domingo, 10 de março de 2013

Fios e furos: a trama da subjetividade e a educação


Fios e furos: a trama da subjetividade e a educação*
Mériti de Souza
Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis, Curso de Psicologia
  
Introdução
No decorrer dos últimos anos, as atividades que realizei em escolas com professores, diretores, técnicos, alunos e seus familiares confrontaram-me com a necessidade de pensar as teorias sobre a constituição subjetiva e suas relações com as práticas psicológicas e pedagógicas. A idéia de que um modelo de sujeito define a organização psíquica e orienta métodos de intervenção estabelecidos a priori me inquietava, já que podia acompanhar, nos meus trabalhos, o ressoar da singularidade e a necessidade de repensar os procedimentos adotados nas atividades desenvolvidas.
As reflexões propiciadas por essas atividades estimulavam o questionamento da idéia do sujeito moderno – do indivíduo – como referência a um padrão subjetivo. Assim, lançar atenção e olhar com novas lentes poderia explicitar as relações entre as conformações sociais e as subjetividades, questionando o modelo individualizado que subsidiava a concepção de sujeito universal definido a priori e orientava a adoção de métodos psicológicos e pedagógicos.

Especificamente, essas atividades estão inscritas em um projeto de intervenção mais amplo, denominado Subjetividade e Escolarização, desenvolvido ao longo dos últimos anos em escolas públicas de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. O trajeto percorrido nesse trabalho foi longo e marcado por numerosos percalços, associados às dificuldades presentes nas instituições escolares e àquelas oriundas da escassez de recursos teóricos e instrumentais produzidos pela psicologia, tão necessários à intervenção institucional e grupal, que foge aos moldes de atendimentos referenciados na perspectiva clássica, associada ao foro individual. Assim, estabeleceu-se uma intervenção-pesquisa voltada ao desenvolvimento e à implementação de estratégias que possibilitassem a escuta dessa população e não se ancorassem na concepção da subjetividade individualizada nem no atendimento como técnica. Essa proposta demanda-

* Trabalho apresentado no GT Psicologia da Educação, na
26ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Poços de Caldas, MG,
de 5 a 8 de outubro de 2003.
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va conhecimento sobre a população, ou seja, sobre sua organização subjetiva, entendida como articulada ao singular e ao coletivo.
O recurso ao trabalho com grupos foi uma das estratégias adotadas e,  nessa atividade, escutava discursos que diziam respeito às mais variadas situações e aos mais diferentes contextos. O aluno que freqüentava, havia anos, a instituição, e não sabia ler e escrever corretamente, falava do seu “fracasso” e da sua relação com a impotência e com o desamparo. A mãe do aluno falava sobre seu filho e sobre si própria, afirmando que não adiantava insistir, pois ela não havia aprendido mesmo e o filho seguia um caminho semelhante, sendo melhor colocá-lo para trabalhar.
Escutava, ainda, a professora dizer que no começo do ano letivo ela já sabia os que iriam aprender e os que não o conseguiriam; não obstante, apesar desse “conhecimento prévio”, ela reafirmava a sua disposição em continuar ensinando a todos da mesma forma. A professora falava ainda sobre as suas tentativas de lidar com os alunos e de atualizar o seu trabalho, porém deparava-se com situações intransponíveis, como a violência na sala de aula, a falta de infra-estrutura e o descaso do Estado e das famílias em relação à questão da educação.
Nos fragmentos das intervenções relatadas acima, minha preocupação remetia-se à proposta teórica e metodológica subjacente aos atendimentos oferecidos.
Assim, nas escolas, trabalhava com os aprendizes, as suas famílias e os professores, o lugar de saber que eles ocupavam e as relações entre esse lugar e a subjetividade. Por um lado, problematizava a representação sobre o processo de produção e de aquisição do conhecimento como um ideal, ou seja, como uma dimensão mágica que, uma vez alcançada, aplacaria a angústia da condição humana perante o novo e o desconhecido.
Também discutia a idéia de que alguém deteria esse saber, quer fosse o professor, quer o psicólogo, quer algum outro profissional investido de autoridade. Por outro lado, trabalhava com o grupo as representações presentes na rede social que associam a dimensão do saber aos lugares institucionais ocupados pelas pessoas, ou seja, estabelecia uma relação direta entre as condições cognitivas e subjetivas do sujeito perante o conhecimento e o lugar institucional que ele ocupa. No caso da instituição escola, os lugares formais que as pessoas ocupam nessa instituição funcionam como avalistas de uma pretensa conformação psíquica e cognoscente definida a priori, que, independente das ações por elas empreendidas na prática pedagógica, atribui-lhes habilidades ou dificuldades para a aquisição e a produção do conhecimento.
Entretanto, chamaram-me a atenção os percalços apresentados na condução deste trabalho, decorrentes do fato de essas pessoas ocuparem um lugar de desqualificação ante a prática educacional, ou seja, o lugar do não-saber. Assim, a maioria dos alunos e de suas famílias se representava com dificuldade em se perceber como consumidora e produtora de conhecimento, ainda que fosse no plano do devir, bem como a maioria dos professores se representava com dificuldade em se constituir como produtora do conhecimento.
Além disso, professores, alunos e suas famílias se equiparam ao se revelarem impossibilitados para propor e implementar qualquer atividade para alterar esse contexto. Dessa forma, os discursos por eles proferidos encontram-se quando explicitam a vivência do tempo como um eterno presente, do qual se excluem projetos para o futuro, e revelam a dificuldade de se representarem como capazes para produzir alterações no seu entorno social e na trajetória das suas vidas.
Nessas falas ficava patente o lugar de desamparo ante o processo de aprender, ocupado por professores, alunos e pais. O processo de conhecer envolve o lidar com o novo, o diferente, e mesmo com os limites de cada um de nós (Serres, 1993; Oliveira, 1993). Dessa forma, como pude verificar após anos de trabalho com esses grupos, os discursos proferidos por essas pessoas muitas vezes se dissociavam da sua ação, explicitando o fato de que a racionalidade que sustentava discursos e ações esbarrava na dimensão afetiva. Em outras palavras, a argumentação construída para lidar com as dificuldades ante o processo do conhecimento se articula aos afetos, expondo o aspecto mais geral de que o processo de construção e


