismo do perecer: o
passionalmente doloroso transporte para estados mais escuros, mais plenos, mais
oscilantes; o embevecido dizer sim ao caráter global da vida como aquilo que,
em toda mudança, é igual, de igual potência, de igual ventura; a grande participação
panteísta em alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as
mais terríveis e problemáticas propriedades da vida; a eterna vontade de
geração, de fecundidade, de retorno; o sentimento da unidade entre a
necessidade do criar e do aniquilar.
Com a palavra apolíneo é expresso
o ímpeto ao perfeito ser-para-si, ao típico "indivíduo", a tudo o que
simplifica, destaca, torna forte, claro, inequívoco, típico: a liberdade sob a
lei.
Ao antagonismo
desses dois poderes artístico-naturais está vinculado o desenvolvimento da
arte, com a mesma necessidade que o desenvolvimento da humanidade está
vinculado ao antagonismo dos sexos. A
plenitude de potência e o comedimento, a suprema forma de auto-afirmação em uma
fria, nobre, arisca beleza: o apolinismo da vontade helênica.
Essa
contrariedade do dionisíaco e do apolíneo no interior da alma grega é um dos
grandes enigmas pelo qual me senti atraído, frente à essência grega. Não me esforcei, no fundo, por nada senão
adivinhar por que precisamente o apolinismo grego teve de brotar de um fundo
dionisíaco: o grego dionisíaco tinha necessidade de se tornar apolíneo; isso
significa quebrar sua vontade de descomunal, múltiplo, incerto, assustador, em
uma vontade de medida, de simplicidade, de ordenação a regra e conceito. O desmedido, o deserto, o asiático, está em
seu fundamento: a bravura do grego consiste no combate com seu asiatismo: a
beleza não lhe foi dada de presente, como tampouco a lógica, a naturalidade do
costume - ela foi conquistada, querida, ganha em combate - ela é sua
vitória.
(Nietzsche, Friedrich. "0 eterno retorno", § 1050. ln:
Nietzsche - Obras incompletas.
Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo,
Abril, 1978, p. 393-4)
ATIVIDADES
1.
Pesquise em livros
de história o contexto sociopolítico que fez brotar a tragédia como gênero
literário, experiência política e instituição social, entre os gregos, no final
do século VI a . C . e no decorrer do século V a . C . Pesquise também em uma
enciclopédia os verbetes tragédia grega, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes.
2.
Procure, em um
jornal de grande circulação e sua cidade, a notícia de um crime descrito com
grande riqueza de detalhes. Depois, tente se colocar no lugar de um grego da
época trágica e fazer uma interpretação do crime sob esse enfoque (não importa
se você conhece ou não os nomes dos deuses e heróis).
3.
Com as informações
que você tem sobre o mundo trágico, a partir da leitura deste capítulo, avalie
se o crime que você selecionou na questão anterior envolve hýbris. Justifique
seu argumento.
4.
Leia Édipo-rei, de
Sófocles. A melhor tradução é a de Mário da Gama Cury, editada por Jorge Zahar
Editor (Rio de Janeiro), no livro intitulado A trilogia tebana. Além de narrar
essa tragédia, inclui outras duas: Édipo em colono e Antígona. Assim, se
você ficar curioso, pode ler as três obras e conhecer a história inteira, além
de desfrutar de um dos maiores dramaturgos que humanidade já teve.
VAMOS REFLETIR
1.
Depois de ler o
texto complementar "A Cid. fazendo-se teatro", comente: "A
tragédia nasce quando omito começa a ser visto com olhos de cidadão".
2.
É possível ao
homem de hoje, inundado pela cultura judaico-cristã, viver sem culpa? Explique.
3.
Até que ponto o
homem é responsável por seus atos, se ele é não só determinado pelas condições
socioeconômicas, mas também atravessado por impulsos desconhecidos? Justifique.
4.
Para os gregos, o
destino não perdoa. Assim, o homem é um ser-para-a-morte. Você concorda?
CAPÍTULO
4 - O ETERNO RETORNO: PROVA MAIOR
(Do
livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo,
1996, p. 76-83)
Tudo vai, tudo volta;
eternamente gira a roda do ser.
Tudo morre, tudo refloresce,
eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é
refeito; eternamente constróí-se a mesma casa do ser.
Tudo se separa, tudo volta
a se encontrar;
eternamente fiel a si
mesmo permanece o anel do ser.
Em cada instante começa o
ser; em torno de todo o "aqui " rola a bola "acolá ".
O meio está em toda
parte. Curvo é o caminho da eternidade.
FRIEDRICHNIETZSCHE,
Assim falou Zaratustra, "0 convalescente", § 2.
Quando Nietzsche
se pergunta o que é o mundo, ele assim o descreve (l978: 397): como
força por toda parte, como jogo de forças e ondas de forças, ao mesmo tempo um
e múltiplo, aqui articulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de
forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente recorrentes [... ],
abençoando a si próprio como aquilo que eternamente tem que retornar, corno um
vír-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço.
Uma
usina em ebulição
Esse
mundo descrito por Nietzsche, como "um mar de forças tempestuando e
ondulando", que em muitos aspectos evoca os quadros de Van Gogh, é como
uma usina: eternamente se produzindo, se rompendo, se recompondo, se reconstruindo. Aí, cada instante traz em torno de si
todo o passado e todo o futuro que ele projeta: enlaça-os e os agita como num
caldeirão, lançando-os, em seguida, corno num jogo de dados ou de búzios. Assim, cada instante retraça a sorte e o destino,
fazendo retornar o mundo com tudo o que ele tem de bom e de ruim, de grande e
de pequeno, de cintilante e de opaco. E,
no fundo desse caldeirão, cada um de nós é enlaçado, agitado e recriado, em
cada instante em que o ser recomeça, em cada um dos múltiplos anéis em que
retorna.
O eterno
retorno é a grande prova, o grande teste de vida pelo qual cada homem tem de
passar, como nos conta Nietzsche em A gaia ciência (1978: 208):
E se
um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te
dissesse: "esta vida, assim como tua avives agora e como a viveste, terás
de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de
novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e de grande em
tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência- e do
mesmo modo essa aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este
instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada
outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" Não te lançarias ao chão e
rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste
alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus
e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre
ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta,
diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras
vezes"" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou, então,
com terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada
mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?
Amor
ao destino
É imponderável o
quanto cada um de nós necessita estar bem consigo próprio e com a vida para
dizer: "Quero isso inúmeras vezes, quero isso eternamente!". Por isso, o eterno retorno é posto por
Nietzsche como um imperativo ético, seletivo.
Para passar por essa prova, qualquer homem deverá ter vencido todos os
ressentimentos, azedumes e depreciações com relação à vida, deverá estar
imbuído daquilo que Nietzsche denominou amor fati (amor ao destino), que
significa não querer nada de outro modo, nem para diante nem para trás, nem em
toda a eternidade, conforme disse o filósofo em um de seus derradeiros
escritos.
O mundo e o
"eu" que retornam, em cada instante, trazem consigo todas as
pequenezas e todas as grandezas que lhe são próprias, o que não poderia ser de
outra forma, desde que não existe nenhum outro mundo, assim como nenhum outro
"eu". Poder-se-ia, entretanto,
argumentar que todos os entes do mundo (incluindo os inúmeros "eus")
estão em contínuo devir, ou seja, transmutando-se ininterruptamente em
"outros mundos", "outros eus".
De fato, esse é
o pensamento de Nietzsche. Contudo, esse
devir não torna o mundo ou o "eu" entes mais perfeitos, mais ideais;
ele somente faz retornar aquilo que é terreno, mundano, imperfeito por
natureza. Isso significa que todas essas
transformações carregam, elas também, as pequenezas e as grandezas que
caracterizam a esfera humana.
Por isso, o ato
de acolher e amar tudo o que retorna e desejá-lo repetidamente envolve um tal
nível de aceitação da vida, do mundo e de próprio, que atingir tal estado
implica uma transmutação total dos valores morais, ultrapassando a cisão que
normalmente fazem entre Bem e Mal. Nesse sentido, aquele que for capaz de tal
proeza não será mais um homem comum, terá atingido urna condição sobre-humana,
além do homem.
A noção de além-do-homem
(muitas vezes mal traduzida como super-homem) designa o valor mais
alto no ciclo de transvalorações envolvido no projeto nietzschiano (belamente
descrito em Assim falou Zaratustra). Como
valor, designa una nova maneira de estar no mundo: inocentemente, sendo capaz
de assumir a existência como puro jogo e aventura, tendo-se livrado dos pesos
morais e se tornado um dançarino das linhas da vida, a encarnação de urna força
afirmativa, capaz de dizer "sim" ao destino humano e, assim,
ultrapassá-lo em direção a formas mais altas.
