Fios e furos: a trama da subjetividade
e a educação*
Mériti de Souza
Universidade Estadual Paulista –
Campus de Assis, Curso de Psicologia
Introdução
No decorrer dos últimos
anos, as atividades que realizei em escolas com professores, diretores,
técnicos, alunos e seus familiares confrontaram-me com a necessidade de pensar
as teorias sobre a constituição subjetiva e suas relações com as práticas
psicológicas e pedagógicas. A idéia de que um modelo de sujeito define a
organização psíquica e orienta métodos de intervenção estabelecidos a priori
me inquietava, já que podia acompanhar, nos meus trabalhos, o ressoar da
singularidade e a necessidade de repensar os procedimentos adotados nas
atividades desenvolvidas.
As reflexões propiciadas por essas
atividades estimulavam o questionamento da idéia do sujeito moderno – do
indivíduo – como referência a um padrão subjetivo. Assim, lançar atenção e
olhar com novas lentes poderia explicitar as relações entre as conformações
sociais e as subjetividades, questionando o modelo individualizado que
subsidiava a concepção de sujeito universal definido a priori e
orientava a adoção de métodos psicológicos e pedagógicos.
Especificamente, essas atividades
estão inscritas em um projeto de intervenção mais amplo, denominado
Subjetividade e Escolarização, desenvolvido ao longo dos últimos anos em
escolas públicas de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. O trajeto
percorrido nesse trabalho foi longo e marcado por numerosos percalços,
associados às dificuldades presentes nas instituições escolares e àquelas
oriundas da escassez de recursos teóricos e instrumentais produzidos pela
psicologia, tão necessários à intervenção institucional e grupal, que foge aos
moldes de atendimentos referenciados na perspectiva clássica, associada ao foro
individual. Assim, estabeleceu-se uma intervenção-pesquisa voltada ao
desenvolvimento e à implementação de estratégias que possibilitassem a escuta
dessa população e não se ancorassem na concepção da subjetividade
individualizada nem no atendimento como técnica. Essa proposta demanda-
* Trabalho apresentado no GT
Psicologia da Educação, na
26ª Reunião Anual da ANPEd, realizada
em Poços de Caldas, MG,
de 5 a 8 de outubro de 2003.
Mériti de Souza
120 Maio /Jun /Jul /Ago 2004 No 26
va conhecimento sobre a população, ou
seja, sobre sua organização subjetiva, entendida como articulada ao singular e
ao coletivo.
O recurso ao trabalho com grupos foi
uma das estratégias adotadas e, nessa
atividade, escutava discursos que diziam respeito às mais variadas situações e
aos mais diferentes contextos. O aluno que freqüentava, havia anos, a
instituição, e não sabia ler e escrever corretamente, falava do seu “fracasso”
e da sua relação com a impotência e com o desamparo. A mãe do aluno falava
sobre seu filho e sobre si própria, afirmando que não adiantava insistir, pois
ela não havia aprendido mesmo e o filho seguia um caminho semelhante, sendo
melhor colocá-lo para trabalhar.
Escutava, ainda, a professora dizer
que no começo do ano letivo ela já sabia os que iriam aprender e os que não o
conseguiriam; não obstante, apesar desse “conhecimento prévio”, ela reafirmava
a sua disposição em continuar ensinando a todos da mesma forma. A professora
falava ainda sobre as suas tentativas de lidar com os alunos e de atualizar o
seu trabalho, porém deparava-se com situações intransponíveis, como a violência
na sala de aula, a falta de infra-estrutura e o descaso do Estado e das famílias
em relação à questão da educação.
Nos fragmentos das intervenções
relatadas acima, minha preocupação remetia-se à proposta teórica e metodológica
subjacente aos atendimentos oferecidos.
Assim, nas escolas, trabalhava com os
aprendizes, as suas famílias e os professores, o lugar de saber que eles
ocupavam e as relações entre esse lugar e a subjetividade. Por um lado,
problematizava a representação sobre o processo de produção e de aquisição do
conhecimento como um ideal, ou seja, como uma dimensão mágica que, uma vez
alcançada, aplacaria a angústia da condição humana perante o novo e o
desconhecido.
Também discutia a idéia de que alguém
deteria esse saber, quer fosse o professor, quer o psicólogo, quer algum outro
profissional investido de autoridade. Por outro lado, trabalhava com o grupo as
representações presentes na rede social que associam a dimensão do saber aos
lugares institucionais ocupados pelas pessoas, ou seja, estabelecia uma relação
direta entre as condições cognitivas e subjetivas do sujeito perante o
conhecimento e o lugar institucional que ele ocupa. No caso da instituição
escola, os lugares formais que as pessoas ocupam nessa instituição funcionam
como avalistas de uma pretensa conformação psíquica e cognoscente definida a
priori, que, independente das ações por elas empreendidas na prática
pedagógica, atribui-lhes habilidades ou dificuldades para a aquisição e a
produção do conhecimento.
Entretanto, chamaram-me a atenção os
percalços apresentados na condução deste trabalho, decorrentes do fato de essas
pessoas ocuparem um lugar de desqualificação ante a prática educacional, ou
seja, o lugar do não-saber. Assim, a maioria dos alunos e de suas famílias se
representava com dificuldade em se perceber como consumidora e produtora de
conhecimento, ainda que fosse no plano do devir, bem como a maioria dos
professores se representava com dificuldade em se constituir como produtora do
conhecimento.
Além disso, professores, alunos e suas
famílias se equiparam ao se revelarem impossibilitados para propor e
implementar qualquer atividade para alterar esse contexto. Dessa forma, os
discursos por eles proferidos encontram-se quando explicitam a vivência do
tempo como um eterno presente, do qual se excluem projetos para o futuro, e
revelam a dificuldade de se representarem como capazes para produzir alterações
no seu entorno social e na trajetória das suas vidas.
Nessas falas ficava patente o lugar de
desamparo ante o processo de aprender, ocupado por professores, alunos e pais.