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elaboração do saber envolve a razão e a paixão como constitutivos.
Nessa perspectiva, faz-se necessário abrir várias frentes de reflexão e  de trabalho. Inicialmente, é possível observar que os discursos acima apontam para a fantasia do homem – que é a fantasia de todos nós – sobre a existência de um conhecimento detido pelos educadores, pelos psicólogos, pelo chefe político, pelo pastor – em suma, por todos aqueles investidos da autoridade do discurso competente (Chaui, 1989) –, o qual poderia responder às dúvidas sobre a condição humana. Essa fantasia remete à idéia de que existiria um saber capaz de responder ao desconhecimento do homem sobre seu psiquismo, sobre a origem e sobre a vida. Assim, por um lado, os homens constroem sistemas explicativos gerais, como a ciência, a filosofia e a religião, procurando responder a essa angústia e, por outro, constroem teorias singulares sobre a existência de alguém ou algo que pode responder sobre o seu psiquismo (Freud, 1973a, 1973b).
Não obstante, para além desse aspecto cultural e universal, chama a atenção a tenacidade com que os membros da escola se aferram aos lugares marcados pelo não-saber. Por um lado, alunos e pais de alunos em geral se representam como desqualificados ante a possibilidade de produzir conhecimento, bem como se posicionam como dependentes daqueles que formalmente o detêm (seja professor, psicólogo ou outra pessoa que ocupe um lugar formal de detentor de saber).
Por outro lado, professores e técnicos em geral se representam como detentores do conhecimento, ocupando um lugar que, no entanto, está associado a impotência nas suas relações com a produção do saber.
Nessa perspectiva, sobressaem essas posições subjetivas ocupadas pelos membros da instituição escolar, levando-me a refletir sobre a tradição cultural e as práticas sociais presentes no cotidiano dessas pessoas. Especificamente, pergunto: quais as inscrições psíquicas dessas pessoas na ordem da cultura que as levam a se identificar de forma tão arraigada com o lugar de desqualificação perante a produção de conhecimento?
A constituição da subjetividade se articula à história, no sentido de que o sujeito é marcado pela cultura da qual faz parte e pelas experiências imediatas que o singularizam. Posso supor que a apreensão singular da tradição cultural possibilita ao sujeito se reconhecer e reconhecer o outro, a partir da produção de narrativas e memórias sobre si mesmo e sobre seu entorno (Birman, 1997, 1999; Le Goff, 1996).
Essa compreensão é importante, pois, como sabemos, determinadas leituras da psicologia e da psicanálise concebem a estrutura psíquica como definida a priori. Essas leituras tendem a referendar a proposta liberal que reduz o humano ao indivíduo, e afirma que os problemas socioeconômicos podem ser resolvidos pela via de ações individuais.
Penso o sujeito como constituído pela sua história e pelas suas experiências, o que significa considerar o coletivo e o singular nessa constituição. Assim, o entorno social, representado pelos valores, conhecimentos e ideais sociais predominantes em determinado período histórico, articula-se à elaboração de pressupostos coletivos, no sentido da sua predominância em relação às pessoas que vivem nesse período.
Nessa perspectiva, configura-se a construção de uma rede cultural e social que se agrega à constituição subjetiva, mas não restringe ou define essa constituição, já que o aspecto singular se configura via as experiências idiossincráticas das pessoas, ou seja, pela apropriação que elas realizam da dimensão coletiva.
Trabalhar com o singular e com o coletivo, reconhecendo que eles não se separam e que a organização da constituição psíquica se articula à dimensão histórica e social, explicita a necessidade de conhecimento sobre a tradição cultural pela qual o sujeito transita e sobre a apropriação que ele realiza dessa tradição, necessária à elaboração da sua subjetividade (Castoriadis, 1982). Assim, faz-se necessário conhecer a cultura brasileira, as narrativas que alimentam a história nacional e as representações construídas sobre os brasileiros. Em outras palavras, interessa saber quais valores sociais e culturais impregnam a rede social nacional.

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Considerando que o Brasil está inscrito na tradição das civilizações ocidentais modernas, pergunto como se configura a produção subjetiva marcada pelo caldo cultural produzido pela modernidade. O projeto da modernidade tem como fundamento a separação dos espaços público e privado, a adoção do contrato social e dos princípios da igualdade e da liberdade como balizas da organização da vida associativa. Esses pressupostos encontraram sustentação no movimento liberal e no movimento iluminista.
O liberalismo constitui-se em um amplo movimento que se expressa em inúmeras frentes, sejam elas culturais, filosóficas ou políticas. O princípio da conservação dos direitos naturais do homem e o princípio da liberdade marcam o liberalismo, ou seja, a defesa da tese dos direitos individuais baseada na liberdade inerente à natureza humana. Considerando o desenvolvimento do liberalismo e a sua implantação, verificamos que esses princípios se alteram e se desdobram em uma doutrina, um programa, uma teoria e uma prática, gerando o liberalismo político (a democracia liberal), o econômico, o religioso e o dos costumes.  Nesse contexto, produz-se a concepção dos homens como indivíduos, ou seja, como células únicas, separadas do social (Dumont, 1985; Burdeau, s.d.).
O Iluminismo também pode ser concebido como um amplo movimento, composto de várias abordagens filosóficas, caracterizado pela preocupação em estender  a crítica racional a todos os campos da experiência humana. Esse movimento encontra sua força no argumento racionalista que concebe o homem como constituído pela razão, ou seja, dotado dos instrumentos necessários à sua autonomia, cabendo à sua consciência organizar a vida associativa de acordo com os princípios da liberdade e da igualdade. Nessa perspectiva, o homem é capaz de conhecer a si próprio e ao mundo que o rodeia (Abbagnano, 1982, 1986). Em outras palavras, segundo o ideário do Iluminismo, em decorrência da sua constituição racional os homens poderiam assumir a maioridade cognoscente e política, viabilizada, no plano político, pela implantação da idéia da igualdade e da liberdade, e, no plano social, pela extensão do conhecimento através da disseminação da educação. Essa tarefa demandou a organização das instituições modernas do Estado, do aparato jurídico e, por último, da escola, que se constituiu no locus por excelência da disseminação desse novo saber.
Nos planos político, econômico e social, a modernidade sustenta os ideários liberal e capitalista, alimentando a concepção de indivíduo e de sujeito racional. Relevando as mudanças e as alterações sofridas
pela implantação e instalação do projeto da modernidade, esse contexto propicia a organização de uma rede social e simbólica. Assim, quais as repercussões psíquicas e sociais geradas pela construção da rede simbólica e das práticas sociais modernas que adotam a concepção do homem como indivíduo constituído pela razão?