Aqui
encontramos, talvez, a grande importância de Nietzsche para este final de
século XX: a possibilidade de redescoberta do valor da vida. Num mundo onde a vontade de potência se
degrada em vontade de domínio e o poder criador em poder normalizador,
homogeneizante; onde os valores vitais cedem o lugar principal a valores de
sobrevivência, seja pelas condições materiais cada vez mais difíceis, seja pelo
torpor comodista a que nos incita o mundo do consumo, é fundamental poder alçar
a vista para horizontes menos estreitos, menos medíocres, menos conformados, perceber
que existem outras maneiras de viver, não importando quão distantes elas possam
estar da existência concreta de cada um. Pois cada gota desse néctar,
conquistado a duras penas, pode valer uma eternidade.
A felicidade
de estar vivo
Num excelente ensaio denominado "Pensamento
nômade" (cf. MARTON, 1985: 56-7), Gilles Deleuze se pergunta:
Quem
é hoje o jovem nietzschiano? Será aquele
que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou bem será aquele que, voluntária ou
involuntariamente, pouco importa, produz enunciados particularmente
nietzschianos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência?
Não sei falar
dos outros. No meu caso, descobrir Nietzsche na época em que vivia uma intensa
paixão por um filho recém-nascido. E
continuo redescobrindo-o, cada vez que mergulho de forma exuberante em alguma
experiência, qualquer que seja ela: a dor da perda de um ente querido, a
energia revitalizadora de uma relação amorosa, o entusiasmo rítmico de uma
dança, a atmosfera inebriante de uma música ou, simplesmente, a pura
felicidade de estar vivo. Então me
pergunto, como José Miguel Wisnik, em sua música Mais simples:
A
vida leva e traz,
A
vida faz e refaz,
Será
que quer achar
Sua
expressão mais simples?
TEXTOS
SELECIONADOS
1. A nova concepção do mundo
A argumentação
cosmológica do eterno retomo foi
tentada por Nietzsche em alguns aforismos que só foram publicados após sua
morte. Este é um deles, conforme se pode
ver, a essência do argumento é que o mundo sendo finito (portanto, constituído
por um número limitado de forças e de combinações de forças) e o tempo sendo
infinito (pois o mundo não tem começo nem rim), as combinações conformadoras do
mundo teriam de retomar necessariamente no tempo.
O mundo subsiste;
não é nada que vem a ser, nada que perece.
Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca
cessou de perecer - conserva-se em ambos... Vive de si próprio:
seus excrementos são seu alimento.
A hipótese de um
mundo criado não deve afligir-nos nem por um instante. O conceito "criar" é hoje
perfeitamente indefinível, inexeqüível; meramente uma palavra ainda,
rudimentar, dos tempos da superstição; com uma palavra não se explica
nada. A última tentativa de conceber um
Mundo que começa foi feita recentemente, várias vezes, com o auxilio de uma
procedura lógica - na maioria das vezes, como é de adivinhar, com uma segunda
intenção teológica.
Recentemente,
quiseram varias vezes encontrar no conceito "infinidade temporal do mundo
para três,, (regressus in infinitum) uma contradição: e até mesmo a
encontraram, ao preço, sem dúvida, de confundir a cabeça com a cauda. Nada me pode impedir de, calculando deste
instante para trás, dizer "nunca chegarei ao fim": assim como posso
calcular do mesmo instante para a frente, ao infinito. Somente se eu quisesse fazer o erro que eu me
guardarei de fazer - de equiparar esse correto conceito de um regressus in
infinitum com o conceito inteiramente inexeqüível de um progressus
finito até agora, somente se pusesse a direção (para a frente ou para trás)
como logicamente indiferente, me seria apanhar a cabeça - este instante como
cauda: deixo isso para o senhor, meu senhor Dühring!...
Deparei com esse
pensamento em pensadores anteriores: toda vez era determinado por outros
pensamentos ocultos ( o mais das vezes teológicos, em favor do creator
spiritus).
Se o mundo pudesse
enrijecer, secar, morrer, tornar-se nada, ou se pudesse alcançar um estado de
equilíbrio, ou se tivesse em geral algum alvo que encerrasse em si a duração, a
inalterabilidade, o de uma-vez-por-todas (em suma, dito metafisicamente: se o
vir-a-ser pudesse desembocar no ser ou no nada), esse estado teria de estar
alcançado. Mas não está alcançado: de
onde se segue... Eis nossa certeza, a única que temos nas mãos para servir de
corretivo contra uma grande quantidade de mundos hipotéticos, possíveis em
si. Se, por exemplo, o mecanismo não
pode escapar à conseqüência de um estado final, que William Thomson tira dele,
com isso o mecanismo está refutado.
Se o mundo pode
ser pensado como grandeza determinada de força e como número determinado de
centros de força - e toda outra representação permanece indeterminada e
consequentemente inutilizável -, disso se segue que ele tem de passar
por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados de sua
existência. Em um tempo infinito, cada
combinação possível estaria alguma vez alcançada; mais ainda: estaria alcançada
infinitas vezes.
E como entre cada
combinação e seu próximo retorno todas as combinações ainda possíveis teriam de
estar transcorridas e cada uma dessas combinações condiciona a seqüência
inteira das combinações da mesma série, com isso estaria provado um curso
circular de séries absolutamente idênticas: o mundo como curso circular que
infinitas vezes já se repetiu e que joga seu jogo in infinitum.
Essa concepção
não é, sem mais, uma concepção mecanicista: pois, se fosse, não
condicionaria mais um infinito retorno de casos idênticos, e sim um estado
final. Porque o mundo não o alcançou, o
mecanismo tem de valer para nós como hipótese imperfeita e provisória.
2. O eterno
criar-se e destruir-se
Mais um
fragmento póstumo, em que Nietzsche descreve magistralmente o mundo e o homem,
através da noção de vontade de potência.
Conforme se pode ver neste texto, o eterno retorno aparece definido como
"o eternamente-criar-a-si-próprio,
eternamente-destruir-a-si-próprio"; portanto, como o próprio devir
criador.
E
sabeis sequer o que é para mim o "mundo"? Devo mostrá-lo avós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem
início, sem fim; uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior,
nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande
em seu todo; uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou
rendimentos, cercada de "nada" como de seu limite, nada de
evanescente, de desperdiçado; nada de infinitamente extenso, mas como força
determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma
parte estivesse "vazio", mas antes como força por toda parte; como
jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui
acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando; um mar de forças tempestuando e
ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes;
com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas
configurações, partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto,
mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório
consigo mesmo; e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de
contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando ainda a si próprio,
nessa igualdade de suas trilhas e anos; abençoando a si próprio como Aquilo
que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma
saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço -: esse meu mundo dionisíaco do
eternamente-criar-a-si-próprio, do
eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse
meu "para além de bem e mal", sem alvo, se na felicidade do círculo
não está um alvo, sem vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo -,
quereis um nome para esse mundo?
Uma solução para todos os seus enigmas?
Uma luz também para vós, vós, os mais escondidos, os mais fortes,
os mais intrépidos, os mais da meia-noite? - Esse mundo é a vontade de
potência - e nada além disso! E
também vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!
(NIETZSCHE,
Friedrich. "0 eterno retorno", § 1066. In: Nietzsche - Obras incompletas. Trad. , Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo, Abril, 1978, p. 397)
3. A
ampulheta que vira e revira
Neste trecho, extraído de
Assim falou Zaratustra, podemos acompanhar a conversa do herói com seus
animais, aprendendo um pouco da concepção nietzschiana da linguagem ("não
são, palavras e sons, arco-íris e falsas pontes entre coisas eternamente
separadas?") e da concepção de eterno retorno, tal qual formulada
pelos animais de Zaratustra.
Ao cabo de sete
dias, soergueu-se, Zaratustra em seu leito, apanhou uma maçanilha, cheirou-a e
achou-lhe grato o cheiro. Então julgaram
seus animais que era chegado o tempo de falar com ele.
"Ó,
Zaratustra", disseram, "já faz sete dias que estás deitado, com olhos
pesados; não queres, finalmente, pôr-te outra vez de pé?
Sai
desta caverna; o mundo está à tua espera como um jardim. Brinca o vento com intensos perfumes, que te
procuram; e todos os córregos gostariam de seguir os teus passos.