O processo de conhecer envolve o lidar com o novo, o diferente, e mesmo com os
limites de cada um de nós (Serres, 1993; Oliveira, 1993). Dessa forma, como
pude verificar após anos de trabalho com esses grupos, os discursos proferidos
por essas pessoas muitas vezes se dissociavam da sua ação, explicitando o fato
de que a racionalidade que sustentava discursos e ações esbarrava na dimensão
afetiva. Em outras palavras, a argumentação construída para lidar com as
dificuldades ante o processo do conhecimento se articula aos afetos, expondo o aspecto
mais geral de que o processo de construção e
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Revista Brasileira de Educação 121
elaboração do saber envolve a razão e
a paixão como constitutivos.
Nessa perspectiva, faz-se necessário
abrir várias frentes de reflexão e de
trabalho. Inicialmente, é possível observar que os discursos acima apontam para
a fantasia do homem – que é a fantasia de todos nós – sobre a existência de um
conhecimento detido pelos educadores, pelos psicólogos, pelo chefe político,
pelo pastor – em suma, por todos aqueles investidos da autoridade do discurso
competente (Chaui, 1989) –, o qual poderia responder às dúvidas sobre a
condição humana. Essa fantasia remete à idéia de que existiria um saber capaz
de responder ao desconhecimento do homem sobre seu psiquismo, sobre a origem e
sobre a vida. Assim, por um lado, os homens constroem sistemas explicativos
gerais, como a ciência, a filosofia e a religião, procurando responder a essa
angústia e, por outro, constroem teorias singulares sobre a existência de alguém
ou algo que pode responder sobre o seu psiquismo (Freud, 1973a, 1973b).
Não obstante, para além desse aspecto
cultural e universal, chama a atenção a tenacidade com que os membros da escola
se aferram aos lugares marcados pelo não-saber. Por um lado, alunos e pais de
alunos em geral se representam como desqualificados ante a possibilidade de
produzir conhecimento, bem como se posicionam como dependentes daqueles que
formalmente o detêm (seja professor, psicólogo ou outra pessoa que ocupe um
lugar formal de detentor de saber).
Por outro lado, professores e técnicos
em geral se representam como detentores do conhecimento, ocupando um lugar que,
no entanto, está associado a impotência nas suas relações com a produção do
saber.
Nessa perspectiva, sobressaem essas
posições subjetivas ocupadas pelos membros da instituição escolar, levando-me a
refletir sobre a tradição cultural e as práticas sociais presentes no cotidiano
dessas pessoas. Especificamente, pergunto: quais as inscrições psíquicas dessas
pessoas na ordem da cultura que as levam a se identificar de forma tão
arraigada com o lugar de desqualificação perante a produção de conhecimento?
A constituição da subjetividade se
articula à história, no sentido de que o sujeito é marcado pela cultura da qual
faz parte e pelas experiências imediatas que o singularizam. Posso supor que a
apreensão singular da tradição cultural possibilita ao sujeito se reconhecer e
reconhecer o outro, a partir da produção de narrativas e memórias sobre si
mesmo e sobre seu entorno (Birman, 1997, 1999; Le Goff, 1996).
Essa compreensão é importante, pois,
como sabemos, determinadas leituras da psicologia e da psicanálise concebem a
estrutura psíquica como definida a priori. Essas leituras tendem a
referendar a proposta liberal que reduz o humano ao indivíduo, e afirma que os
problemas socioeconômicos podem ser resolvidos pela via de ações individuais.
Penso o sujeito como constituído pela
sua história e pelas suas experiências, o que significa considerar o coletivo e
o singular nessa constituição. Assim, o entorno social, representado pelos
valores, conhecimentos e ideais sociais predominantes em determinado período
histórico, articula-se à elaboração de pressupostos coletivos, no sentido da
sua predominância em relação às pessoas que vivem nesse período.
Nessa perspectiva, configura-se a
construção de uma rede cultural e social que se agrega à constituição
subjetiva, mas não restringe ou define essa constituição, já que o aspecto
singular se configura via as experiências idiossincráticas das pessoas, ou
seja, pela apropriação que elas realizam da dimensão coletiva.
Trabalhar com o singular e com o
coletivo, reconhecendo que eles não se separam e que a organização da
constituição psíquica se articula à dimensão histórica e social, explicita a
necessidade de conhecimento sobre a tradição cultural pela qual o sujeito
transita e sobre a apropriação que ele realiza dessa tradição, necessária à
elaboração da sua subjetividade (Castoriadis, 1982). Assim, faz-se necessário
conhecer a cultura brasileira, as narrativas que alimentam a história nacional
e as representações construídas sobre os brasileiros. Em outras palavras,
interessa saber quais valores sociais e culturais impregnam a rede social nacional.
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Considerando que o Brasil está
inscrito na tradição das civilizações ocidentais modernas, pergunto como se
configura a produção subjetiva marcada pelo caldo cultural produzido pela
modernidade. O projeto da modernidade tem como fundamento a separação dos
espaços público e privado, a adoção do contrato social e dos princípios da
igualdade e da liberdade como balizas da organização da vida associativa. Esses
pressupostos encontraram sustentação no movimento liberal e no movimento
iluminista.
O liberalismo constitui-se em um amplo
movimento que se expressa em inúmeras frentes, sejam elas culturais,
filosóficas ou políticas. O princípio da conservação dos direitos naturais do
homem e o princípio da liberdade marcam o liberalismo, ou seja, a defesa da
tese dos direitos individuais baseada na liberdade inerente à natureza humana.
Considerando o desenvolvimento do liberalismo e a sua implantação, verificamos
que esses princípios se alteram e se desdobram em uma doutrina, um programa,
uma teoria e uma prática, gerando o liberalismo político (a democracia
liberal), o econômico, o religioso e o dos costumes. Nesse contexto, produz-se a concepção dos
homens como indivíduos, ou seja, como células únicas, separadas do social
(Dumont, 1985; Burdeau, s.d.).
O Iluminismo também pode ser concebido
como um amplo movimento, composto de várias abordagens filosóficas,
caracterizado pela preocupação em estender
a crítica racional a todos os campos da experiência humana. Esse movimento
encontra sua força no argumento racionalista que concebe o homem como
constituído pela razão, ou seja, dotado dos instrumentos necessários à sua
autonomia, cabendo à sua consciência organizar a vida associativa de acordo com
os princípios da liberdade e da igualdade. Nessa perspectiva, o homem é capaz
de conhecer a si próprio e ao mundo que o rodeia (Abbagnano, 1982, 1986). Em
outras palavras, segundo o ideário do Iluminismo, em decorrência da sua
constituição racional os homens poderiam assumir a maioridade cognoscente e
política, viabilizada, no plano político, pela implantação da idéia da
igualdade e da liberdade, e, no plano social, pela extensão do conhecimento
através da disseminação da educação. Essa tarefa demandou a organização das
instituições modernas do Estado, do aparato jurídico e, por último, da escola,
que se constituiu no locus por excelência da disseminação desse novo
saber.