Representação identitária e modernidade
No plano psíquico, a representação do sujeito moderno produz a subjetividade individualizada, que leva as pessoas a se representarem como constituídas por uma identidade única, imutável, indivisível e marcada por um rol de características definidoras. Em outras palavras, essa representação opera como um modelo identificatório produtor de subjetividades marcadas pela crença de que sua organização psíquica
se restringe a uma essência, a uma identidade individualizada.
A identidade é um dos sustentáculos da ordem moderna, que, no plano político, se configura na delimitação do Estado-nação, e no plano econômico, na sedimentação da economia nacional gerida pelo modo de produção capitalista. Cada território geográfico, doravante configurado como um país e caracterizado por especificidades culturais, econômicas e políticas, produz determinadas identidades. No plano coletivo, temos a elaboração das identidades nacionais, processo que leva as pessoas a se representarem e se reconhecerem
como constituídas por um rol de características associadas a um grupo cultural delimitado por um espaço geográfico e a um contexto político, ou mesmo histórico, as quais as definiriam (Bauman, 2001; Berman, 1986).

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No plano singular, esse modelo social, cultural e econômico preconiza a idéia de que a subjetividade coincide com a consciência, com a realidade e com a verdade. Temos, assim, o modelo do sujeito autônomo e fundado na razão, entendido como capaz de controlar a si próprio e ao mundo que o rodeia, sustentando a concepção do homem como indivíduo e produzindo como substrato psíquico a representação da identidade individualizada (Bezerra Jr., 1989; Lasch, 1987; Giddens, 2002). Em outras palavras, a identidade se configura como o substrato psíquico do sujeito da razão e do indivíduo, levando as pessoas a se representarem como conformadas por uma subjetividade integrada, sem falhas e brechas, e a se acreditarem como constituídas por um continuum espaço-temporal que as caracteriza e define (Freire Costa, 1986).
A psicanálise vem questionar esse império racionalista e fala sobre a constituição da subjetividade como cindida, já que o humano é marcado tanto pela razão quanto pela paixão. Assim, o plano psíquico é constituído pelo jogo de forças entre os conteúdos que permanecem acessíveis à consciência e ao discurso e pelos conteúdos que são excluídos dessas instâncias. É necessário salientar que o excluído não “desaparece” da organização psíquica, nem é alocado em alguma instância onde permaneça “congelado” ou à espera de ser desvelado. O excluído continua operando e sustenta a configuração da consciência.
O conceito freudiano de estranho pode ajudar a pensar essa questão, pois uma das descobertas de Freud (1973a, 1973c, 1973d, 1973e) foi explicitar ao homem que o mais íntimo do seu psiquismo convive com algo que lhe soa como estranho, revelando a subjetividade como cindida. No texto O estranho (1973c), Freud afirma que, quanto mais o sujeito vivencia determinadas sensações e situações como estranhas, no sentido de afastadas e recusadas pela constituição psíquica consciente, mais familiares elas podem se revelar.
Para o autor, a organização subjetiva do homem ancora-se no desejo de totalidade, de eternidade, e na busca de fundamento; porém, quando se depara com a impossibilidade de manter essas premissas, ele prefere o simulacro, recusa a diferença e busca a sua felicidade no que acredita ser o idêntico e o mesmo. Daí a grata satisfação experimentada pelo homem quando estabelece contato com outro homem ou com situações que, aparentemente, mantêm a possibilidade de reconhecimento do idêntico, do mesmo. Entretanto, o medo surge quando, ao estabelecer esses mesmos contatos, ele reconhece a diferença.
A discussão sobre o estranho é sistematicamente realizada por Freud no desenrolar da sua obra. O autor comenta que o excluído, apesar de apartado da consciência, permanece atuando no plano psíquico e funciona como contraponto à constituição da ficção que denominamos identidade. Assim, a narrativa que o sujeito elabora sobre si – a representação do eu – e sobre o meio circundante se organiza e se sustenta no jogo de forças mantido com as representações excluídas; ou seja, o próprio processo de elaboração da identidade implica o expurgo do diferente. O diferente reporta-se ao outro externo, seja este uma outra pessoa ou uma outra cultura, e ao outro interno, o excluído das nossas experiências e representações e necessário à elaboração da representação identitária.
A identidade, configurada como um rol de atributos e características definidores que dizem quem e como nós somos, nos remete a um processo ficcional, porém vivido pelas pessoas como real. Fala-se da identidade como ficção, pois a sua constituição demanda a manutenção da crença em uma essência que nos marca, implicando o expurgo de uma série de representações associadas a experiências frustrantes que nos causaram mal-estar (Freire Costa, 1986). Assim, no mundo moderno encontra-se a produção da identidade individualizada, ou seja: o modo de produção econômico e social ensejado pelo mundo contemporâneo ocidental leva as pessoas a se reconhecerem como indivíduos constituídos por uma identidade única e definida a priori. Por um lado, analisar e criticar esse processo de elaboração psíquica não implica necessariamente sua dissolução, já que as pessoas necessitam empreender movimentos que impliquem mudanças na sua constituição. Por outro lado, faz-se necessário relevar a pertinência dessa conformação psíquica, à medida que ela mobiliza as pessoas e as