Por
ti, que ficaste sozinho sete dias, anseiam todas as coisas. Sai desta caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos!
Veio
a ti algum novo conhecimento, amargo, doloroso?
Como massa fermentada, estiveste deitado, a tua alma crescia e inchava,
saindo fora de todas as bordas."
"Ó,
meus animais", respondeu Zaratustra, "continuai a tagarelar e deixai
que vos escute. Traz-me tamanho conforto ouvir-vos tagarelar; onde se tagarela, já o mundo é
ali, para mim, corno um jardim.
Como é agradável que existam palavras e sons; não
são, palavras e sons, arco-íris e falsas pontes entre coisas eternamente
separadas?
Toda a alma tem o seu mundo, diferente dos
outros; para toda a alma, qualquer outra alma é um transmundo.
É entre as mais semelhantes que mente melhor a
aparência; pois a brecha menor é a mais difícil de transpor.
Para mim - como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior! Mas esquecemos isso a cada palavra; como é
agradável que o esqueçamos.
Não foram as coisas presenteadas com nomes e
sons, para que o homem se recreie com elas?
Falar é uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas.
Quão grata é toda a fala e toda a mentira dos
sons! Com sons dança o nosso amor em
coloridos arco-íris."
"Ó, Zaratustra", disseram, então, os
animais, "para os que pensam como nós, as próprias coisas dançam: vêm e
dão-se a mão e riem e fogem - e voltam.
Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do
ser. Tudo morre, tudo refloresce,
eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente
constrói-se a mesma casa do ser. Tudo se
separa, tudo volta a se encontrar; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel
do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo o
'aqui' rola a bola 'acolá'. O meio está
em toda parte. Curvo é o caminho da
eternidade."
"Ó, farsantes e realejos!", retrucou
Zaratustra, sorrindo de novo; "como conheceis bem o que devia cumprir-se
em sete dias (...)."
(Nietzsche,
Friedrich. "O convalescente", §2. In: Assim falou Zaratustra - um
livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva, Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1994, p. 223-7)
ATIVIDADES
1.
Primeiramente leia o aforismo 1067 sobre o
eterno retorno, na seção de textos selecionados. Em seguida aprecie o quadro de Van Gogh
(l888) reproduzido acima. Agora compare
a descrição que Nietzsche faz do mundo e a maneira como Van Gogh o pinta,
nessa obra. Você vê ressonâncias
entre o texto e a pintura? Quais?
2.
Tente descobrir, na música popular brasileira,
alguma canção que evoque - em termos de música e letra - a temática do eterno
retomo (como a de José Miguel Wisnik, já citada aqui). Justifique sua escolha.
VAMOS REFLETIR
1.
Faça a prova do eterno retorno com você
mesmo. Leia o desafio do demônio, depois
responda: você aceitaria o desafio de viver sua vida inúmeras vezes, exatamente
da mesma forma? Justifique.
2.
Qual está sendo o impacto da leitura destes textos
sobre você? Comente.
CAPÍTULO 5 -
AVALIANDO A PARTIR DA VIDA
(Do Livro: A vida como valor
maior - Nietzsche", Alfredo Naffah Neto, F.T.D., 1996, São Paulo, pág. 52
- 74)
Necessitamos
de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão. Para isso é necessário um conhecimento das
condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e
se modificaram...
FRIEDRICH
NIETZSCHE, Genealogia da moral, prólogo,
§ 6.
Se os valores morais intoxicam a vida,
disciplinando-a, ordenando-a, dividindo-a em Bem e Mal, consequentemente
repudiando toda uma dimensão vital básica, e se isso teve como desenvolvimento
levar o homem a renunciar à vida terrena e ao mundo real, em prol de uma vida eterna
e de um mundo imaginário, inexistente, então é preciso uma investigação
minuciosa da constituição desses valores.
Reflexões desse tipo levaram
Níetzsche à criação d genealogia, que, de
forma geral, pode ser descrita como uma investigação das condições de
nascimento, desenvolvimento e transformação dos valores morais. E como os valores morais impregnam, em maior
ou menor grau, todas as práticas e produções humanas, a genealogia estende sua
investigação crítica a tudo de humano que já foi criado ou que ainda venha a
sê-lo.
Mas a genealogia,
diferentemente de outras práticas filosóficas, não pode fundar suas
investigações num critério de
verdade. Vamos tentar entender por
quê.
O critério do verdadeiro
De forma geral, podemos
dizer que toda a filosofia e também as ciências do mundo ocidental apóíam-se em
alguma noção de verdade, seja ela qual for. O critério que define sempre, se
uma afirmação filosófica ou uma afirmação filosófica ou uma lei científica são
válidas é o fato de elas poderem ser consideradas como verdadeiras. E aí os critérios de verdade são os mais
variados possíveis.
Há escolas filosóficas que
defendem um critério de verdade fundamentado em observações empíricas e na
consistência lógica das proposições, como o positivismo
lógico, por exemplo.
Positivismo lógico - Essa corrente filosófica
afirma que só é compreensível e possui sentido aquilo que pode ser comprovado
pela experiência; que, consequentemente, todas as afirmações rnetafísicas
carecem de sentido. Seu objetivo é constituir
uma linguagem científica unificada, por meio de uma lógica simbólica,
verdadeira língua comum a todas as ciências.
A Fenomenologia, por sua vez, defende um critério de
verdade apoiado na forma como as coisas aparecem e se revelam à consciência e
no quanto as afirmações filosóficas possam ser fiéis a essa descrição. De forma
análoga, as ciências também assumem critérios de verdade, embora não reflitam
sobre eles, como faz a filosofia; essa reflexão acontece num campo denominado
filosofia das ciências.
A definição clássica de
verdade fala de uma adequação entre a enunciação e o enunciado.
Complicado? Nem tanto: isso quer dizer
que é considerada verdadeira a afirmação (reflexão filosófica ou lei
científica, tanto faz) que consegue adequar a sua expressão, proposição (seja
ela uma construção verbal ou uma fórmula matemática), àquilo que pretende
apreender e expressar (seu objeto de estudo).
Adequação quer dizer, aí, correspondência ponto por ponto entre os dois
campos: o da enunciação (que é a
afirmação propriamente dita, tecida no âmbito da linguagem, seja ela verbal ou
algorítmica) e o do enunciado (aquilo
que é afirmado: uma propriedade ou uma relação articulando fatos,
acontecimentos, regulares ou não, do mundo existente).
A crítica nietzschiana à
noção de verdade apóia-se, justamente, neste ponto: a afirmação de que é
impossível a correspondência entre a linguagem (qualquer que seja ela) e o
mundo real. Num belíssimo texto
denominado Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido
extramoral, ele desenvolve as principais reflexões sobre essa questão.
O argumento central do texto nietzschiano é que
qualquer palavra adquire a dimensão de conceito
- que é a ferramenta de qualquer forma de pensamento racional - quando
abandona e desconsidera as diferenças singulares entre as coisas e os
acontecimentos do mundo. Por exemplo,
quando pronuncio a palavra "folha", todos imaginam que o som dela se
refere a alguma realidade empírica.
Entretanto, para poder traduzir todas as folhas reais, tão diferentes
umas das outras, por esse som unitário e invariável, é preciso jogar fora todas
as características singulares que tornam cada folha uma realidade única,
incomparável, intraduzível.
O conceito
constrói um esqueleto
descarnado do mundo. Esse esqueleto é um signo de reconhecimento, quer dizer,
sua utilidade é possibilitar a comunicação entre os homens, diante das
utilidades da vida prática, das necessidades de sobrevivência. Todo o
contra-senso é pretender que signo como esse e a realidade possa haver alguma
correspondência que não seja meramente convencional, portanto arbitrária.
A partir de raciocínios como
esse, Nietzsche conclui que não há critérios intrínsecos para avaliar se uma
enunciação é verdadeira. Dependendo do critério particular e convencional
adotado, qualquer uma poderá ser verdadeira ou falsa. Mais do que isso: os critérios de verdade,
quaisquer que sejam, estão sempre ligados a certas forças que detêm o poder e
que impõem uma interpretação
particular, própria, como se fosse universal.
Portanto, qualquer verdade
sempre traduz a relação dos homens com o mundo, a forma como se apropriam e se
utilizam das coisas; seu ângulo de visão, perspectiva, está sempre articulado
por códigos, interpretações de mundo
dominantes, que são as forças que dão forma a tudo o que os homens comuns vêem,
tudo em que acreditam.