Nos planos político, econômico e
social, a modernidade sustenta os ideários liberal e capitalista, alimentando a
concepção de indivíduo e de sujeito racional. Relevando as mudanças e as
alterações sofridas
pela implantação e instalação do
projeto da modernidade, esse contexto propicia a organização de uma rede social
e simbólica. Assim, quais as repercussões psíquicas e sociais geradas pela
construção da rede simbólica e das práticas sociais modernas que adotam a
concepção do homem como indivíduo constituído pela razão?
Representação identitária e
modernidade
No plano psíquico, a representação do
sujeito moderno produz a subjetividade individualizada, que leva as pessoas a
se representarem como constituídas por uma identidade única, imutável,
indivisível e marcada por um rol de características definidoras. Em outras
palavras, essa representação opera como um modelo identificatório produtor de
subjetividades marcadas pela crença de que sua organização psíquica
se restringe a uma essência, a uma
identidade individualizada.
A identidade é um dos sustentáculos da
ordem moderna, que, no plano político, se configura na delimitação do
Estado-nação, e no plano econômico, na sedimentação da economia nacional gerida
pelo modo de produção capitalista. Cada território geográfico, doravante
configurado como um país e caracterizado por especificidades culturais,
econômicas e políticas, produz determinadas identidades. No plano coletivo,
temos a elaboração das identidades nacionais, processo que leva as pessoas a se
representarem e se reconhecerem
como constituídas por um rol de
características associadas a um grupo cultural delimitado por um espaço
geográfico e a um contexto político, ou mesmo histórico, as quais as definiriam
(Bauman, 2001; Berman, 1986).
Fios e furos
Revista Brasileira de Educação 123
No plano singular, esse modelo social,
cultural e econômico preconiza a idéia de que a subjetividade coincide com a consciência,
com a realidade e com a verdade. Temos, assim, o modelo do sujeito autônomo e
fundado na razão, entendido como capaz de controlar a si próprio e ao mundo que
o rodeia, sustentando a concepção do homem como indivíduo e produzindo como
substrato psíquico a representação da identidade individualizada (Bezerra Jr.,
1989; Lasch, 1987; Giddens, 2002). Em outras palavras, a identidade se
configura como o substrato psíquico do sujeito da razão e do indivíduo, levando
as pessoas a se representarem como conformadas por uma subjetividade integrada,
sem falhas e brechas, e a se acreditarem como constituídas por um continuum espaço-temporal
que as caracteriza e define (Freire Costa, 1986).
A psicanálise vem questionar esse
império racionalista e fala sobre a constituição da subjetividade como cindida,
já que o humano é marcado tanto pela razão quanto pela paixão. Assim, o plano
psíquico é constituído pelo jogo de forças entre os conteúdos que permanecem
acessíveis à consciência e ao discurso e pelos conteúdos que são excluídos
dessas instâncias. É necessário salientar que o excluído não “desaparece” da
organização psíquica, nem é alocado em alguma instância onde permaneça
“congelado” ou à espera de ser desvelado. O excluído continua operando e
sustenta a configuração da consciência.
O conceito freudiano de estranho pode
ajudar a pensar essa questão, pois uma das descobertas de Freud (1973a, 1973c,
1973d, 1973e) foi explicitar ao homem que o mais íntimo do seu psiquismo
convive com algo que lhe soa como estranho, revelando a subjetividade como
cindida. No texto O estranho (1973c), Freud afirma que, quanto mais o
sujeito vivencia determinadas sensações e situações como estranhas, no sentido
de afastadas e recusadas pela constituição psíquica consciente, mais familiares
elas podem se revelar.
Para o autor, a organização subjetiva
do homem ancora-se no desejo de totalidade, de eternidade, e na busca de
fundamento; porém, quando se depara com a impossibilidade de manter essas
premissas, ele prefere o simulacro, recusa a diferença e busca a sua felicidade
no que acredita ser o idêntico e o mesmo. Daí a grata satisfação experimentada
pelo homem quando estabelece contato com outro homem ou com situações que,
aparentemente, mantêm a possibilidade de reconhecimento do idêntico, do mesmo.
Entretanto, o medo surge quando, ao estabelecer esses mesmos contatos, ele
reconhece a diferença.
A discussão sobre o estranho é
sistematicamente realizada por Freud no desenrolar da sua obra. O autor comenta
que o excluído, apesar de apartado da consciência, permanece atuando no plano
psíquico e funciona como contraponto à constituição da ficção que denominamos
identidade. Assim, a narrativa que o sujeito elabora sobre si – a representação
do eu – e sobre o meio circundante se organiza e se sustenta no jogo de forças
mantido com as representações excluídas; ou seja, o próprio processo de
elaboração da identidade implica o expurgo do diferente. O diferente reporta-se
ao outro externo, seja este uma outra pessoa ou uma outra cultura, e ao outro
interno, o excluído das nossas experiências e representações e necessário à
elaboração da representação identitária.
A identidade, configurada como um rol
de atributos e características definidores que dizem quem e como nós somos, nos
remete a um processo ficcional, porém vivido pelas pessoas como real. Fala-se
da identidade como ficção, pois a sua constituição demanda a manutenção da
crença em uma essência que nos marca, implicando o expurgo de uma série de
representações associadas a experiências frustrantes que nos causaram mal-estar
(Freire Costa, 1986). Assim, no mundo moderno encontra-se a produção da
identidade individualizada, ou seja: o modo de produção econômico e social
ensejado pelo mundo contemporâneo ocidental leva as pessoas a se reconhecerem
como indivíduos constituídos por uma identidade única e definida a priori.