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impele à ação, ou seja, a identidade individualizada se configura não como uma essência ou um a priori, mas antes como um produto histórico. Entretanto, o lugar da identidade como ficção psíquica se mantém, já que as pessoas se representam como constituídas dessa forma e, nessa perspectiva, são impelidas à ação via esse reconhecimento subjetivo. Nesse estudo, adoto o conceito de representação identitária para marcar essa leitura, ou seja, a de crítica à representação da identidade como individualizada e a de reconhecimento da sua pertinência psíquica que mobiliza o sujeito.
Essa perspectiva abre possibilidades para analisarmos a dificuldade encontrada pela maioria das pessoas no tocante ao contato com o novo e à produção do conhecimento, pois esse contato demanda a suportabilidade da pessoa, já que ele pode ameaçar a sua estabilidade identitária. O medo do novo vivenciado como estranho, diferente, pode relacionar-se com o medo da perda da representação identitária, visto que o conteúdo considerado novo ou diferente pode estar relacionado a conteúdos anteriormente vivenciados pela pessoa que lhe causaram angústia e foram excluídos do circuito da memória. Assim, o negado, criticado, discriminado e desqualificado no outro pode dizer respeito a elementos que compõem a representação identitária e encontram-se operando, porém, excluídos da consciência. Esse modo de funcionar pode ser encontrado em subjetividades marcadas por uma representação identitária extremamente rígida, nas quais o processo do recalque opera de forma intensa, que, ao se depararem com um outro que evoca o excluído da sua própria configuração subjetiva, negam o reconhecimento desses conteúdos ou
criticam e até mesmo destroem esse outro.
A concepção da prática educacional, na modernidade, propõe a formação do homem, o que implica mudanças. Espera-se que as representações mudem, se desloquem, e que o saber do sujeito sobre si e sobre o mundo se altere. Essa dinâmica demanda o reconhecimento do estranho em nós, possibilitando a mudança da relação estabelecida pelo sujeito consigo mesmo e com o outro. O contato com o novo necessita que o sujeito tenha condições subjetivas para questionar suas certezas, podendo reconhecer e sustentar o contato com o outro, interno e externo, sem sentir-se demasiadamente ameaçado. Dessa forma, ele pode pensar sobre os estereótipos construídos acerca do outro que, por ser estranho e conhecido, desestabiliza suas representações a respeito de um saber apriorístico elaborado sobre si e sobre o mundo.
A crença em uma possível essência constitutiva da subjetividade, que sustenta a representação identitária, é prazerosamente aceita pela maioria das pessoas, pois aplaca a angústia perante os limites do conhecimento sobre si e sobre o mundo, ao responder de forma categórica a perguntas como “quem sou?” ou “quem é o outro?”. Assim, essa crença revela o medo de nos depararmos com a contradição, com a dúvida e com a diferença.
Toda cultura e toda teoria, independentemente do seu desenvolvimento científico e tecnológico, continua a apresentar à existência humana respostas racionais – amparadas no saber dito científico – e irracionais – amparadas no saber que foi expurgado da legitimidade científica. Assim, conhecer os conteúdos expurgados das teorias possibilita conhecer a dinâmica e o funcionamento da ordem cultural que as gestaram. Seguindo-se o mesmo raciocínio, conhecer os conteúdos excluídos das representações identitárias oferece uma outra possibilidade à compreensão da dinâmica que constrói e mantém essas configurações (Le Goff, 1996). Dessa forma, conhecer esses conteúdos pode dizer-nos, sobre o expurgado, tanto da representação sobre o sujeito quanto das práticas que sustentam essa concepção.
Nessa perspectiva, cabe perguntar: na concepção do sujeito da educação como o sujeito racional, qual o expurgado? Ou seja, no projeto da modernidade, qual o excluído que sustenta a concepção de sujeito da educação e também sustenta as práticas educacionais?
A exacerbação da razão responde pela exclusão do limite, da subjetividade cindida, das paixões; afinal, o que explicita os limites da razão (do logos) é a paixão (o pathos).


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Logos e pathos na tradição cultural moderna