As verdades são, pois,
segundo Nietzsche (s.d.: 94), "um conjunto de relações humanas
poeticamente e retoricamente erguidas, transpostas, enfeitadas, e que, depois
de um longo uso, parecem a um povo firmes, canoniais e constrangedoras: as
verdades são ilusões que nós esquecemos que o são". Essa é a razão pela
qual a genealogia não pode fundar-se sobre um critério de verdade.
A vida: critério dos critérios e valor dos valores
Se é preciso uma crítica
radical dos valores, se é necessário avalia o valor de todos os valores
humanos, sem ter mais à mão um critério de verdade, então é fundamental um
outro critério que seja válido e inquestionável, que esteja acima de todos os
outros. Esse critério, segundo
Nietzsche, é a vida. Só ela pode decidir se um valor é bom ou
ruim. Como?
Partindo do critério vida, só se podem avaliar como bons os valores que estiverem servindo à
sua expansão, intensificação e enriquecimento. E como ruins aqueles que estiverem criando condições para sua
despotencialização, enfraquecimento, empobrecimento. Isso significa considerar
vida como nunca se fez antes.
É preciso diferenciar vida da sobrevivência. Grosso modo, a
sobre vivência descreve um empobrecimento da vida; quando meramente
sobrevivemos, isso quer dizer que estamos vivendo de forma bastante precária,
incipiente. A vida é um fluir de
intensidades que se apropriam de mundo e se expandem em novas intensidades, num
movimento crescente e inesgotável. Sem
dúvida, ela engloba a sobrevivência, mas como sua dimensão mais baixa, seu
alicerce, esse funcionamento adaptativo que
pode ser o ponto de apoio para movimentos de maior expansão, criativos,
transformadores. A sobrevivência
depaupera a vida quando a reduz a seus horizontes utilitários, toscos.
Por isso, diante do critério
vida, um ato suicida pode até ter um
valor importante, na impossibilidade de uma sobrevivência mesquinha expandir-se
numa vida mais potente: por exemplo, um prisioneiro político que se suicida, ao
se saber fadado a uma morte lenta e humilhante nas mãos dos inimigos.
Há, também, ocasiões em que
a luta pela sobrevivência pode gerar valores de vida bastante preciosos: por
exemplo, quando uma pessoa com uma doença grave é levada, na luta pela
sobrevivência, a se defrontar com a morte e, a partir daí, a reavaliar a
própria vida.
A morte como parte da vida
É importante ressaltar que o
valor vida implica o valor morte como
sua condição. Uma vida só adquire plena potência se é capaz de se desdobrar
numa morte e num renascimento constantes, ou seja, a perda, a privação, o
ocaso, são ocasiões de fortalecimento e de enriquecimento de tudo que, de vivo,
floresce a partir daí. Mais do que isso,
a morte é, para o herói trágico, "O julgamento, livremente
escolhido", que dá valor à existência. Isso é o que Nietzsche (1988: 431)
diz num dos fragmentos póstumos em que faz o elogio de Wagner, como poeta
trágico:
Mas sob que luz ele [Wagnerl
vê todo o passado, tudo o que se cumpriu? aqui que é Preciso pôr em realce a
admirável significação da morte: a morte
é o julgamento mas o julgamento
livremente escolhido, desejado, Pleno de uma horrível sedução, como se ela
fosse mais do que uma porta aberta sobre o nada. (Sobre cada um dos passos mais
firmes que a vida dá sobre o palco, ressoa surdamente a rnorte.) A morte é o selo batido sobre toda grande paixão e sobre
toda existência heróica; sem ela a existência não tem valor. Estar maduro para ela é a coisa mais alta que
se pode conseguir, mas também a mais difícil, que só se atinge através de
combates e sofrimentos heróicos. Cada
morte desse gênero é um evangelho do amor;
e toda a música é uma metafísica do amor; ela é uma aspiração e um querer
num domínio que aparece ao olhar comum como o domínio do não-querer, um banho
no mar do esquecimento, um jogo de sombras espantoso de uma paixão
desaparecida.
É evidente que, nesse texto, Nietzsche está falando
da forma como Wagner-poeta-trágico constrói seus enredos e seus personagens no
palco e como esses personagens se relacionam com a vida e com a morte. Assim,
nos conta em que medida o valor vida implica
o valor morte, o que reforça a idéia
de que, no vocabulário nietzschiano, vida e sobrevivência jamais se confundem,
pois se, por um lado, vida implica morte, por outro, sobrevivência e morte são
valores antagônicos.
Como conseqüência, jamais se
confundem, também, quaisquer avaliações feitas a partir de valores vitais com
aquelas feitas a partir de valores de sobrevivência. No primeiro caso, o que é avaliado é se as
forças em foco geram movimentos de expansão, intensificação, potencialização ou
de coartação, confinamento, despotencialização da vida considerada; no segundo
caso, avalia-se o quanto determinados processos são adaptativos, capazes de
garantir, em maior ou menor grau, a sobrevivência.
É importante ressaltar que a
genealogia, ao fazer a crítica dos valores morais, não funda uma nova moral,
como pode eventualmente parecer a algum olhar menos arguto. Considerar ruins os
valores que despotencializam, enfraquecem e empobrecem a vida não significa
submetê-la a um crivo, selecionando uma parte boa e uma parte má, como fazia a
moral. Trata-se, sem dúvida, de uma
seleção, mas de outro tipo e com outra finalidade: proteger a vida contra todos
os valores que, por operarem um tipo de seleção moral, a enfraquecem e a
empobrecem.
O termo ruim da avaliação
genealógica não é equivalente ao termo mau da avaliação moral. Ruim, nesse
caso, significa aquele valor que faz da fraqueza, da incompetência, da
impotência, uma virtude, ou seja, ruim é aquele valor que exalta o fraco. Mau,
na avaliação moral, significa malvado, cruel, indigno, execrável. São coisas
distintas.
Ao tomar a vida como
critério maior, a genealogia sabe valorizar todas as suas formas, mesmo nos
casos-limite, nos quais ela se encontra tão intoxicada de valores morais que
mal se conseguem visualizar os traços de sua potência. Mesmo esses casos a genealogia os avalia como
encarnando o único tipo de vida possível naquelas circunstâncias, discriminando
aí os recursos pelos quais a potência vital procura se preservar, a despeito de
todas as condições desfavoráveis.
Ética x Moral
Ao tentar criar um abrigo para a vida, defendendo-a
a qualquer preço, a genealogia nietzschiana acaba por se, fundar como uma ética, fazendo jus à etimologia do termo
grego éthos, que originalmente
significava abrigo, morada. Ocorre aí
algo sui generis no universo
filosófico: a diferenciação e oposição entre dois termos normalmente
interligados e postos numa mesma direção - moral
e ética. Segundo Gilles Deleuze no
referencial nietzschiano tais termos podem ser considerados antônimos: a moral
designando aquela forma de avaliação degeneradora da vida; a ética, ao
contrário, designando o sentido assumido pela genealogia nietzschiana, ao
tentar restaurar aquilo que a moral deteriorou. É verdade que essa
discriminação entre os dois termos nunca foi realizada dessa forma tão
explícita pelo filósofo alemão, o que não significa que não sejam dignas de
consideração as ponderações feitas por Deleuze nessa direção.
A vontade de
potência
O conceito central da ética
nietzschiana, também fruto de múltiplos mal-entendidos, denomina-se vontade de potência ou vontade de poder,
conforme as duas traduções que normalmente são dadas ao alemão Wille zur Macht.
Podemos
dizer que, dentro da perspectiva genealógica, vontade de potência e vida são sinônimos; entretanto, a filosofia
nietzschiana desdobra-se também numa cosmologia, e no interior dessa cosmologia
o conceito tem uma abrangência maior, uma vez que inclui o mundo inorgânico.
Apesar de todas as
dificuldades que cercam essas questões, vamos tentar definir, aqui, o
significado de vontade de potência. O conceito
é formado por dois termos: vontade e
potência, ligados pela preposição de.
Em primeiro lugar, convém
não tomar o termo vontade com o
sentido que ele adquiriu na psicologia contemporânea, como faculdade da mente
humana. Ele descreve aí um conjunto de forças impessoais, anônimas, sempre em
luta, envolvidas em movimentos de expansão, exaltação, apropriação,
transmutação, operando uma contínua destruição e criação de formas.
O segundo termo, potência ou poder, indica justamente
aquilo que constitui a vontade e que, do seu âmago, pulsa, luta e se desdobra,
em busca de expansão, exaltação. Nesse
sentido, a vontade não é carente de potência.