Por um lado, analisar e criticar esse processo de elaboração psíquica não
implica necessariamente sua dissolução, já que as pessoas necessitam empreender
movimentos que impliquem mudanças na sua constituição. Por outro lado, faz-se
necessário relevar a pertinência dessa conformação psíquica, à medida que ela
mobiliza as pessoas e as
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impele à ação, ou seja, a identidade
individualizada se configura não como uma essência ou um a priori, mas
antes como um produto histórico. Entretanto, o lugar da identidade como ficção
psíquica se mantém, já que as pessoas se representam como constituídas dessa
forma e, nessa perspectiva, são impelidas à ação via esse reconhecimento
subjetivo. Nesse estudo, adoto o conceito de representação identitária para
marcar essa leitura, ou seja, a de crítica à representação da identidade como
individualizada e a de reconhecimento da sua pertinência psíquica que mobiliza
o sujeito.
Essa perspectiva abre possibilidades
para analisarmos a dificuldade encontrada pela maioria das pessoas no tocante
ao contato com o novo e à produção do conhecimento, pois esse contato demanda a
suportabilidade da pessoa, já que ele pode ameaçar a sua estabilidade
identitária. O medo do novo vivenciado como estranho, diferente, pode
relacionar-se com o medo da perda da representação identitária, visto que o
conteúdo considerado novo ou diferente pode estar relacionado a conteúdos anteriormente
vivenciados pela pessoa que lhe causaram angústia e foram excluídos do circuito
da memória. Assim, o negado, criticado, discriminado e desqualificado no outro
pode dizer respeito a elementos que compõem a representação identitária e
encontram-se operando, porém, excluídos da consciência. Esse modo de funcionar
pode ser encontrado em subjetividades marcadas por uma representação
identitária extremamente rígida, nas quais o processo do recalque opera de
forma intensa, que, ao se depararem com um outro que evoca o excluído da sua
própria configuração subjetiva, negam o reconhecimento desses conteúdos ou
criticam e até mesmo destroem esse
outro.
A concepção da prática educacional, na
modernidade, propõe a formação do homem, o que implica mudanças. Espera-se que
as representações mudem, se desloquem, e que o saber do sujeito sobre si e
sobre o mundo se altere. Essa dinâmica demanda o reconhecimento do estranho em
nós, possibilitando a mudança da relação estabelecida pelo sujeito consigo
mesmo e com o outro. O contato com o novo necessita que o sujeito tenha
condições subjetivas para questionar suas certezas, podendo reconhecer e
sustentar o contato com o outro, interno e externo, sem sentir-se
demasiadamente ameaçado. Dessa forma, ele pode pensar sobre os estereótipos
construídos acerca do outro que, por ser estranho e conhecido, desestabiliza
suas representações a respeito de um saber apriorístico elaborado sobre si e
sobre o mundo.
A crença em uma possível essência
constitutiva da subjetividade, que sustenta a representação identitária, é
prazerosamente aceita pela maioria das pessoas, pois aplaca a angústia perante
os limites do conhecimento sobre si e sobre o mundo, ao responder de forma
categórica a perguntas como “quem sou?” ou “quem é o outro?”. Assim, essa
crença revela o medo de nos depararmos com a contradição, com a dúvida e com a
diferença.
Toda cultura e toda teoria,
independentemente do seu desenvolvimento científico e tecnológico, continua a
apresentar à existência humana respostas racionais – amparadas no saber dito
científico – e irracionais – amparadas no saber que foi expurgado da
legitimidade científica. Assim, conhecer os conteúdos expurgados das teorias
possibilita conhecer a dinâmica e o funcionamento da ordem cultural que as gestaram.
Seguindo-se o mesmo raciocínio, conhecer os conteúdos excluídos das
representações identitárias oferece uma outra possibilidade à compreensão da
dinâmica que constrói e mantém essas configurações (Le Goff, 1996). Dessa
forma, conhecer esses conteúdos pode dizer-nos, sobre o expurgado, tanto da
representação sobre o sujeito quanto das práticas que sustentam essa concepção.
Nessa perspectiva, cabe perguntar: na
concepção do sujeito da educação como o sujeito racional, qual o expurgado? Ou
seja, no projeto da modernidade, qual o excluído que sustenta a concepção de
sujeito da educação e também sustenta as práticas educacionais?
A exacerbação da razão responde pela
exclusão do limite, da subjetividade cindida, das paixões; afinal, o que
explicita os limites da razão (do logos) é a paixão (o pathos).
Fios e furos
Revista Brasileira de Educação 125
Logos e pathos na tradição cultural
moderna
Foucault (1986, 1987) mostra que,
durante a modernidade, o embate entre logos (razão ou discurso sobre a
racionalidade) e pathos (paixão) associa as paixões à irrazão,
deslocando-as do terreno da ética e da política para o terreno da clínica,
especificamente para a psicologia e a medicina.
Acompanhando o percurso da palavra pathos,
verificamos quanto ela perde da riqueza original do termo grego de onde se
origina. A oposição entre pathos e logos dizia respeito ao
entendimento do primeiro conceito como a passividade do sujeito que sofria com
a experiência irracional e dominadora, e do segundo conceito como o pensamento
lúcido. Essa oposição marcou a filosofia, variando das discussões de filósofos
gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles até a concepção negativa dos
filósofos estóicos e, posteriormente, dos modernos, como Descartes. Em outras
palavras, a concepção das paixões como vício ou virtude acompanha o
entendimento da sua relação com a razão (Nunes, 1987).
A dificuldade de compreender o termo pathos
pode estar associada ao fato de ele abarcar dois conceitos diferentes, como
o passional, que originará a ética, e o patológico, que remeterá ao diagnóstico
médico.
Como vemos, de um lado está a
responsabilidade da ética, pressupondo-se que no embate entre razão e paixão
existe a possibilidade de controle da última pela primeira; e, de outro lado, a
doença da patologia, pressupondo que nesse embate a paixão arrasta o sujeito,
obliterando sua razão (Lebrun, 1987). Outra correlação pode ser estabelecida
entre ativo e passivo, pois pathos significava que o sujeito sofreu uma
determinada ação ou que efetivou determinada ação (Leminsky, 1987). O pathos
pode ser associado com o sofrer compreendido em dois sentidos, ou seja,
sofrer pressupõe que aquele que sofre tem um mal, bem como pressupõe que ele
suporta, tolera esse mal, esperando com passividade superá-lo.