Foucault (1986, 1987) mostra que, durante a modernidade, o embate entre logos (razão ou discurso sobre a racionalidade) e pathos (paixão) associa as paixões à irrazão, deslocando-as do terreno da ética e da política para o terreno da clínica, especificamente para a psicologia e a medicina.
Acompanhando o percurso da palavra pathos, verificamos quanto ela perde da riqueza original do termo grego de onde se origina. A oposição entre pathos e logos dizia respeito ao entendimento do primeiro conceito como a passividade do sujeito que sofria com a experiência irracional e dominadora, e do segundo conceito como o pensamento lúcido. Essa oposição marcou a filosofia, variando das discussões de filósofos gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles até a concepção negativa dos filósofos estóicos e, posteriormente, dos modernos, como Descartes. Em outras palavras, a concepção das paixões como vício ou virtude acompanha o entendimento da sua relação com a razão (Nunes, 1987).
A dificuldade de compreender o termo pathos pode estar associada ao fato de ele abarcar dois conceitos diferentes, como o passional, que originará a ética, e o patológico, que remeterá ao diagnóstico médico.
Como vemos, de um lado está a responsabilidade da ética, pressupondo-se que no embate entre razão e paixão existe a possibilidade de controle da última pela primeira; e, de outro lado, a doença da patologia, pressupondo que nesse embate a paixão arrasta o sujeito, obliterando sua razão (Lebrun, 1987). Outra correlação pode ser estabelecida entre ativo e passivo, pois pathos significava que o sujeito sofreu uma determinada ação ou que efetivou determinada ação (Leminsky, 1987). O pathos pode ser associado com o sofrer compreendido em dois sentidos, ou seja, sofrer pressupõe que aquele que sofre tem um mal, bem como pressupõe que ele suporta, tolera esse mal, esperando com passividade superá-lo.
Na tradição filosófica ocidental, observamos o esforço empreendido no sentido de subjugar a paixão contrapondo-a à razão. Filósofos como Kant vêem a paixão como uma perturbação do espírito, uma doença da alma, e propõem que a liberdade humana se encontra no seu controle. Para Descartes, a consciência, mesmo sendo constituída pela razão, quando é atingida pela paixão perde o domínio reflexivo. O discurso cartesiano que marca a era moderna procura demonstrar a prioridade da razão sobre as paixões e a necessidade de o homem controlá-las.
Segundo Abbagnano (1982), o movimento iluminista não se restringe à leitura cartesiana, pois o primeiro preconiza que o exercício da razão seja aplicado a todos os aspectos da vida humana e que a crítica seja dirigida às diversas áreas do conhecimento.
Na perspectiva desse autor, a tradição filosófica do Iluminismo reconhece os limites da razão à medida que vislumbra a vinculação desta ao empírico, através do trabalho da observação e da experimentação, sem que isso implique a sua submissão ao imediatismo dos dados, pois a verdade necessita ser desvelada. Nessa medida, o Iluminismo incorpora a leitura cartesiana que sobrepõe subjetividade a consciência, sem, no entanto, restringir-se a ela. Constatamos que na filosofia moderna prevalece a concepção cartesiana, em detrimento de outras vertentes da proposta iluminista que apontavam para os limites da consciência e para a necessidade de o sujeito direcionar seu instrumental crítico também para sua própria consciência. Assim, o sujeito por excelência da educação – o iluminista – pode relevar os limites da sua atuação e reconhecer a necessidade de trabalhar com outros aspectos, como os afetivos, por exemplo. Entretanto, o ideário iluminista apropriado pelo projeto da modernidade que se disseminou associou a representação da subjetividade à consciência totalizadora, obliterando o reconhecimento dos limites da razão.
Dentre os gregos também encontramos a tradição dos trágicos como Eurípedes e Sófocles, que releva as paixões como inerentes ao humano e propõe que seu reconhecimento possa estimular a compreensão do humano sobre o humano, favorecendo a organização
da vida associativa. Na tradição moderna, Espinosa rompe com as teorias clássicas e cristãs que

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adotam a idéia de reversibilidade e de hierarquia entre o ativo e o passivo. Nas teorias clássicas, o ativo é o termo que faz recair sua ação sobre um outro, e o passivo é o termo sobre o qual recai a ação de um outro. Nessa leitura se estabelece a relação causal entre corpo e alma e o entendimento da virtude como capaz de guiar e domar as paixões. Entretanto, para Espinosa, tanto a atividade quanto a passividade se expressam no corpo e na alma, o que altera a relação paixão e ação conforme configurada nos termos da oposição (clássica e cristã) entre razão e irrazão. Não existe na ética espinosana a primazia do cálculo da razão em relação às paixões, sendo que nessa leitura as paixões são dotadas de força para decidir e agir, definindo o seu próprio interesse (Chaui, 1987).
Freud está inscrito no grupo daqueles que relevam a paixão e propõem a sua escuta. Ele releva o humano como marcado pela pulsão entendida como expressão do somato e do psíquico, do corpo e da representação. O corpo constitui-se na fonte das excitações, às quais as representações se agregam, permitindo-nos o acesso aos afetos e às emoções e explicitando o plano singular e o coletivo. Assim, o discurso sobre o afeto proferido por aquele que o sofre será escutado por aquele que se oferece como continente, configurando-se um trabalho de nomeação e inscrição dos afetos em um universo simbólico coletivo (consciente) que possibilita não necessariamente seu controle, mas sua contenção. Essa leitura sobre a subjetividade oferece um estatuto à dimensão consciente e à dimensão inconsciente, inscrevendo-se na perspectiva iluminista que releva os limites da razão ao propor que “onde era o id o eu advirá”. Possivelmente, a dificuldade em relevar a paixão é que esse movimento implica reconhecer a herança filogenética (animal) e a presença do enigmático na subjetividade humana, explicitando o limite do conhecimento e, conseqüentemente, o limite do poder e do controle que o humano pode exercer sobre si e sobre a natureza. Temos assim o questionamento do ideal narcísico, sustentado pela representação moderna do homem como racional e capaz de conhecer e controlar a si próprio e a natureza. Nessa perspectiva, verificamos como a ilusão cartesiana, que sobrepõe a subjetividade à consciência, à verdade e ao real, é questionada pela presença da paixão, que funciona como o excluído do projeto moderno e racional. Reconhecer as paixões como constitutivas da subjetividade humana implica reconhecer que somos aquilo que experimentamos e sentimos em relação ao discurso que construímos sobre o que experimentamos e sentimos. A defasagem entre o discurso e as ações constantemente observadas no comportamento humano oferece a medida não apenas da presença dos afetos, mas também da necessidade de considerarmos essa presença como atuante na organização subjetiva.
Assim, excluir o pathos da vida psíquica, ou desqualificá-lo, propondo o seu controle pela razão, não se constitui em alternativa, visto que a sua presença é inerente à condição humana.
Entretanto, vale ressaltar que a dinâmica da exclusão tanto opera na construção das diferentes teorias que desqualificam as paixões e valorizam o racional, quanto se faz presente na elaboração de teorias que excluem a razão, idealizam as paixões e oferecem ao homem um conhecimento baseado em parâmetros intuitivos e transcendentais. Assim, teorias que idealizam os afetos obliteram o fato de que as paixões tanto podem impulsionar e estimular os homens no seu desejo pela vida quanto os podem destruir e separar. Em outras palavras, a negação da dimensão afetiva ou da razão, presente em algumas teorias psicológicas e educacionais, explicita a própria ação da paixão de obliterar a percepção do homem acerca dos limites impostos pela condição humana à possibilidade do conhecimento e do exercício do controle.
Acompanhando essa perspectiva, a pergunta indispensável relaciona-se à possibilidade de construção do conhecimento baseada na concepção de subjetividade que reconheça a dimensão humana da razão e da paixão, efetivando o diálogo entre essas duas instâncias.
Utilizando como referencial de análise a tragédia das Bacantes, de Eurípedes, Rouanet (1987) trabalha essa questão, destacando os personagens para pontuar em cada um a presença da razão louca ou da