Aliás, não é carente de nada; no dizer de Heidegger, a vontade quer a si
mesma, seu crescimento, sua superação, e a potência só é potência à medida que
continua a ordenar-se mais potência, permanentemente a caminho de si mesma, em
contínuo devir.
Finalmente, convém
esclarecer, seguindo as indicações de Gilles Deleuze, que o poder ou potência
de que se fala aqui é um poder criador: criador
de vida, criador de mundo, criador de subjetividades, ou, num só termo, criador
de valores. Nesse sentido, o conceito adquire uma
abrangência que transpassa todo o universo.
Como diz Nietzsche (l978: 397): "Esse mundo é a vontade de potência
- e nada além disso!". E também vós
sois essa vontade de potência - e nada além disso!".
Talvez a melhor expressão poética da vontade de
potência (na sua sinonímia com a via) nos seja dada por Chico Buarque, em sua
música Vida:
Vida, minha vida,
Olha o que é que eu fiz.
Deixei a fatia
Mais doce da vida
Na mesa dos homens
De vida vazia.
Mas vida,
Ali quem sabe
Eu fui feliz. [...I
Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis,
E infinitas cortinas
Com palcos atrás.
Arranca, vida,
Estufa, veia,
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais.
Mais, quero mais,
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais,
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais.
Arranca, vida,
Estufa, vela,
Me leva, leva longe,
Longe, leva mais...
TEXTOS SELECIONADOS
1.As quimeras da origem
Michel Foucault, intérprete de Nietzsche, fala da genealogia
nietzschiana, fazendo crítica da noção de origem (que ele considera uma noção metafísica)
Por que Nietzsche
genealogista recusa, pelo menos em
certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse
sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura
possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em mesma, sua forma
imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar
o que era imediatamente", o "aquilo mesmo" de uma imagem
exatamente adequada a si; é tomar por acidentais todas as peripécias que
pudessem ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar
todas as máscaras para desvelar, enfim, uma identidade primeira.
Ora, se o genealogista tem o
cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que
ele aprende? Que atrás das coisas há
"algo inteiramente diferente": não seu segredo essencial e sem data,
mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída
peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão?
Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente "desrazoável" - do
acaso. A dedicação à verdade e ao rigor
dos métodos científicos? Da paixão dos
cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre
retomadas, da necessidade de suprimir a paixão - armas lentamente forjadas ao
longo das lutas pessoais. E a liberdade,
seria ela na raiz do homem o que o liga ao ser e à verdade? De fato, ela é
apenas uma "invenção das classes dominantes", diz Nietzsche, em O andarilho e sua sombra (§ 9). O que se encontra no começo histórico das
coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as
coisas, é o disparate.
A história ensina também a
rir das solenidades da origem. A alta
origem é o "exagero metafísico que reaparece na concepção de que no começo
de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e de mais essencial", enfatiza Nietzsche na
mesma obra (§ 3): gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se
encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das mãos do
criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã.
A origem está sempre antes
da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos
deuses, e para narrá-la se canta sempre uma teogonia. Mas o começo histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como
o passo da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as
enfatuações. "Procura-se despertar
o sentimento de soberania do homem mostrando seu nascimento divino: isso agora
se tornou um caminho proibido; pois no seu limiar está o macaco", conclui
Nietzsche, em Aurora (§ 49). O homem começou pela careta daquilo em
que ele iria se
tornar; Zaratustra mesmo terá seu macaco que saltará atrás dele e tirará o pano
de sua vestimenta.
Enfim, o último postulado da origem, ligado aos dois
primeiros: ela seria o lugar da verdade.
Ponto totalmente recuado e anterior a todo conhecimento positivo, ela
tornará possível um saber que contudo a recobre e não deixa, na sua tagarelice,
de desconhecê-la; ela estaria nessa articulação inevitavelmente perdida onde a
verdade das coisas se liga a uma verdade do discurso que logo a obscurece, e a
perde. Nova crueldade da história que
coage a inverter a relação e a abandonar a busca "adolescente": atrás
da verdade sempre recente, avara e comedida, existe a proliferação milenar dos
erros. Mas não acreditemos mais que a
verdade permaneça verdadeira quando se lhe
arranca o véu; já vivemos bastante
para crer nisto" (Nietzsche contra
Wagner, epílogo, § 2). A verdade,
espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem
dúvida porque o longo cozimento da história a tornou inalterável. E além disso a questão da verdade, o direito
que ela se dá de refutar o erro de se opor à aparência, a maneira pela qual
alternadamente ela foi acessível aos sábios, depois reservada apenas aos homens
de piedade, em seguida retirada para um mundo fora de alcance, onde desempenhou
ao mesmo tempo o papel de consolação e de imperativo, rejeitada enfim como
idéia inútil, supérflua, por toda parte contradita - tudo isso não é uma
história, a história de um erro que tem o
nome de verdade?
A verdade e seu reino
originário tiveram sua história na história.
Mal saímos dela, "na hora
da sombra mais curta" quando a luz não
parece mais vir do fundo do céu e dos primeiros momentos do dia.
Fazer a genealogia dos
valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em
busca de sua "origem", negligenciando como inacessíveis todos os
episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos
acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade;
esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter
pudor de ir procurá-las lá onde elas
estão, escavando os bas-fonds; deixar-lhes
o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob
sua guarda.
O genealogista necessita da
história para conjurar a quimera da origem, um pouco como o bom filósofo
necessita do médico para conjurar a sombra da alma. É preciso saber reconhecer
os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes
vitórias, as derrotas maldigeridas, que dão conta dos atavismos e das
hereditariedades; da mesma forma que é preciso saber diagnosticar as doenças do
corpo, os estados de fraqueza e de energia, suas rachaduras e suas resistências
para avaliar o que é um discurso filosófico.
A história, com suas
intensidades, seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes
agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ser
metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade longínqua da origem.
(Adaptado de: Foucault, Michel, "Nietzsche, a genealogia e a história." In: Microfisica do poder. Trad.
Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 17-20)
2. Uma filosofia a marteladas
Importante intérprete de Nietzsche Gilles Deleuze analisa aqui o que
considera a genealogia nietzschiana. Diferentemente de Foucault, não evita o
termo origem, mas o refere a valores diferenciais (nobreza/baixeza) que
marcariam a distância diferencial da produção dos valores subsequentes.
O projeto mais geral de
Nietzsche consiste em introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de
valor. É evidente que a filosofia moderna, em grande parte, viveu e vive ainda
de Nietzsche. Mas talvez não da maneira
como ele teria desejado. Nietzsche nunca
escondeu que a filosofia do sentido e dos valores deveria ser uma crítica. Kant não conduziu à verdadeira crítica porque
não soube colocar seu problema em termos de valores; esse é então um dos
principais móveis da obra de Nietzsche.
Ora, aconteceu que na
filosofia moderna a teoria dos valores gerou um novo conformismo e novas
submissões. Mesmo a Fenomenologia contribuiu, com seu aparelho, para colocar
uma inspiração nietzschiana, freqüentemente nela presente, a serviço do
conformismo moderno.
Entretanto, quando se trata
de Nietzsche, devemos, ao contrário, partir do seguinte fato: a filosofia dos
valores, tal como ele a instaura e a concebe, é a verdadeira realização da
crítica, a única maneira de realizar a crítica total, isto é, de fazer a
filosofia "a marteladas". Com
efeito, a noção de valor implica uma inversão crítica.
Por um lado, os valores aparecem,
ou se dão, como princípios: uma avaliação supõe valores a partir dos quais
aprecia os fenômenos. Porém, por outro
lado e mais profundamente, são os valores que supõem avaliações, "pontos
de vista de apreciação" dos quais deriva seu próprio valor. O problema crítico é o valor dos valores, a
avaliação da qual procede o valor deles, portanto o problema de sua criação.
A avaliação se define como o elemento diferencial
dos valores correspondentes: elemento crítico e criador ao mesmo tempo. As avaliações, referidas a seu elemento, não
são valores, mas maneiras de ser, modos de existência daqueles que julgam e
avaliam, servindo precisamente de princípios para os valores em relação aos
quais eles julgam. Por isso temos sempre
as crenças, os sentimentos, os pensamentos que merecemos em função de nossa
maneira de ser ou de nosso estilo de vida. Há coisas que só se pode dizer,
sentir ou conceber, valores nos quais só se pode crer com a condição de avaliar
"baixamente", de viver e pensar "baixamente". Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o
elemento diferencial do qual deriva o valor dos próprios valores.