Na tradição filosófica ocidental,
observamos o esforço empreendido no sentido de subjugar a paixão contrapondo-a
à razão. Filósofos como Kant vêem a paixão como uma perturbação do espírito,
uma doença da alma, e propõem que a liberdade humana se encontra no seu
controle. Para Descartes, a consciência, mesmo sendo constituída pela razão,
quando é atingida pela paixão perde o domínio reflexivo. O discurso cartesiano
que marca a era moderna procura demonstrar a prioridade da razão sobre as
paixões e a necessidade de o homem controlá-las.
Segundo Abbagnano (1982), o movimento
iluminista não se restringe à leitura cartesiana, pois o primeiro preconiza que
o exercício da razão seja aplicado a todos os aspectos da vida humana e que a
crítica seja dirigida às diversas áreas do conhecimento.
Na perspectiva desse autor, a tradição
filosófica do Iluminismo reconhece os limites da razão à medida que vislumbra a
vinculação desta ao empírico, através do trabalho da observação e da
experimentação, sem que isso implique a sua submissão ao imediatismo dos dados,
pois a verdade necessita ser desvelada. Nessa medida, o Iluminismo incorpora a
leitura cartesiana que sobrepõe subjetividade a consciência, sem, no entanto,
restringir-se a ela. Constatamos que na filosofia moderna prevalece a concepção
cartesiana, em detrimento de outras vertentes da proposta iluminista que
apontavam para os limites da consciência e para a necessidade de o sujeito
direcionar seu instrumental crítico também para sua própria consciência. Assim,
o sujeito por excelência da educação – o iluminista – pode relevar os limites
da sua atuação e reconhecer a necessidade de trabalhar com outros aspectos,
como os afetivos, por exemplo. Entretanto, o ideário iluminista apropriado pelo
projeto da modernidade que se disseminou associou a representação da
subjetividade à consciência totalizadora, obliterando o reconhecimento dos
limites da razão.
Dentre os gregos também encontramos a
tradição dos trágicos como Eurípedes e Sófocles, que releva as paixões como
inerentes ao humano e propõe que seu reconhecimento possa estimular a
compreensão do humano sobre o humano, favorecendo a organização
da vida associativa. Na tradição
moderna, Espinosa rompe com as teorias clássicas e cristãs que
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126 Maio /Jun /Jul /Ago 2004 No 26
adotam a idéia de reversibilidade e de
hierarquia entre o ativo e o passivo. Nas teorias clássicas, o ativo é o termo
que faz recair sua ação sobre um outro, e o passivo é o termo sobre o qual
recai a ação de um outro. Nessa leitura se estabelece a relação causal entre
corpo e alma e o entendimento da virtude como capaz de guiar e domar as
paixões. Entretanto, para Espinosa, tanto a atividade quanto a passividade se
expressam no corpo e na alma, o que altera a relação paixão e ação conforme
configurada nos termos da oposição (clássica e cristã) entre razão e irrazão.
Não existe na ética espinosana a primazia do cálculo da razão em relação às
paixões, sendo que nessa leitura as paixões são dotadas de força para decidir e
agir, definindo o seu próprio interesse (Chaui, 1987).
Freud está inscrito no grupo daqueles
que relevam a paixão e propõem a sua escuta. Ele releva o humano como marcado
pela pulsão entendida como expressão do somato e do psíquico, do corpo e
da representação. O corpo constitui-se na fonte das excitações, às quais as
representações se agregam, permitindo-nos o acesso aos afetos e às emoções e
explicitando o plano singular e o coletivo. Assim, o discurso sobre o afeto
proferido por aquele que o sofre será escutado por aquele que se oferece como
continente, configurando-se um trabalho de nomeação e inscrição dos afetos em
um universo simbólico coletivo (consciente) que possibilita não necessariamente
seu controle, mas sua contenção. Essa leitura sobre a subjetividade oferece um
estatuto à dimensão consciente e à dimensão inconsciente, inscrevendo-se na
perspectiva iluminista que releva os limites da razão ao propor que “onde era o
id o eu advirá”. Possivelmente, a dificuldade em relevar a paixão é que
esse movimento implica reconhecer a herança filogenética (animal) e a presença
do enigmático na subjetividade humana, explicitando o limite do conhecimento e,
conseqüentemente, o limite do poder e do controle que o humano pode exercer
sobre si e sobre a natureza. Temos assim o questionamento do ideal narcísico,
sustentado pela representação moderna do homem como racional e capaz de
conhecer e controlar a si próprio e a natureza. Nessa perspectiva, verificamos
como a ilusão cartesiana, que sobrepõe a subjetividade à consciência, à verdade
e ao real, é questionada pela presença da paixão, que funciona como o excluído
do projeto moderno e racional. Reconhecer as paixões como constitutivas da
subjetividade humana implica reconhecer que somos aquilo que experimentamos e
sentimos em relação ao discurso que construímos sobre o que experimentamos e
sentimos. A defasagem entre o discurso e as ações constantemente observadas no
comportamento humano oferece a medida não apenas da presença dos afetos, mas
também da necessidade de considerarmos essa presença como atuante na
organização subjetiva.
Assim, excluir o pathos da vida
psíquica, ou desqualificá-lo, propondo o seu controle pela razão, não se
constitui em alternativa, visto que a sua presença é inerente à condição
humana.
Entretanto, vale ressaltar que a dinâmica
da exclusão tanto opera na construção das diferentes teorias que desqualificam
as paixões e valorizam o racional, quanto se faz presente na elaboração de
teorias que excluem a razão, idealizam as paixões e oferecem ao homem um
conhecimento baseado em parâmetros intuitivos e transcendentais. Assim, teorias
que idealizam os afetos obliteram o fato de que as paixões tanto podem
impulsionar e estimular os homens no seu desejo pela vida quanto os podem
destruir e separar. Em outras palavras, a negação da dimensão afetiva ou da
razão, presente em algumas teorias psicológicas e educacionais, explicita a
própria ação da paixão de obliterar a percepção do homem acerca dos limites
impostos pela condição humana à possibilidade do conhecimento e do exercício do
controle.