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razão sábia, definidas conforme suas relações com a paixão. A razão louca marca o modo de operar da subjetividade que nega as paixões e se julga capaz de controlar as suas ações e o seu entorno, prescindindo do contato com o outro e mesmo desqualificando diferentes formas de cultura e pensamento. Assim, ela oblitera a consciência e produz a dependência e a heteronomia do sujeito, pois sua capacidade de ação fica paralisada, em decorrência da interiorização do poder. A razão sábia releva os afetos e consegue obter conhecimento, produzindo a autonomia do sujeito.
Utilizando as premissas da psicanálise e do Iluminismo, Rouanet (1985) propõe o diálogo entre a razão e a paixão, afirmando que este pode ser produtivo e revelar-se como necessário ao processo civilizatório.
Ele mantém a premissa iluminista da consciência como sede dos processos intelectuais e do eu como agente do conhecimento, incorporando as análises freudianas que apontam os mecanismos que operam a serviço do desejo e produzem uma leitura da realidade adequada à demanda do sujeito. Essa discussão ganha relevância quando se considera que a modernidade concebe a educação como informação e como formação, segundo a leitura proposta pelo projeto iluminista. Nesse projeto a educação se institucionaliza assumindo a configuração da escola, que, por seu turno, teria por objetivo a difusão e a implantação de um ideário político, ideológico, econômico e social pela via da construção do sujeito moderno. Em outras palavras, no plano ideal, o processo de escolarização como projeto civilizatório previa a ascensão dos súditos à condição de cidadãos, através de sua formação. Para tanto, assumiu, entre outros aspectos, a proposta iluminista que concebia o sujeito como constituído pela razão e incorporou a proposta liberal que defendia os princípios da liberdade e da igualdade como necessários à organização social. Em outras palavras, no plano coletivo e político, a adoção do princípio da igualdade e, no plano singular, a concepção do sujeito cognoscente, conjugadas, orientam a proposta de escolarização como disseminação do saber que operaria a construção da cidadania.
Conforme vimos, no projeto da modernidade, a educação tanto é sobreposta à escolarização quanto é concebida como processo capaz de informar e de formar o sujeito. Para que esse processo se efetive faz-se necessário que os pressupostos da razão e da igualdade sejam atribuídos às pessoas, tanto no plano formal quanto no plano institucional, bem como faz-se necessário que as pessoas reconheçam essa atribuição e representem a si próprias e as outras como tributárias dessas prerrogativas. Em outras palavras, os participantes do projeto moderno tanto necessitam ter reconhecido seu lugar de saber e sua condição de igualdade no sistema social quanto reconhecer o seu lugar perante o conhecimento. Entretanto, é justamente a dificuldade de reconhecimento desses lugares que observamos na população das escolas com as quais trabalhamos, o que nos leva a perguntar pelas implicações do lugar subjetivo no processo de conhecimento.
Assim, a atribuição a priori do lugar cognoscente ao sujeito sustenta a prática educacional escolarizada como capaz de produzir pessoas aptas a lançar um olhar crítico sobre si e sobre seu entorno. Entretanto, como opera o processo educacional pautado por esse princípio? Ele se sustenta pautado em métodos orientados pela expansão da consciência decorrente da aquisição de informações pelo sujeito? Nessa perspectiva, o processo de escolarização opera como dispositivo de subjetivação?
Acompanhando a apresentação realizada acima, observamos a dissociação operada entre logos e pathos, quer na tradição grega aristotélica, quer na moderna concepção cartesiana. Essa dissociação se reporta, entre outros aspectos, ao modelo epistemológico subjacente nesses referenciais, no qual prevalece a possibilidade do conhecimento como exclusivamente associado à razão. Todavia, na tradição dos trágicos gregos, como Eurípedes, Sófocles e Ésquilo, bem como na senda de Espinosa, o processo de conhecer se associa à experiência, ou seja, a experiência apresenta-se como necessária à produção do conhecimento.
Fédida (1988, 1996) reporta-se ao poeta Ésquilo, que adota a tradição grega, ao pensar a paixão (pathos)