A filosofia crítica tem dois movimentos
inseparáveis: referir todas as coisas e toda origem de alguma coisa a valores;
mas também referir esses valores a algo que seja sua origem e que decida sobre
o seu valor. Reconhecemos a dupla tarefa
de Nietzsche. Contra aqueles que
subtraem os valores à crítica, contentando-se em inventariar os valores
existentes ou em criticar as coisas em nome de valores estabelecidos: os
"operários da filosofia", Kant, Schopenhauer. Mas também contra aqueles que criticam ou
respeitam os valores fazendo-os derivar de simples fatos, de pretensos fatos
objetivos: os utilitaristas, os "eruditos". Nos dois casos, a filosofia flutua no
elemento indiferente daquilo que vale em si ou daquilo que vale para todos.
Nietzsche se dirige ao mesmo
tempo contra a elevada idéia de fundamento, que deixa os valores indiferentes à
sua própria origem, e contra a idéia de uma simples derivação causal ou de
começo insípido que coloca uma origem indiferente aos valores. Nietzsche forma o conceito novo de
genealogia. O filósofo é o genealogista,
não um juiz de tribunal à maneira de Kant, nem um mecânico à maneira
utilitarista. O filósofo é Hesíodo. Nietzsche substitui o princípio da
universalidade kantiana, bem como o princípio da semelhança, caro aos
utilitaristas, pelo sentimento de diferença ou de distância (elemento
diferencial). "Do alto desse
sentimento de distância arrogaram-se o direito de criar valores ou de
determiná-los: que lhes importa a utilidade?" (Genealogia da moral, § I, 2).
Genealogia quer dizer ao
mesmo tempo valor da origem e origem dos valores. Genealogia se opõe ao caráter
absoluto dos valores tanto quanto a seu caráter relativo ou utilitário. Genealogia significa o elemento diferencial
dos valores do qual decorre o valor destes.
Genealogia quer dizer, portanto, origem ou nascimento, mas também
diferença ou distância na origem. Genealogia quer dizer nobreza e baixeza,
nobreza e vilania, nobreza e decadência na origem. O nobre e o vil, o alto e o baixo, esse é o
elemento propriamente genealógico ou crítico.
Mas, assim compreendida, a crítica é ao mesmo tempo o que há de mais
positivo.
O elemento diferencial não é
a crítica de valor dos valores sem ser também o elemento positivo de uma
criação. Por isso a crítica nunca é
concebida por Nietzsche como uma reação, mas
sim como uma ação. Nietzsche opõe a atividade da crítica à
vingança, ao rancor ou ao ressentimento.
Zaratustra será seguido por seu
"macaco", por seu "bufão", por seu "demônio", do
começo ao fim do livro; mas o macaco se distingue de Zaratustra assim como a
vingança e o ressentimento se distinguem da própria crítica. Confundir-se com
seu macaco é o que Zaratustra sente como uma das horríveis tentações que lhe
são armadas.
A crítica não é uma reação
do ressentimento, mas a expressão ativa de um modo de existência ativo: o
ataque e não a vingança, a agressividade natural de uma maneira de ,ser, a
maldade divina sem a qual não se poderia imaginar a perfeição. Essa maneira de ser é a do filósofo porque
ele se propõe precisamente a manejar o elemento diferencial como crítico
criador, portanto como um martelo. Eles
pensam "baixamente", diz Nietzsche sobre seus adversários.
Nietzsche espera muitas
coisas dessa concepção de genealogia: uma nova organização das ciências, uma
nova organização da filosofia, uma determinação dos valores do futuro.
(Deleuze, Gilles. "O conceito de genealogia". In: Nietzsche e
a filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth J. Dias, Rio de Janeiro, Ed.
Rio, 1976, p. 1-2)
3.O criminoso e os que se assemelham
Aqui, o próprio Nietzsche nos dá um belíssimo exemplo de análise
genealógica, ao traçar a proveniência e a emergência do criminoso,
articulando-a com a de todos os inovadores espirituais, eles também, em algum
momento, excluídos sociais.
O tipo do criminoso é o tipo
do homem forte, colocado em condições desfavoráveis, é o homem forte tornado
doente. O que lhe falta é a selva, uma
natureza e um modo de vida mais livre e mais perigoso, que legitime tudo aquilo que, no instinto do homem forte, é arma de
ataque e de defesa. Suas virtudes são
proscritas pela sociedade. As mais ardentes das suas inclinações inatas são, de
imediato, inextricavelmente misturadas com sentimentos depressivos, suspeitas,
medos, desonra. Mas eis aí, quase literalmente, a receita da degeneração fisiológica.
O homem que é obrigado a
fazer escondido o que ele sabe melhor e o que ele mais gostaria de fazer e
acaba fazendo após uma longa tensão, com precaução, com astúcia, esse homem torna-se anêmico. E como seus
instintos não lhe proporcionam senão perigos, perseguição, calamidades, sua
sensibilidade volta-se contra os instintos, que ele experimenta como uma
maldição.
É a sociedade, nossa
sociedade policiada, medíocre, castrada, que, fatalmente, faz degenerar em
criminoso um homem próximo da natureza, vindo das montanhas ou das aventuras do
mar. Ou melhor, quase fatalmente: pois há casos em que tal homem se revela mais
forte do que a sociedade. O corso
Napoleão é o exemplo mais famoso.
Para o problema que nos
interessa, a testemunha de Dostoiévsky é de grande peso (Dostoiévsky é, diga-se
de passagem, o único psicólogo que teve alguma coisa para me ensinar. Eu o aponto entre os mais belos golpes de
sorte da minha vida, mais ainda do que a minha descoberta de Stendhal). Esse homem profundo, que tinha mil vezes razão para menosprezar os
superficiais alemães, viveu por um longo tempo entre os forçados da Sibéria -
todos condenados por crimes capitais e, aos quais qualquer retorno à sociedade
era interdito -, e eles lhe deram uma impressão totalmente diferente daquela
que esperava: grosso modo, a de serem
talhados na melhor madeira, a mais dura e a mais preciosa jamais produzida em
território russo.
Generalizemos o caso do
criminoso: imaginemos naturezas a quem, por uma razão ou outra, o assentimento
da sociedade é recusado, que sabem que não são sentidas nem como benéficas nem
como úteis - o sentimento do tchandala fora
da casta é o de não ser considerado como um igual, mas como um excluído,
indigno e de um contato impuro. Todos os temperamentos dessa índole têm os
pensamentos e as ações marcados pelas cores do mundo subterrâneo: neles, tudo
se torna mais baço do que naqueles cuja existência se desenrola à luz. Mas quase todas as formas de existência que
nós distinguimos e honramos hoje em dia viveram outrora nessa atmosfera meio
sepulcral: o espírito voltado às ciências, o artista, o gênio, o espírito
forte, o ator, o mercador, o grande explorador..
Ao mesmo tempo que o sacerdote passava por um tipo superior,
toda espécie de homem de valor era depreciada... Aproxima-se o tempo eu prometo
- em que o sacerdote será considerado
como o tipo mais baixo, como nosso tchandala, como a classe de homem mais
mentirosa,
Ao mesmo tempo que o sacerdote passava por um tipo
superior, toda espécie de homem de
valor era depreciada... Aproxima-se o tempo eu prometo - em que o sacerdote será considerado como o tipo mais baixo, como nosso tchandala, como a classe de homem mais
mentirosa, a menos estimável...
Eu chamo a atenção para o
fato de que, ainda agora, sob o império dos costumes mais doces que já
existiram - pelo menos na Europa - toda originalidade, toda permanência [... ] sob a superfície, toda forma de
existência inabitual, impenetrável, aproxima-se desse tipo do qual o criminoso
é a expressão perfeita.
Todos os inovadores
espirituais, durante um certo tempo, carregam na fronte o estigma lívido e
funesto do tchandala: não porque eles
sejam sentidos como tal, mas porque eles próprios sentem o abismo assustador
que os separa de tudo o que é banal e honrado. Quase todo gênio conhece, dentre
as etapas do seu desenvolvimento, a "existência catilinária": um sentimento
de ódio, de rancor, de revolta contra tudo o que é, de uma vez por todas, tudo
o que parou de devir.. Catilina - ou
a forma preexistente de todo César.
(Nietzsche,
Friedrich. "Divagações de um
extemporâneo". In: Crepúsculo dos ídolos, § 45. Paris. Gallimard,
1974, p. 139-41. Trad. Alfredo Naffah Neto)
4. Fala o sábio
A seguir, uma das inúmeras poesias de Nietzsche, em que se acentua o
caráter diferencial do sábio, na sua relação com o povo: útil, justamente por
sua posição estrangeira (ou estranha), sempre acima do povo.