Acompanhando essa perspectiva, a
pergunta indispensável relaciona-se à possibilidade de construção do
conhecimento baseada na concepção de subjetividade que reconheça a dimensão
humana da razão e da paixão, efetivando o diálogo entre essas duas instâncias.
Utilizando como referencial de análise
a tragédia das Bacantes, de Eurípedes, Rouanet (1987) trabalha essa questão,
destacando os personagens para pontuar em cada um a presença da razão louca ou
da
Fios e furos
Revista Brasileira de Educação 127
razão sábia, definidas conforme suas
relações com a paixão. A razão louca marca o modo de operar da subjetividade
que nega as paixões e se julga capaz de controlar as suas ações e o seu
entorno, prescindindo do contato com o outro e mesmo desqualificando diferentes
formas de cultura e pensamento. Assim, ela oblitera a consciência e produz a
dependência e a heteronomia do sujeito, pois sua capacidade de ação fica
paralisada, em decorrência da interiorização do poder. A razão sábia releva os
afetos e consegue obter conhecimento, produzindo a autonomia do sujeito.
Utilizando as premissas da psicanálise
e do Iluminismo, Rouanet (1985) propõe o diálogo entre a razão e a paixão,
afirmando que este pode ser produtivo e revelar-se como necessário ao processo
civilizatório.
Ele mantém a premissa iluminista da
consciência como sede dos processos intelectuais e do eu como agente do
conhecimento, incorporando as análises freudianas que apontam os mecanismos que
operam a serviço do desejo e produzem uma leitura da realidade adequada à
demanda do sujeito. Essa discussão ganha relevância quando se considera que a
modernidade concebe a educação como informação e como formação, segundo a
leitura proposta pelo projeto iluminista. Nesse projeto a educação se
institucionaliza assumindo a configuração da escola, que, por seu turno, teria
por objetivo a difusão e a implantação de um ideário político, ideológico,
econômico e social pela via da construção do sujeito moderno. Em outras
palavras, no plano ideal, o processo de escolarização como projeto
civilizatório previa a ascensão dos súditos à condição de cidadãos, através de
sua formação. Para tanto, assumiu, entre outros aspectos, a proposta iluminista
que concebia o sujeito como constituído pela razão e incorporou a proposta liberal
que defendia os princípios da liberdade e da igualdade como necessários à
organização social. Em outras palavras, no plano coletivo e político, a adoção
do princípio da igualdade e, no plano singular, a concepção do sujeito
cognoscente, conjugadas, orientam a proposta de escolarização como disseminação
do saber que operaria a construção da cidadania.
Conforme vimos, no projeto da
modernidade, a educação tanto é sobreposta à escolarização quanto é concebida
como processo capaz de informar e de formar o sujeito. Para que esse processo
se efetive faz-se necessário que os pressupostos da razão e da igualdade sejam
atribuídos às pessoas, tanto no plano formal quanto no plano institucional, bem
como faz-se necessário que as pessoas reconheçam essa atribuição e representem
a si próprias e as outras como tributárias dessas prerrogativas. Em outras
palavras, os participantes do projeto moderno tanto necessitam ter reconhecido
seu lugar de saber e sua condição de igualdade no sistema social quanto
reconhecer o seu lugar perante o conhecimento. Entretanto, é justamente a
dificuldade de reconhecimento desses lugares que observamos na população das
escolas com as quais trabalhamos, o que nos leva a perguntar pelas implicações
do lugar subjetivo no processo de conhecimento.
Assim, a atribuição a priori do
lugar cognoscente ao sujeito sustenta a prática educacional escolarizada como
capaz de produzir pessoas aptas a lançar um olhar crítico sobre si e sobre seu
entorno. Entretanto, como opera o processo educacional pautado por esse
princípio? Ele se sustenta pautado em métodos orientados pela expansão da
consciência decorrente da aquisição de informações pelo sujeito? Nessa
perspectiva, o processo de escolarização opera como dispositivo de
subjetivação?
Acompanhando a apresentação realizada
acima, observamos a dissociação operada entre logos e pathos,
quer na tradição grega aristotélica, quer na moderna concepção cartesiana. Essa
dissociação se reporta, entre outros aspectos, ao modelo epistemológico
subjacente nesses referenciais, no qual prevalece a possibilidade do
conhecimento como exclusivamente associado à razão. Todavia, na tradição dos
trágicos gregos, como Eurípedes, Sófocles e Ésquilo, bem como na senda de
Espinosa, o processo de conhecer se associa à experiência, ou seja, a
experiência apresenta-se como necessária à produção do conhecimento.
Fédida (1988, 1996) reporta-se ao
poeta Ésquilo, que adota a tradição grega, ao pensar a paixão (pathos)
Mériti de Souza
128 Maio /Jun /Jul /Ago 2004 No 26
como experiência que possibilita um
ensino sobre o humano. O homem atravessado pelas paixões carrega um discurso (logos)
sobre elas que oferece um ensinamento sobre a subjetividade. Essa posição
distanciase daquela racionalista, que pensa o saber como produzido unicamente
por meio da reflexão, já que associa a produção do conhecimento ao
entrelaçamento da cognição e dos afetos.
Para o autor, a experiência assume
algumas configurações, podendo ser caracterizada como um evento, ou um conjunto
de eventos, que pressupõe uma certa permanência temporal e que porta um saber,
pois é carregada de sentidos que marcaram o sujeito, permitindo-lhe produzir
conhecimento sobre alguns aspectos da realidade e sobre o seu psiquismo. A
experiência produz uma mudança subjetiva
que se traduz pela mobilização do eu, ou seja, essa mudança pode ser
reconhecida por seu trabalho na vida psíquica, explicitada na capacidade do
sujeito de conter os impulsos, não se confundindo essa contenção com constrangimento.
Como vemos, a experiência entendida
como locus para o processo de aprendizagem humana demanda uma concepção
de sujeito e de produção de conhecimento que pressupõe a relação entre razão e
paixão como necessária à efetivação desse processo.
Para Benjamin (1994), o processo de
aquisição do conhecimento já esteve intimamente associado à experiência humana,
ou seja, quando a sociedade se organizava de forma que o saber-fazer era
articulado ao saber narrativo, a produção e a transmissão do conhecimento se
associavam às experiências das pessoas. Assim acontecia com o artesão, que
configurava o homem experiente, aquele que conhecia todo o processo de produção
material e, por via da transmissão do seu saber, narrava e construía a sua
cultura.