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como experiência que possibilita um ensino sobre o humano. O homem atravessado pelas paixões carrega um discurso (logos) sobre elas que oferece um ensinamento sobre a subjetividade. Essa posição distanciase daquela racionalista, que pensa o saber como produzido unicamente por meio da reflexão, já que associa a produção do conhecimento ao entrelaçamento da cognição e dos afetos.
Para o autor, a experiência assume algumas configurações, podendo ser caracterizada como um evento, ou um conjunto de eventos, que pressupõe uma certa permanência temporal e que porta um saber, pois é carregada de sentidos que marcaram o sujeito, permitindo-lhe produzir conhecimento sobre alguns aspectos da realidade e sobre o seu psiquismo. A experiência  produz uma mudança subjetiva que se traduz pela mobilização do eu, ou seja, essa mudança pode ser reconhecida por seu trabalho na vida psíquica, explicitada na capacidade do sujeito de conter os impulsos, não se confundindo essa  contenção com constrangimento.
Como vemos, a experiência entendida como locus para o processo de aprendizagem humana demanda uma concepção de sujeito e de produção de conhecimento que pressupõe a relação entre razão e paixão como necessária à efetivação desse processo.
Para Benjamin (1994), o processo de aquisição do conhecimento já esteve intimamente associado à experiência humana, ou seja, quando a sociedade se organizava de forma que o saber-fazer era articulado ao saber narrativo, a produção e a transmissão do conhecimento se associavam às experiências das pessoas. Assim acontecia com o artesão, que configurava o homem experiente, aquele que conhecia todo o processo de produção material e, por via da transmissão do seu saber, narrava e construía a sua cultura.
Nesse processo, o mestre estabelecia com seus aprendizes uma relação de reciprocidade, marcada pela confluência dos saberes de ambos na produção do conhecimento.
Para o autor, na sociedade industrializada, o avanço da técnica e da fragmentação do trabalho permitiu que a informação ocupasse o lugar do conhecimento e a vivência ocupasse o lugar da experiência. Assim,
toda a informação produzida pelos modernos meios de comunicação chega às pessoas oferecendo-lhes não apenas visões fragmentadas sobre o mundo, mas, principalmente, visões saturadas de interpretações e verdades sobre os fatos, dispensando o homem da relação com as situações e da narração sobre elas. Nessa perspectiva, a figura do espectador se informa, mas não se forma.
Reconhecendo as especificidades das discussões realizadas pelos autores, comentadas anteriormente, interessa ressaltar a dimensão da experiência associada à produção do conhecimento. Assim, relevando essa dimensão, pergunta-se sobre a sua relação com a prática educacional, à medida que interessa problematizar a concepção moderna sobre a aquisição e a produção do saber. O trabalho pedagógico pode gerar transformação na organização psíquica das pessoas envolvidas e, conseqüentemente, no contexto social?
O trabalho pedagógico pode constituir-se em experiência alterando a posição ocupada pelas pessoas perante a aquisição e produção de conhecimento? Em outras palavras, é possível trabalhar, no processo pedagógico, com a constituição da experiência como produtora de efeitos de subjetivação?

As práticas educacionais
A proposta moderna que preconiza a educação como propiciadora da transformação social adota teorias e métodos que pressupõem a transmissão do saber como informação e formação do homem e, conseqüentemente, como dispositivo de mudança psíquica. Entretanto, relevar exclusivamente o plano da consciência não implica mudança subjetiva, na medida em que o excluído – entendido como os afetos, as paixões – continua operando. Para viabilizar esse pressuposto, é necessário, entre outros aspectos, que se estabeleça entre os envolvidos no processo educacional uma relação na qual os participantes ocupem lugares subjetivos que suportem o contato com o malestar produzido pelo reconhecimento do limite da capacidade cognoscente do outro e sobre sua própria capacidade. Nessa perspectiva, a experiência com o






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saber implica alterações no lugar subjetivo e, conseqüentemente, pode produzir mudanças no lugar institucional que as pessoas ocupam. Considerar a trama histórica, corporificada nas redes econômicas, sociais e políticas, como associada à produção subjetiva significa entender que o psiquismo é localizado e significado pelo outro – o outro que nos habita e o outro da cultura –, que se torna parte integrante da constituição humana. Nessa medida, a subjetividade é compreendida como atravessada pelo pathos e pelo logos e articulada ao singular e ao coletivo. Essa concepção demanda o trabalho com o excluído, seja da representação identitária do homem moderno como identidade individualizada exclusivamente racional, seja da produção do conhecimento como ancorada exclusivamente na razão.
Esse trabalho é difícil, pois vivemos e nos constituímos em uma cultura produtora de modelos identificatórios que levam os homens a se representarem como constituídos por uma subjetividade integrada –
já que sobreposta à consciência e capaz de realizar a plena apreensão do real e da verdade – e única – à medida que se associa à representação da identidade como individualizada, desconectada do social e estruturada por atributos exclusivos que definem o sujeito.
Essa perspectiva exclui a dimensão das paixões e abandona a dimensão da subjetividade como cindida.
Entretanto, conforme salientado anteriormente, a elaboração subjetiva acontece na articulação das pessoas com a tradição cultural da modernidade e, dessa forma, elas acreditam na falácia da identidade integrada e individualizada e toleram mal o limite, a falha, a falta. Reconhecendo esse contexto, a pergunta posta é sobre as repercussões dessa organização psíquica na prática profissional. A preponderância, nos meios educacionais, de relações marcadas pela hierarquização; a atribuição ao outro de um lugar de desqualificação; a demanda por “receitas” para responder às vicissitudes enfrentadas na escolarização (como as dificuldades no processo de ensino-aprendizagem, a presença da violência nas escolas, entre outras); a adesão incondicional a teorias e métodos que adotam concepções de sujeito e do ensino-aprendizagem baseadas em modelos definidos a priori, todos esses aspectos podem dizer respeito às subjetividades conformadas por uma representação identitária rígida, as quais não toleram o contato com a angústia gerada pelo não-saber e pelos limites do saber sobre si próprio, sobre o mundo social e o mundo natural.
Vale a pena problematizar as dimensões que o saber a priori assume nas configurações subjetivas. Assim, no caso do professor, essa concepção age em duas direções, pois tanto aplaca o medo de ver dissipada a identidade profissional, sustentáculo da crença de que o lugar institucional define a posse do conhecimento, quanto reitera a representação da identidade singular, que também se constitui amparada pela certeza sobre o acesso à verdade sobre si. Nessa medida, quando o professor afirma, no começo do ano, que “já sabe quem vai ser alfabetizado ou não”, ou mesmo “quem vai aprender ou não”, ele pode estar reiterando um lugar de saber sobre si que explicita a dificuldade em sustentar uma condição psíquica tolerante ao contato com o outro e com o novo, pois esse contato desestabiliza sua representação identitária e explicita a falta, o limite. Da mesma forma, quando o aluno afirma que não aprende mesmo, e não adianta tentar, ele também está reiterando um lugar perante o saber que se configura como não-saber e explicita sua dificuldade em produzir novas representações identitárias sobre si, o outro e seu entorno. Reconhecer e tomar contato com o excluído, com a alteridade, no sentido do outro que habita a subjetividade e do outro da cultura, pode gerar medo nas pessoas, pois elas acreditam na verdade da sua constituição identitária, ou seja, supõem conhecer plenamente a si próprias, aos outros e ao seu entorno social. Tais pessoas acreditam ainda poderem controlar a si próprias e ao seu entorno, bastando um esforço, um ato de vontade, para transformar o seu contexto. Dessa forma, o contato com a alteridade pode desestabilizar a representação identitária una e plena, explicitando os limites da razão e da consciência.
No caso do educador, esse desconforto perante a contradição e a alteridade é redobrado, pois o trabalho pedagógico assenta-se em parâmetros que preco-