Estranho ao povo e contudo
útil ao povo
Sigo o meu caminho, ora sol,
ora nuvem - E sempre acima deste povo!
(Nietzsche, Friedrich. Poemas de F. Nietzsche. Seleção, versão portuguesa e notas de Paulo Quintela. Porto, Galaika, 1960,
p. 147)
5. O
mujique Marei
Esse episódio,
descrito sob a
forma de conto em 1876 por Feódor
Mikhailovitch Dostoiévsky, e que consta de seu Diário de um escritor, aconteceu de fato com ele, quando
menino. Aqui podemos ver como
as lembranças de menino, da doçura afetiva
de um camponês rude, são capazes de transmutar o ódio e a cólera que sente
pelos prisioneiros, com os quais está encarcerado.
Numa segunda-feira de
Páscoa, uma tepidez impregnava o ar, o céu estava azul, o sol vivo e quente,
mas minha alma permanecia mergulhada em trevas. Eu
errava para lá das casernas, contando as estacas da maciça paliçada que formava
a muralha da prisão, mas sem muita vontade de as contar, se bem que isso fosse
para mim uma ocupação habitual. Os
detentos "tinham repouso" por ocasião do segundo dia de festa; muitos
estavam embriagados, a cada instante injúrias e golpes violentos eram trocados
pelos cantos.
Outros cantarolavam canções
obscenas, jogavam cartas debaixo das baias; alguns detentos, meio brutalizados
por seus companheiros, devido a excessiva turbulência, permaneciam no leito,
cobertos com uma pele de carneiro muito fina, esperando que voltassem a eles;
diversas vezes já as lâminas das facas tinham brilhado... tudo isso, durante
esses dois dias de festa, me torturava a ponto de me deixar doente. Nunca, de resto, pude suportar, sem asco, o
espetáculo dos excessos do povo, e neste lugar menos que em qualquer outro.
Nesses dias faltavam sentinelas; abstinham-se de os revistar, para ver se
descobririam aguardente, compreendendo que era bom dar folga, uma vez por ano,
mesmo a esses réprobos, sem o que teria sido Pior. Por fim, senti o ódio inflamar-se em meu
coração.
Encontrei um polonês M-cki,
preso político; lançou-me um olhar sombrio, olhos faiscantes e lábios trêmulos:
"Odeio esses canalhas!" disse-me em voz baixa, rangendo os dentes;
depois se afastou. Voltei à caserna que
acabava de deixar há um quarto de hora apenas, como um insensato, no momento em
que seis camponeses esquentados caíam de uma vez sobre um tártaro embriagado,
chamado Gazine, para o acalmar.
Batiam brutalmente, tanto
que semelhantes golpes teriam bastado para derrubar um camelo; mas sabendo que
seria difícil matar esse Hércules, malhavam sem piedade. Agora, de volta à caserna, notei, lá no fim,
a um canto, sobre a baia, Gazine inanimado e que quase não dava mais sinal de
vida. Jazia coberto por uma pele, e
todos lhe passavam ao lado, em silêncio: esperava-se que no dia seguinte
despertasse; "todavia diziam -, pode
ser também que o pobre diabo arrebente".
Alcancei meu lugar, e me
deitei de costas, as mãos atrás da cabeça, fechando os olhos. Gostava de ficar assim estendido: não se
incomoda os que dormem, assim se pode divagar e meditar à vontade. Mas eu não divagava: meu coração palpitava
ansiosamente e tinha sempre no ouvido as palavras de M-cki: "Odeio esses
canalhas!".
De resto, para que descrever
essas impressões? Ainda agora me
acontece sonhar com elas de noite e não há, para mim, pesadelo mais horroroso.
Ter-se-á talvez observado que até esse dia quase nunca falei de minha vida na
prisão. Quanto às minhas recordações da casa dos mortos, há quinze anos que as
publiquei como sendo de um personagem imaginário, de um assassino que teria
matado a mulher. Acrescento, a esse
propósito, a título de simples pormenor, que muita gente crê e sustenta, ainda
hoje, que estive exilado na Sibéria por ter matado minha mulher!
Pouco a pouco, caí numa
espécie de torpor e me abandonei ao fio das minhas recordações. Durante meus quatro anos de trabalhos
forçados, lembrava-me incessantemente dos dias passados e acredito ter vivido
minha vida uma segunda vez por essas recordações. Elas nasciam de si mesmas; raramente as
evoquei com propósito deliberado. O
ponto de partida era uma coisa insignificante, um traço por vezes imperceptível
que, pouco a pouco, se desenvolvia em imagem, tornava-se uma impressão viva e
completa. Analisava essas impressões,
acrescentava novos toques a esta matéria vivida há tanto tempo e, mais ainda,
eu a modificava e a corrigia sem cessar.
Toda a delícia da coisa consistia nisso.
Lembrei-me, de repente, daquela vez, de uma cia, quando tinha apenas
nove anos de idade. A esta hora,
acreditava bem ter esquecido tudo, mas aprazia-me então nas recordações da
minha primeira infância. Lembrei-me
desse mês de agosto no campo. Fazia um tempo seco e claro, mas um pouco
frio, porque havia vento. O verão
chegava ao fim e logo seria preciso retomar o caminho de Moscou, aborrecer-me
ainda todo um inverno a estudar francês; por isso, sentia o coração opresso à
idéia de deixar o campo. Atravessei a
eira onde se amontoavam os feixes de trigo, e, transpondo uma ravina, subi por
uma mata espessa que se estendia para lá da ravina, até a floresta.
Como me internasse mais na
mata, ouvi não longe, a trinta passos, na clareira, um mujique que trabalhava
sozinho. Sabia que ele trabalhava ao longo de uma rampa que o cavalo se
afadigava terrivelmente em escalar, porque de vez em quando chegava até mim o
grito do camponês: eia! eia! Conhecia
quase todos os nossos mujiques, mas
não sabia qual deles trabalhava, e de resto isso me era indiferente, tanto a
minha lida me absorvia. É que eu também estava ocupado: quebrava varas de
aveleira, para fustigar as rãs. As rãs de aveleira são muito bonitas e
bem mais resistentes que as da bétula.
Escaravelhos e besouros
prendiam também minha atenção porque eu os colecionava. Há-os ricamente
enfeitados. Gostava ainda dos vivos e pequenos lagartos, dum pardo avermelhado,
malhados de minúsculas manchas negras; mas tinha medo das cobras. Aliás, encontram-se bem menos cobras que
lagartos. Havia poucos cogumelos por
ali; para colhê-los era preciso ir para
o lado das bétulas e eu me preparava para isso.
Em minha vida nada amei tanto quanto a floresta com seus cogumelos e
suas bagas selvagens, seus insetos e seus pássaros, seus ouriços e seus esquilos, com o úmido e suave
odor de suas folhagens putrefatas. Ainda
hoje, escrevendo isto, aspiro todo o perfume da nossa floresta, lá longe, na
aldeia; essas impressões durarão tanto quanto minha vida. De repente, em meio
ao grande silêncio, percebi muito distintamente este apelo: "Ao
lobo".
Soltei um grito, e louco de
terror, berrando com quanta força tinha, precipitei-me na clareira, em direção
ao mujique que estava trabalhando.
Era o nosso camponês
Marei. Ignoro se existe tal nome, mas
toda a gente o chamava de Marei. Um camponês de uns cinqüenta anos, robusto,
muito alto, com uma barba ruiva e espessa já grisalha. Eu o conhecia, se bem que
mal lhe tivesse falado até esse dia.
Ouvindo meu grito, ele parou a égua e como, chegado ao pé dele, com uma
das mãos eu me agarrasse à sua charrua e com a outra à sua manga, foi então que
percebeu meu terror.
- Um lobo! - gritei eu, sem
fôlego.
Ele levantou a cabeça e involuntariamente olhou em torno; por um
instante quase me acreditou...
- Onde está o lobo?
-
Gritaram... alguém gritou: "Ao lobo!"- balbuciei.
- Vamos,
vamos, não há lobo, tu sonhaste; que viria fazer um lobo por aqui? - murmurou
ele para me sossegar. Mas, todo trêmulo,
agarrei-me ainda com mais força à sua blusa, e minha palidez devia ser muito
grande. Ele me olhou com um sorriso
inquieto, tinha medo por mim e se alarmava visivelmente com o meu estado.
-
Ah! como tiveste medo, ai, ai! - disse ele meneando a cabeça. Vamos, já
acabou, pequeno. Vejam como ele é
valente!