Nesse processo, o mestre estabelecia
com seus aprendizes uma relação de reciprocidade, marcada pela confluência dos
saberes de ambos na produção do conhecimento.
Para o autor, na sociedade
industrializada, o avanço da técnica e da fragmentação do trabalho permitiu que
a informação ocupasse o lugar do conhecimento e a vivência ocupasse o lugar da
experiência. Assim,
toda a informação produzida pelos
modernos meios de comunicação chega às pessoas oferecendo-lhes não apenas
visões fragmentadas sobre o mundo, mas, principalmente, visões saturadas de
interpretações e verdades sobre os fatos, dispensando o homem da relação com as
situações e da narração sobre elas. Nessa perspectiva, a figura do espectador
se informa, mas não se forma.
Reconhecendo as especificidades das
discussões realizadas pelos autores, comentadas anteriormente, interessa
ressaltar a dimensão da experiência associada à produção do conhecimento.
Assim, relevando essa dimensão, pergunta-se sobre a sua relação com a prática
educacional, à medida que interessa problematizar a concepção moderna sobre a aquisição
e a produção do saber. O trabalho pedagógico pode gerar transformação na
organização psíquica das pessoas envolvidas e, conseqüentemente, no contexto
social?
O trabalho pedagógico pode
constituir-se em experiência alterando a posição ocupada pelas pessoas perante
a aquisição e produção de conhecimento? Em outras palavras, é possível
trabalhar, no processo pedagógico, com a constituição da experiência como
produtora de efeitos de subjetivação?
As práticas educacionais
A proposta moderna que preconiza a
educação como propiciadora da transformação social adota teorias e métodos que
pressupõem a transmissão do saber como informação e formação do homem e,
conseqüentemente, como dispositivo de mudança psíquica. Entretanto, relevar
exclusivamente o plano da consciência não implica mudança subjetiva, na medida
em que o excluído – entendido como os afetos, as paixões – continua operando.
Para viabilizar esse pressuposto, é necessário, entre outros aspectos, que se
estabeleça entre os envolvidos no processo educacional uma relação na qual os
participantes ocupem lugares subjetivos que suportem o contato com o malestar
produzido pelo reconhecimento do limite da capacidade cognoscente do outro e
sobre sua própria capacidade. Nessa perspectiva, a experiência com o
Fios e furos
Revista Brasileira de Educação 129
saber implica alterações no lugar
subjetivo e, conseqüentemente, pode produzir mudanças no lugar institucional
que as pessoas ocupam. Considerar a trama histórica, corporificada nas redes
econômicas, sociais e políticas, como associada à produção subjetiva significa
entender que o psiquismo é localizado e significado pelo outro – o outro que
nos habita e o outro da cultura –, que se torna parte integrante da
constituição humana. Nessa medida, a subjetividade é compreendida como
atravessada pelo pathos e pelo logos e articulada ao singular e
ao coletivo. Essa concepção demanda o trabalho com o excluído, seja da
representação identitária do homem moderno como identidade individualizada
exclusivamente racional, seja da produção do conhecimento como ancorada
exclusivamente na razão.
Esse trabalho é difícil, pois vivemos
e nos constituímos em uma cultura produtora de modelos identificatórios que
levam os homens a se representarem como constituídos por uma subjetividade
integrada –
já que sobreposta à consciência e
capaz de realizar a plena apreensão do real e da verdade – e única – à medida
que se associa à representação da identidade como individualizada, desconectada
do social e estruturada por atributos exclusivos que definem o sujeito.
Essa perspectiva exclui a dimensão das
paixões e abandona a dimensão da subjetividade como cindida.
Entretanto, conforme salientado
anteriormente, a elaboração subjetiva acontece na articulação das pessoas com a
tradição cultural da modernidade e, dessa forma, elas acreditam na falácia da
identidade integrada e individualizada e toleram mal o limite, a falha, a
falta. Reconhecendo esse contexto, a pergunta posta é sobre as repercussões
dessa organização psíquica na prática profissional. A preponderância, nos meios
educacionais, de relações marcadas pela hierarquização; a atribuição ao outro
de um lugar de desqualificação; a demanda por “receitas” para responder às
vicissitudes enfrentadas na escolarização (como as dificuldades no processo de
ensino-aprendizagem, a presença da violência nas escolas, entre outras); a
adesão incondicional a teorias e métodos que adotam concepções de sujeito e do
ensino-aprendizagem baseadas em modelos definidos a priori, todos esses
aspectos podem dizer respeito às subjetividades conformadas por uma
representação identitária rígida, as quais não toleram o contato com a angústia
gerada pelo não-saber e pelos limites do saber sobre si próprio, sobre o mundo
social e o mundo natural.
Vale a pena problematizar as dimensões
que o saber a priori assume nas configurações subjetivas. Assim, no caso
do professor, essa concepção age em duas direções, pois tanto aplaca o medo de
ver dissipada a identidade profissional, sustentáculo da crença de que o lugar
institucional define a posse do conhecimento, quanto reitera a representação da
identidade singular, que também se constitui amparada pela certeza sobre o
acesso à verdade sobre si. Nessa medida, quando o professor afirma, no começo
do ano, que “já sabe quem vai ser alfabetizado ou não”, ou mesmo “quem vai
aprender ou não”, ele pode estar reiterando um lugar de saber sobre si que
explicita a dificuldade em sustentar uma condição psíquica tolerante ao contato
com o outro e com o novo, pois esse contato desestabiliza sua representação
identitária e explicita a falta, o limite. Da mesma forma, quando o aluno
afirma que não aprende mesmo, e não adianta tentar, ele também está reiterando
um lugar perante o saber que se configura como não-saber e explicita sua dificuldade
em produzir novas representações identitárias sobre si, o outro e seu entorno.
Reconhecer e tomar contato com o excluído, com a alteridade, no sentido do
outro que habita a subjetividade e do outro da cultura, pode gerar medo nas
pessoas, pois elas acreditam na verdade da sua constituição identitária, ou
seja, supõem conhecer plenamente a si próprias, aos outros e ao seu entorno
social. Tais pessoas acreditam ainda poderem controlar a si próprias e ao seu
entorno, bastando um esforço, um ato de vontade, para transformar o seu
contexto. Dessa forma, o contato com a alteridade pode desestabilizar a
representação identitária una e plena, explicitando os limites da razão e da
consciência.