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nizam justamente a potência do ato educacional como transformador, e a consciência e a razão como instrumentos dessa operação. Assim, trabalhar com a prática educacional construindo experiência é difícil, pois esse trabalho demanda que as pessoas se deixem afetar pelo outro, produzindo conhecimento conjuntamente, e que suportem o desconhecimento sobre o outro participante do processo e sobre o outro que habita a subjetividade. As perguntas se dirigem, agora, à possibilidade de o trabalho pedagógico sustentar o lugar da dúvida e de que o processo de aquisição do conhecimento escolarizado possa favorecer as pessoas na construção de novas narrativas sobre sua história e sobre a história do seu entorno.
Essas p ossibilidades se revelam interessantes, pois a construção de novas narrativas pode contribuir para a desconstrução do engodo liberal que dissemina a idéia das pessoas constituídas como indivíduos.
Em outras palavras, a sociedade contemporânea liberal e capitalista elaborou uma série de narrativas sobre seus fundamentos e propostas e sobre o perfil dos homens que a compõem. As elaboradas sobre a noção de indivíduo, no plano subjetivo, sustentam a crença das pessoas constituídas como células únicas, separadas do social e marcadas pela representação da organização psíquica como restrita a uma essência, configurada como uma identidade una e indivisível.
Assim, produz-se a idéia de que as pessoas podem, apenas com a chamada “força de vontade”, resolver todas as suas dificuldades e conseguir uma vida melhor para si e para os seus.
Dessa forma, a concepção de indivíduo sustenta a culpabilização daqueles que já se encontram em uma situação difícil, levando-os a acreditar que, por incompetência própria, estejam, por exemplo, desempregados, infelizes no amor, com dificuldades na aprendizagem, dentre outras mazelas. Assim, bastaria a utilização da “força de vontade” e o aumento da auto-estima para que todos os problemas fossem resolvidos. Essa leitura, por um lado, retira a responsabilidade do Estado e das instituições no tocante à qualidade de vida e aos direitos sociais; por outro, isola as pessoas, restringindo a responsabilidade da sociedade e de todos nós em relação à qualidade de vida do outro.
A experiência educacional não se restringe aos discursos sobre ensino e aprendizagem, sobre métodos e técnicas, ou sobre as condições sociais. O processo educacional pode constituir-se em experiência quando as narrativas construídas pelos seus participantes puderem ser reelaboradas, assumindo novos sentidos, ou seja, quando eles conseguirem pensar o que ainda não haviam pensado, atribuindo novos significados às representações elaboradas sobre si e sobre o entorno social.
Nessa perspectiva, não é possível determinar o caminho a ser seguido pensando na definição de novos métodos ou estratégias que assegurassem o estabelecimento da experiência formadora. Entretanto, reconhecer o imponderável não significa abandonar a ação. Assim, podemos imaginar que o reconhecimento, por parte dos envolvidos no processo educacional, da sua implicação com o trabalho de construção do conhecimento caminhe na direção da experiência.
Dessa forma, o processo de aquisição e de produção de conhecimento não é garantido pela adoção de pressupostos definidos a priori; mas a relação estabelecida entre a teoria e a prática pode nos dizer sobre as razões e as paixões que circulam, sustentam e constroem a experiência educacional.
Transformar o trabalho educacional em experiência demanda relevar os limites e as potencialidades do humano; demanda a produção de conhecimento teórico alicerçado pela prática que se retroalimenta da teoria. Suportar a dúvida perante essa questão pode ser um primeiro passo para caminhar nessa estrada, relevando os buracos e os tropeços. Reconhecer que a trama do saber envolve os limites e as potencialidades do homem oferece outra medida para o trabalho. A falha, a falta, o limite não significam a recusa, a impotência, o estancamento, o negativo. Essas condições são inerentes à condição humana e podem funcionar como aliadas da ação, da potência, da transformação, do positivo. Da mesma forma que a rede se corporifica
no entremeio dos seus fios e dos seus furos, a trama do conhecimento ganha corpo com e a partir do reco-


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nhecimento da capacidade cognoscente como articulada ao subjetivo, da paixão associada à razão.


MÉRITI DE SOUZA, doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é professora no Curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis. Publicou recentemente: A experiência da lei e a lei da experiência: ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil (São Paulo: FAPESP; Rio de Janeiro: Revan, 1999); Modernidade, subjetividade e valores: novos (velhos) sintomas Em: SANTOS, G. e SILVA, D. (orgs.). Estudos sobre ética: a construção de valores na sociedade e na educação (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002, p. 137-154); Educação, práticas clínicas e cidadania.
Arquivos Brasileiros de Psicologia (Rio de Janeiro: UFRJ; Imago Editora, 2002, v. 54, nº 2, p. 167-177); Discurso fundador, história e subjetividades (Psicologia em Revista. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica, 2002, v. 8, nº 12, p. 57-64); Juventude e educação: lugares de todos ou de alguns? (Insight Revista de Psicoterapia e Psicanálise. São Paulo: Lemos, 2002, ano XII, nº 127, p. 9-13); A experiência transgressiva: leis e adolescentes (Pulsional – Revista de Psicanálise, São Paulo: Escuta, 2001, ano 14, nº 147, p. 52-65); A cordialidade como mal-estar ou a violência como recalcado (Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo: Escuta, 1999, ano II, nº 4, p. 123-142). E-mail: meritidesouza@yahoo.com

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