Estendeu a mão e subitamente me acariciou a face.
-
Vamos, está acabado, vamos, Deus está contigo: faze o sinal-da-cruz.
Mas eu não me persignei; meus lábios estavam
crispados nas comissuras e creio que foi isto que o chocou mais. Aproximou seu dedo grosso de unha negra, sujo
de terra e com doçura aflorou meus lábios convulsos.
-
Vejam isso, ai, ai! - disse-me ele com um largo sorriso, quase
maternal. - Senhor, mas que é isso, então?
Tu bem vês que não há nada, ai, ai!
Compreendi, enfim, que não havia lobo e que esse
grito: "Ao lobo!" não era senão uma ilusão. Entretanto, esse grito tinha ressoado tão
distintamente! Mas gritos semelhantes (e
que não tinham somente relação com lobos) já eu tinha ouvido uma vez ou duas e
sabia que se tratava de uma espécie de alucinação (mais tarde, quando cresci,,
esse fenômeno desapareceu).
- Vou-me embora - disse eu, olhando para ele, com um
ar interrogativo e tímido.
- Vamos, vai, eu te seguirei
com os olhos. Não deixarei que o lobo te
apanhe! - acrescentou ele, sempre com o mesmo sorriso maternal - Vai, que Deus
te acompanhe, vai - e fazendo sobre mim o sínal-da-cruz, ele mesmo se
persignou. Parti, não sem lançar
olhadelas para trás, cada dez passos.
Enquanto eu me distanciava, Marei permanecia imóvel, com sua égua, e
olhava na minha direção, fazendo um sinal com a cabeça quando eu me voltava.
Devo confessar que estava um pouco envergonhado por ter feito alarde de tal
terror, mas o meu medo do lobo não diminuiu enquanto não subi a outra rampa do
barranco e não saí junto aos primeiros feixes; ali, todo sinal de pavor se
esfumou, e meu cão Lobinho subitamente se atirou para mim. Com Lobinho eu me sentia plenamente
garantido. Uma derradeira vez voltei-me
para Marei; não podia mais distinguir seu rosto, mas sentia que ele continuava
a me sorrir com a mesma doçura e que me fazia sinal com a cabeça. Acenei com uma das mãos, ele acenou com a sua
e voltou ao trabalho.
- Eia! Eia! - ouvi-o de longe gritar, enquanto a égua
puxava de novo a charrua.
Tudo isso me voltou de uma
só vez à memória, não sei por que, mas com uma rara precisão de
pormenores. Reabri subitamente os olhos
e me assentei sobre a baia. Reencontrei
então, nos meus lábios, eu me lembro, o sereno sorriso que essas lembranças aí
tinham feito nascer. Durante alguns
instantes, continue] a evocar sua imagem.
Depois de ter deixado Marei, de volta à nossa casa,
eu não tinha aberto o bico sobre tal "aventura". E que espécie de aventura era essa? Aliás, bem depressa esqueci Marei. Quando, daí em diante, o voltava a encontrar
- em raras ocasiões nunca lhe falava, não somente do lobo, mas fosse do que
fosse - e eis que de repente, vinte anos depois, na Sibéria, lembrei-me desse
encontro, até os mínimos pormenores. Era
preciso, pois, que ele tivesse ficado gravado na minha alma, de maneira muito
imperceptível, por si mesmo, e sem o concurso da minha vontade, para que a
lembrança voltasse na hora em que dela necessitava. Revia o temo sorriso maternal do pobre camponês,
nosso servo; recordava-me dos seus sinais-da-cruz, seus meneios de cabeça:
"Como tu tens medo, pequeno!".
E sobretudo aquele grande dedo, sujo de terra, com o
qual, docemente e quase timidamente, ele tinha aflorado o canto da minha
boca. Não importa que, certamente,
falhasse ao tranqüilizar uma criança; mas esse solitário encontro revestia-se
para mim de um sentido particular; tivesse eu sido seu próprio filho e ele não
teria me olhado com expressão de um amor mais puro. Quem, entretanto, o obrigava a isso? Era nosso servo, e eu o filho dos seus amos;
ninguém jamais saberia que me havia acariciado, ninguém o recompensaria por
isso. Amava, então, a esse ponto as
criancinhas? Alguns são assim. O
encontro ocorreu num lugar solitário, em pleno campo, e só Deus do alto do céu
terá visto de que profundo e radioso sentimento humano, de que ternura quase
feminina pode estar cheio o coração de um simples camponês russo, ignorante e
selvagem, ainda preso à gleba e que nem mesmo entrevia a aurora de sua libertação.
Dizei-me, não é isso que
entendia Constantin Aksakov, ao falar da alta educação do nosso povo?
E subitamente,
distanciando-me do meu catre e lançando um olhar em torno, senti que doravante
eu poderia considerar a esses desgraçados, de maneira inteiramente diferente, e
que de repente, como que por
encanto, todo o ódio e toda a cólera acabavam de desaparecer de meu
coração. Eu ia perscrutando os olhares
dos meus companheiros. Esse mujique de
cabeça raspada, aviltado, com o rosto marcado de estigmas, que na sua bebedeira
urrava uma canção obscena, talvez não fosse outro senão o camponês Marei: como
posso eu, com efeito, saber o que se passa na sua alma?
Uma vez ainda, nessa tarde,
reencontrei M-cki. O desgraçado.
Não tinha ele a lembrança de
um camponês Marei, e tudo que podia dizer dessa gente era: "Odeio esses
velhacos1". Sim, os poloneses deviam sofrer muito mais que nós!
(Dostoiévsky, Feódor M. Contos, São Paulo, Cultrix, 1992, p. 201-6)
ATIVIDADES
1.Pesquise em um bom
dicionário os termos ruim e mau e
compare os seus sentidos correntes com as distinções propostas por Nietzsche
entre os dois termos. Se notar muitas
diferenças não se espante; é que a língua Portuguesa não tem equivalentes
precisos para os termos alemães: schlecht
e bos, além de Nietzsche ter, de fato, produzido uma diferenciação entre os
termos, não reconhecida pelo senso comum.
Isso, como produto do trabalho genealógico.
2.Procure, em uma enciclopédia
ou dicionário especializado, o verbete genealogia
e anote os vários sentidos correntes do termo. Descubra também se há algum deles que se
aproxima do que Nietzsche falou, justificando em seguida a sua idéia.
3.Selecione algumas letras de
música ou poemas que, nas palavras de Nietzsche, representariam valores de
sobrevivência. E outros relacionados a
valores de vida. Comente o conto "O mujique Marei", de Dostoiévsky, a
partir do texto de Nietzsche "0 criminoso e os que se assemelham a
ele". Veja se você encontra ressonâncias entre os dois autores e
descreva-as.
VAMOS REFLETIR
1. Você já tinha pensado que
toda verdade é relativa e convencional, qualquer que seja ela? Que, mesmo quando afirmamos "A Terra é
redonda e gira ao redor do Sol", estamos apenas traduzindo em signos a
nossa relação com o universo? Que, por
essa mesma razão, já se pôde afirmar antes que o Sol girava em torno da Terra e
que, no futuro, outra afirmação poderá vir a substituir essa? Que conseqüências você consegue visualizar
para o mundo, quando o homem deixa de acreditar em verdades absolutas?
2. Vamos ver se você entendeu
bem as diferenças entre vida e sobrevivência. Assinale com um X a(s) alternativa(s)
correta(s):
( ) A genealogia avaliaria os valores do mundo
capitalista como ruins, porque geram desigualdade econômica e condições ruins
de alimentação, moradia e educação para a maioria do povo.
( ) A genealogia avaliaria esses mesmos valores
do mundo capitalista como ruins, tendo em vista que padronizam a vida a partir
de valores de mercado, criando uma homogeneidade mediocrizante na esfera
humana.
( ) A genealogia não se
pronuncia sobre os valores do mundo capitalista, pois não é esse o seu objeto
de avaliação.
Agora, justifique a sua
escolha.
3. Comente: "A história
ensina a rir das solenidades da origem" . Ver texto complementar "As
quimeras da origem".
4. Nosso mundo ocidental vive
com base em critérios de verdade. Essa também é a filosofia "a
marteladas" de Nietzsche?
5. O que Nietzsche quer dizer
com a seguinte afirmação: "Procura-se despertar o sentido de soberania do
homem mostrando seu nascimento divino: isso agora se tornou um caminho
proibido; pois no seu limiar está o macaco"? (aurora, § 49). Veja também o
texto complementar de Michel Foucault.
buscado em: cooperação.sem.mando
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