No caso do educador, esse desconforto
perante a contradição e a alteridade é redobrado, pois o trabalho pedagógico
assenta-se em parâmetros que preco-
Mériti de Souza
130 Maio /Jun /Jul /Ago 2004 No 26
nizam justamente a potência do ato
educacional como transformador, e a consciência e a razão como instrumentos dessa
operação. Assim, trabalhar com a prática educacional construindo experiência é
difícil, pois esse trabalho demanda que as pessoas se deixem afetar pelo outro,
produzindo conhecimento conjuntamente, e que suportem o desconhecimento sobre o
outro participante do processo e sobre o outro que habita a subjetividade. As
perguntas se dirigem, agora, à possibilidade de o trabalho pedagógico sustentar
o lugar da dúvida e de que o processo de aquisição do conhecimento escolarizado
possa favorecer as pessoas na construção de novas narrativas sobre sua história
e sobre a história do seu entorno.
Essas p ossibilidades se revelam
interessantes, pois a construção de novas narrativas pode contribuir para a
desconstrução do engodo liberal que dissemina a idéia das pessoas constituídas
como indivíduos.
Em outras palavras, a sociedade
contemporânea liberal e capitalista elaborou uma série de narrativas sobre seus
fundamentos e propostas e sobre o perfil dos homens que a compõem. As
elaboradas sobre a noção de indivíduo, no plano subjetivo, sustentam a crença
das pessoas constituídas como células únicas, separadas do social e marcadas
pela representação da organização psíquica como restrita a uma essência,
configurada como uma identidade una e indivisível.
Assim, produz-se a idéia de que as
pessoas podem, apenas com a chamada “força de vontade”, resolver todas as suas
dificuldades e conseguir uma vida melhor para si e para os seus.
Dessa forma, a concepção de indivíduo
sustenta a culpabilização daqueles que já se encontram em uma situação difícil,
levando-os a acreditar que, por incompetência própria, estejam, por exemplo,
desempregados, infelizes no amor, com dificuldades na aprendizagem, dentre
outras mazelas. Assim, bastaria a utilização da “força de vontade” e o aumento
da auto-estima para que todos os problemas fossem resolvidos. Essa leitura, por
um lado, retira a responsabilidade do Estado e das instituições no tocante à
qualidade de vida e aos direitos sociais; por outro, isola as pessoas,
restringindo a responsabilidade da sociedade e de todos nós em relação à
qualidade de vida do outro.
A experiência educacional não se
restringe aos discursos sobre ensino e aprendizagem, sobre métodos e técnicas,
ou sobre as condições sociais. O processo educacional pode constituir-se em
experiência quando as narrativas construídas pelos seus participantes puderem
ser reelaboradas, assumindo novos sentidos, ou seja, quando eles conseguirem
pensar o que ainda não haviam pensado, atribuindo novos significados às
representações elaboradas sobre si e sobre o entorno social.
Nessa perspectiva, não é possível
determinar o caminho a ser seguido pensando na definição de novos métodos ou
estratégias que assegurassem o estabelecimento da experiência formadora.
Entretanto, reconhecer o imponderável não significa abandonar a ação. Assim,
podemos imaginar que o reconhecimento, por parte dos envolvidos no processo
educacional, da sua implicação com o trabalho de construção do conhecimento
caminhe na direção da experiência.
Dessa forma, o processo de aquisição e
de produção de conhecimento não é garantido pela adoção de pressupostos
definidos a priori; mas a relação estabelecida entre a teoria e a
prática pode nos dizer sobre as razões e as paixões que circulam, sustentam e
constroem a experiência educacional.
Transformar o trabalho educacional em
experiência demanda relevar os limites e as potencialidades do humano; demanda
a produção de conhecimento teórico alicerçado pela prática que se retroalimenta
da teoria. Suportar a dúvida perante essa questão pode ser um primeiro passo
para caminhar nessa estrada, relevando os buracos e os tropeços. Reconhecer que
a trama do saber envolve os limites e as potencialidades do homem oferece outra
medida para o trabalho. A falha, a falta, o limite não significam a recusa, a
impotência, o estancamento, o negativo. Essas condições são inerentes à
condição humana e podem funcionar como aliadas da ação, da potência, da
transformação, do positivo. Da mesma forma que a rede se corporifica
no entremeio dos seus fios e dos seus
furos, a trama do conhecimento ganha corpo com e a partir do reco-
Fios e furos
Revista Brasileira de Educação 131
nhecimento da capacidade cognoscente
como articulada ao subjetivo, da paixão associada à razão.
MÉRITI DE SOUZA, doutora em psicologia
clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é professora no
Curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de
Assis. Publicou recentemente: A experiência da lei e a lei da experiência:
ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil (São Paulo: FAPESP;
Rio de Janeiro: Revan, 1999); Modernidade, subjetividade e valores: novos
(velhos) sintomas Em: SANTOS, G. e SILVA, D. (orgs.). Estudos sobre ética:
a construção de valores na sociedade e na educação (São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2002, p. 137-154); Educação, práticas clínicas e cidadania.
Arquivos Brasileiros de Psicologia (Rio
de Janeiro: UFRJ; Imago Editora, 2002, v. 54, nº 2, p. 167-177); Discurso
fundador, história e subjetividades (Psicologia em Revista. Belo Horizonte : Pontifícia Universidade Católica, 2002, v. 8, nº
12, p. 57-64); Juventude e educação: lugares de todos ou de alguns? (Insight
Revista de Psicoterapia e Psicanálise. São Paulo: Lemos, 2002, ano
XII, nº 127, p. 9-13); A experiência transgressiva: leis e adolescentes (Pulsional
– Revista de Psicanálise, São Paulo: Escuta, 2001, ano 14, nº 147, p.
52-65); A cordialidade como mal-estar ou a violência como recalcado (Revista Latinoamericana
de Psicopatologia Fundamental, São Paulo: Escuta, 1999, ano II, nº 4, p.
123-142). E-mail: meritidesouza@yahoo.com
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